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CAPÍTULO V: A Escravidão Brasileira do Século XIX

1 O Século XIX: Apontamentos Gerais

O século XIX apresenta um momento bastante particular na história do Brasil, sobretudo pelas inúmeras e profundas transformações pelas quais o país passou em termos da evolução política, social, cultural e econômica. Em todos esses aspectos, houve processos relevantes, cujas repercussões moldaram fortemente as características do Brasil no século seguinte.

De fato, a proliferação de estudos e análises desse período da história brasileira, nos últimos anos, atestam o entusiasmo de vários estudiosos, na tentativa de lançar novos olhares sobre acontecimentos e processos até hoje mal compreendidos. Busca-se preencher lacunas no conhecimento histórico e na construção de uma memória coletiva brasileira sobre essa parte do passado que é, em muitos sentidos, ainda relativamente recente155.

155 Sobre o movimento recente de renovados estudos historiográficos acerca do

período dos oitocentos, vale menção ao trabalho desenvolvido por Regina Horta Duarte, professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, em texto intitulado O Século XIX no Brasil: identidades conflituosas, afirma que: “[n]os últimos anos, assiste-se um avanço historiográfico sobre o século XIX brasileiro, após um largo período em que uma renovação dos enfoques teóricos e metodológicos atingiu predominantemente o conhecimento sobre o mundo colonial e republicano. Uma verdadeira lacuna, movimentada aqui e ali por trabalhos de excelência, apresenta-se hoje como um terreno fértil a ser desbravado por inúmeros pesquisadores. De uma miríade de fontes, redescobertas e/ou revisitas por meio de

Neste Capítulo, explorar-se-á de maneira pontual a evolução do sistema escravista durante esse período.

O estudo do escravismo dos oitocentos encontra uma enormidade de novos aspectos do tema em comparação com a escravidão colonial. Nesse sentido, a análise a ser feita aqui tenderá a ressaltar as novas questões relativas à escravidão que aparecem nesse momento.

Dentre as transformações e mudanças, cujo estudo detalhado está muito além dos objetivos deste trabalho, o foco aqui será a identificação de momentos, experiências e conflitos que possam apresentar-se como evidências de que, na figura do cativo, encontra-se um caso particular de construção da pessoa e da pessoalidade. O entendimento deste auxiliará na confirmação (ou refutação) das hipóteses principais aventadas no início da execução deste trabalho: a de que a dicotomia entre pessoas e bens deve ser entendida como uma dinâmica intrincada, em que o ser pessoa e o ser coisa podem conviver de maneira precária dentro de um mesmo objeto material e a de que a pessoalidade efetiva é resultado emergente e transiente de uma interação complexa, operada fortemente através de mecanismos de reconhecimento intersubjetivo.

A escravidão negra, no início do século XIX, já se tratava de uma instituição diversa da que foi introduzida no início da colonização. No fim do período colonial, o trabalho escravo estava presente em diferentes

novas questões e novas abordagens lançadas à luz do nosso presente emerge uma sociedade oitocentista rica em manifestações culturais, surpreendente nas características de suas iniciativas econômicas, instigante em sua vivacidade política, desafiadora na história de suas lutas e conflitos sociais” (DUARTE, Regina Horta. O Século XIX no Brasil: Identidades Conflituosas. In: CARVALHO, José Murilo; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira (Org.). Repensando o Brasil do Oitocentos: Cidadania, Política e Liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 565.)

atividades econômicas e a propriedade de cativos dispersa entre uma parcela significativa de proprietários, havendo uma maior aproximação dos escravos ao mundo dos livres e uma maior intervenção do Estado na relação entre senhores e escravos.

Alguns outros aspectos, contudo, não se alteraram tanto. Restou inconteste o poder do senhor de controlar e punir os seus cativos, acima de maiores interferências das autoridades do Estado, particularmente no tocante à exploração do trabalho, na aplicação da violência física punitiva e no seu poder de restringir aos cativos o acesso a formas de liberdade. Tão relevante quanto a preservação de maneira quase intacta da economia própria da relação entre senhores e escravos é o fato de que, após mais de dois séculos de existência, a escravidão permanecia uma instituição incontestável, mesmo por parcelas da população ou por movimentos sociais que lutaram contra o sistema colonial.

A quase total falta de apoio ao fim da escravidão no contexto da crise do sistema colonial, no fim do século XVIII e início do século XIX, pode ser demonstrada pela marcada ausência de anseios ou ideias abolicionistas nas motivações de movimentos emancipacionistas tidos como mais radicais e que contaram com a liderança de pessoas de cor, como a Conjuração dos Alfaiates (1798) na Bahia, por exemplo156.

Apesar de o ideário iluminista liberal ter inspirado boa parte das agitações mais radicais na colônia na luta pela independência política, e certamente ter influenciado a Constituição do Império de 1824, uma vez que essa incorporou a noção de direitos civis e políticos invioláveis tendo por base a “liberdade, a segurança individual e a propriedade” (art. 179,

caput), as ideias e princípios liberais ali contidas não foram aplicados à

contestação do regime escravista. Nem mesmo os pretos libertos e pardos livres que tiveram atuação política no momento inicial do Império, no Primeiro Reinado e na Regência, defenderam o fim da escravidão negra.

Explorar as aparentes contradições entre o ideário liberal que marcou a política brasileira no início do período imperial, em que se lutava por cidadania, mas se aceitava a escravidão, será a primeira análise mais detida a ser feita neste Capítulo.

Em seguida, ver-se-á o papel que a resistência e a rebelião dos cativos tiveram em lutas próprias pela liberdade. Também será tratado o lento processo de judicialização e politização dessas lutas, através de ações de liberdade e dos acontecimentos que trouxeram a abolição como tema central de debate político e social no país na segunda metade do século.

Por fim, no último tópico deste Capítulo, será examinada a chamada história da abolição. Para além dos seus marcos legislativos mais relevantes, determinar-se-ão as lutas de interesses envolvidos no processo que conduziu ao fim da escravidão no Brasil, bem como as tentativas de apropriação e manipulação desse movimento por parte de senhores e cativos.

A escravidão foi abolida no Brasil por um decreto imperial em 13 de maio de 1888. Ao menos do ponto de vista jurídico, os cerca de 700 mil escravos que ainda viviam no cativeiro abruptamente se tornaram cidadãos, pessoas de direito. O objetivo deste Capítulo, portanto, consiste em colocar a abolição como um processo paulatino, duro e complexo que foi conquistado (e está sendo conquistado) socialmente pelos seus protagonistas – os próprios negros.

2. Escravidão, Cidadania e Pessoalidade na Modernidade