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A poesia crítica de Cesariny e a questão das influências

CAPÍTULO 3 – CONCLUSÕES

3.3. A poesia crítica de Cesariny e a questão das influências

185 Enfim, gostaríamos de destacar, ao encerrarmos nossas reflexões, que a obra de Cesariny não deve ser abordada sob o critério da insuficiência em relação às fontes de influência em que ele se baseou. O poeta trabalhou criativamente dentro das linhas de tradição em que estava inserido, combinando a tradição vanguardista europeia, pouco cultivada em Portugal, com uma determinada tradição da poesia portuguesa amparada na sátira e na ironia: com isso, criou uma obra nova e original dentro da poesia escrita em língua portuguesa, cujo olhar convergia inclusive com as tendências mais modernas da poesia de vanguarda brasileira de sua época. Em relação a essas tradições que combinou, o poeta atuou criticamente sobre ambas: confrontou o surrealismo de Breton com o seu fantasma dadaísta e assim produziu uma abordagem crítica da estética surrealista, levando para a sua poesia as questões fundamentais relacionadas à estética das vanguardas, como a expressão do embate entre impulso construtivo e destrutivo na criação poética; submeteu a tradição portuguesa a um recorte que salienta aspectos críticos em relação tanto à dimensão estética, a partir de sua crítica do eu, quanto à dimensão histórica, ressaltando a sombra do autoritarismo fascista sobre a sociedade portuguesa.

Isso não significa que essa superação dos paradigmas tenha ocorrido de ponta a ponta na obra de Cesariny: há textos em que se vê o poeta submisso à linguagem dos companheiros de Paris e em especial à escrita de Breton; há os jogos surrealistas e a prática da escrita automática, em que os portugueses buscaram se aproximar da práxis literária dos autores franceses; há mesmo a ida à Paris atrás das bênçãos de Breton. Todas essas coisas indicam que, para Cesariny, a criação de “sua” estética surrealista não se deu sem dilemas e contradições, e indicam também que a organização dos países do capitalismo central, com seu modelo de centro e periferia aplicado já dentro da própria Europa, calava fundo mesmo nas mentes de artistas informados e esclarecidos. Mas, ainda que envolto pela sensação de estar à margem da história, sob a paralisia imposta pelo regime fascista, Cesariny, tal como vários de seus companheiros surrealistas e abjecionistas, produziu em meio à angústia uma visão refletida e elaborada das questões que o contexto lhe apresentava, contribuindo conscientemente para a assimilação de valores modernos pela arte portuguesa. E o fez através de uma obra à qual não se pode negar a originalidade e singularidade, conforme vimos demonstrando neste trabalho.

Os poemas críticos analisados e interpretados aqui, assim como outros que não foram citados no trabalho, são uma evidência da presença, em sua obra, de uma abordagem criativa do poeta no panorama da poesia escrita em língua portuguesa. Tratando a tradição

186 literária de forma dinâmica, Cesariny propõe uma reelaboração dessa tradição e uma valorização de aspectos antes desprezados pela posteridade, atuando o seu olhar crítico em consonância com a concepção modernista da tradição, defendida por Eliot e também pelos surrealistas. Da mesma forma, o tempo que vive nesses poemas não é mais linear, mas é um tempo complexo, em que o presente se mistura ao passado e ambos se respondem em ecos, como na floresta de símbolos do célebre poema de Baudelaire273. O poeta português chega a postular, no poema a Poe, uma caminhada, no mesmo plano, entre presente e passado: ele se irmana ao seu homenageado na negação de uma representação realista em que o tempo seja linear, servindo como base ao procedimento ideológico de relegar o passado ao passado, uma vez que o que importa é o progresso do futuro, e representar os tempos passados como um monumento estéril e decorativo.

Assim, Cesariny buscou construir em sua obra uma forma própria e atualizada de assimilar a vanguarda da Europa e dar uma contribuição relevante para tornar a cultura portuguesa menos bairrista e mais cosmopolita, arejando o ambiente opressivo de seu contexto social com uma poesia única e um estilo muito particular, além de sua veia polemista e provocadora. Mas, para além das circunstâncias de sua época, criou uma obra lírica cuja leitura é fundamental para todos os que se preocupam com as questões colocadas pela representação do eu na arte moderna, que ganha tanta complexidade na poesia simbolista e modernista, seja em que idioma os textos forem escritos. O presente trabalho pretendeu mostrar que, em uma vertente de sua poesia, já aparecem algumas dessas questões, que o poeta formula a partir dessa voz cuja identidade foi quebrada por um jogo de espelhos entre o eu e o outro, que já não sabemos onde se separam.

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