• Nenhum resultado encontrado

Cesariny e a lírica moderna na sociedade reificada do fascismo português

CAPÍTULO 3 – CONCLUSÕES

3.2. Cesariny e a lírica moderna na sociedade reificada do fascismo português

Como foi visto mais acima, os desdobramentos teóricos e conceituais da escrita poética surrealista atuaram no sentido de questionar os fundamentos neorromânticos da concepção surrealista original de Breton, denunciando em sua ideia de escrita automática o mito da expressão do eu que ela trazia no seu bojo. O desenvolvimento dessa concepção ortodoxa para uma posição mais aberta aos imperativos contemporâneos da criação artística implicou num enfraquecimento da presença do eu como fio condutor do texto, gerando o que chamamos aqui de “concepção heterodoxa”, “automatismo ativo” ou “desrealização”, termos tomados aqui com uma acepção semelhante, e que designam uma postura poética mais intelectual e mais afeita ao desenvolvimento da lírica moderna, tal qual caracterizada por Friedrich e Adorno. A partir do exame das características básicas da poesia crítica cesaryniana, sugerimos que ela poderia ser equiparada à desrealização, ou mesmo ser descrita como uma modalidade de desrealização, tendo em vista que a poesia crítica coloca o ponto de vista do eu na berlinda, ao sobrepor à linguagem da espontaneidade um texto pensado em função de sua eficácia simbólica na crítica à realidade ou, mais precisamente, a uma certa visão ideológica da realidade.

A poesia crítica praticada por Cesariny empreende a desrealização manipulando a linguagem de suas referências de modo a ressignificar aspectos específicos ou gerais da obra desses autores, num esforço em gerar interpretações provocativas de suas obras em

180 relação àquilo que chamamos aqui de sua posteridade oficial, sendo “oficial” porque forja imagens acabadas dos autores, em que qualquer questionamento suscitado por sua obra é tido como indesejável. Assim, o poeta pretende aliciar a linguagem poética dos autores citados para afirmar uma visão de mundo que se ampara na ruptura com o estabelecimento de uma visão ideológica fechada, seja de direita ou de esquerda – daí uma certa identidade de ponto de vista com posturas anarquistas. Dizemos “aliciar” pois o poeta enfatiza o seu ponto de vista pessoal sobre as coisas através da apropriação que realiza: se o autor glosado tem pontos de convergência com os valores que o poeta defende, há uma relação empática, onde a linguagem do autor citado é valorizada em seus próprios termos (casos de Poe e Rimbaud), amplificando certos aspectos que interessam ao poeta; se o autor glosado diverge de algum modo desses valores, o poeta estabelece com ele uma relação de antagonismo, onde a linguagem citada é desviada de seu sentido original com finalidade crítica (casos de Bandeira e Cesário).

Nos textos que analisamos, a visão crítica do poeta leva-o a se colocar cada vez menos como um eu que possui um núcleo subjetivo (núcleo que já está posto em questão pela apropriação da linguagem alheia), até que no poema a Rimbaud o eu torna-se tão somente uma sequência de procedimentos de linguagem, onde os eus poéticos do poeta e do homenageado se encontram presentes apenas como ausências, como vestígios. Neste sentido, a poesia crítica de Cesariny afasta-se abertamente do modelo da lírica associada à espontaneidade: nos termos de Adorno, esses poemas estariam marcados pela reificação de sua linguagem. Não importa que os poemas sejam críticos: o fato é que, neles, a linguagem não tem como exprimir a espontaneidade como aquilo que não é fruto das determinações sociais em dado momento, conforme definido por Adorno. Pois o que é manuseado pelo poeta não se apresenta numa relação de significação entre linguagem e mundo, mas sim como a própria linguagem falando de si; a relação entre o texto e o real é mediada pela linguagem do outro, de modo que Cesariny atua sobre grupos de signos, sobre camadas de linguagem, intencionalmente desvinculado de uma pureza subjetiva. Ele rejeita igualmente a busca de uma representação verossímil do real, de qualquer modo secundária diante dos gestos simbólicos e metalinguísticos que o texto do poema personifica ou encarna: gestos na linguagem, não no real.

Uma possível interpretação dessa atitude por parte do poeta, segundo uma visão adorniana, é a de que tal abandono do plano lírico exprimiria uma situação de paralisia. O riso irônico do poeta seria consequência amarga da sensação de bloqueio completo diante

181 da realidade vigiada da ditadura fascista. Numa espécie de beco sem saída existencial, a poesia crítica de Cesariny seria uma faceta de sua obra em que ele procuraria uma saída explodindo o eu e assumindo uma pose satírica, que, no entanto, não resolve o impasse e reforça o sentimento de angústia porque confinada a um restrito círculo de letrados. Essa interpretação, que destaca a pouca simpatia de Adorno pelo hermetismo modernista, é válida. Ela se apoia na ideia de que o destino da arte no mundo reificado é constituir irresistivelmente uma forma de decadência da arte feita no auge do capitalismo histórico, no século XIX; por consequência, não há muitas saídas para remediar essa infiltração da lógica capitalista no âmbito da cultura.

Entretanto, não é essa a interpretação que adotaremos em nossas conclusões, pois nos parece que esse ângulo das considerações do mestre alemão, que serve de base à interpretação a que nos referimos, termina por lançar a desconfiança de que não há alternativas válidas de criação e que o desenvolvimento do lirismo está diante de um abismo. Esta não pode ser, a nosso ver, uma destinação digna à lúcida e profunda indagação de Adorno sobre o destino da cultura sob o jugo do mercantilismo capitalista. Interessa-nos mais considerar, no âmbito desta pesquisa, as observações do filósofo que tratam do lugar social do eu-lírico, noção mais produtiva para se chegar a uma conclusão que não interprete a arte de Cesariny como fechamento, mas sim como abertura e como possibilidade.

Numa poesia como a portuguesa, em cujo modernismo avulta a obra singular e fecunda de Fernando Pessoa, original mesmo dentro do contexto geral da poesia europeia, a problemática do eu ganha desdobramentos complexos. Pessoa realizou aquilo que parece ser o contrário da autenticidade: ele se multiplicou em diferentes eus, colocando-se inclusive no mesmo plano que eles, e correndo, com isso, o risco de parecer falso como uma mera personagem. Pois a sua imaginação admirável produziu uma obra cujo efeito é contrário: cada um dos principais heterônimos ganha vida e personalidade literária próprias, e de tal modo que o seu autor se divertia em criar suas biografias e uma viva correspondência entre eles. Esse procedimento, que Pessoa conduziu com a qualidade que marca seus escritos, recoloca a questão da figuração do eu em outro patamar: a espontaneidade obtida por um poeta não tem de ser necessariamente centrada no seu eu psicológico, nem mesmo num eu centrado em si mesmo. Eis um autor que parece ser espontâneo, dissimulando-se como vários outros eus, e sem prejuízo do lirismo em cada um deles. Tal contradição cria um desafio singular para os poetas portugueses que

182 sustentam a atitude de construir uma poesia moderna após Pessoa: continuar a colocar em questão essa estabilidade do eu que é, inclusive, apanágio da tradição literária portuguesa.

Cesariny está ciente dessa problemática quando se põe a criar a sua poesia. A partir do referencial surrealista que ele elegeu como eixo de seu processo criativo, o poeta distende a espontaneidade da expressão em pelo menos três graus, como sugerimos acima: o da poesia passional e do texto automático num sentido ortodoxo; o da poesia “cerebral”, que visa fundamentalmente a desconstrução sintática e semântica da linguagem; e, dentro ainda desse contexto cerebral, o grau que pertence aos poemas críticos, onde o que é manipulado como matéria poética é alheio à subjetividade do poeta. Vimos nas análises que, entre os próprios poemas críticos, há diferenças em relação à exploração de uma imagem do eu. Assim, entre os poemas mais espontâneos e passionais, e o mais racional poema crítico, como o de Rimbaud, Cesariny explora um contínuo que vai da profundidade da expressão do eu-lírico à ausência desse eu-lírico e à suspeita de que ele seja um mero farsante. Isso torna possível ao poeta reunir na mesma obra a linguagem primeira da espontaneidade e a linguagem segunda da crítica, numa tensão dialética que ganha diferentes formas e permanece em aberto, irresolvida. Pode-se ver tal característica, com nitidez, na simulação de discurso automático apontada no início do poema dedicado a Poe.

Essa constituição heterogênea de sua poesia, colocada entre centramento e descentramento do eu, é uma atitude literariamente provocativa, porque ela instaura um eu impuro, instável, que se unifica em certos momentos para se dispersar totalmente em outros, um eu que ele constrói e desconstrói simultaneamente, sem se fixar em algum desses polos ou mesmo entre eles; um eu inacabado, em processo, em movimento. Tal imagem complexa do eu não esconde as marcas da reificação e as formas do eu tentar resistir a ela. Um sentimento um tanto angustiado do poeta, na exasperação com que mantém essa tensão em sua poesia, também pode ser aí vislumbrado. Mas, antes de constituir um beco sem saída existencial, o que o poeta faz é algo mais do que resmungos aflitos. Ele realiza um trabalho refletido sobre as tradições poéticas que alimentam sua poesia, trabalho que não fecha as possibilidades de criação poética, mas busca trilhar novos caminhos para ela. Quando se pensa que o surrealismo português foi a primeira vanguarda do pós-guerra em língua portuguesa, antecipando movimentos de vanguarda dos anos sessenta, vê-se que a sua atitude criativa perante a linguagem representa uma busca de libertação, na senda aberta por Pessoa, de um eu-lírico que os artistas sentiam então como veículo do já dito e do já sentido.

183 A maneira de se considerar tal atitude poética é determinante na discussão do aparato teórico proposto por Adorno para refletir sobre a lírica moderna. O filósofo alemão, através de considerações conceituais e análise de exemplos, busca fixar a associação entre lírica e uma pureza subjetiva da expressão, entendida não obstante de forma mais linguística do que psicológica. Em sua análise da poesia surrealista, em que vincula a escrita dos franceses a uma exploração de memórias das experiências infantis, a presença de tal pureza expressiva ainda é soberana, embora reduzida a fetiches. Adorno trabalha com a noção de um eu-lírico que é espaço de resistência à visão ideológica do capitalismo. Então, o problema colocado por nossa indagação relaciona-se com a consideração sobre em que medida o eu-lírico inconstante de Cesariny lida com tal exigência de resistência, e também com a consideração do próprio eu como esse elemento que resiste.

O poeta português constrói seu eu-lírico num contexto em que o papel do eu já não corresponde a uma promessa de resistência; esse dado é cultural e histórico, e avulta a partir do final da segunda grande guerra. O esgotamento da linguagem da subjetividade, solidário à morte do autor referida por Foucault e Barthes, foi expressão de um momento histórico; assim como o eu-lírico tinha dificuldades em se colocar de forma autêntica após quase um século de lírica moderna, a própria individualidade, esmagada pelo morticínio proporcionado pela guerra e pelo fascismo, já não seria a mesma após o violento conflito.

O desaparecimento de alguns grandes poetas líricos, como Maiakovski, Lorca e Artaud, é emblemático desse soterramento do eu pelas políticas de massa dos Estados totalitários, sutilmente estendidas, nas décadas seguintes à guerra, para a então nascente sociedade de consumo contemporânea. Obviamente, esse não foi o destino de todos os líricos do período, mas atesta que eles não puderam cultivar senão uma poesia de sobrevivências, e é nesse sentido que muitos adotaram uma atitude construtiva, voltada para a elaboração da linguagem, convocando a imaginação do leitor para participar da criação do sentido do poema, e não uma atitude de reconstituição da pureza de um eu que já estava violentado para além da palavra, por meio do extermínio do poeta e da uniformização da experiência, pureza que foi vista por eles como ingênua e insuficiente. A despeito disso, o caminho do lirismo do eu não foi abandonado: na poesia portuguesa, o vemos trilhado, por exemplo, por um Eugénio de Andrade ou uma Sophia Breyner- Andersen, que desenvolveram formas pessoais de enfrentar o desafio. Na obra de Cesariny

184 também está presente, como um dos polos de seu lirismo, e contraposto, no outro extremo, aos poemas críticos.

A crítica do eu presente na poesia crítica de Cesariny também é uma reação do eu do poeta contra um estado de coisas vigente que age contra aquele refúgio do eu representado pelo lirismo, através da uniformização de pensamento que a ditadura fascista procura impor. Paradoxalmente, usando recursos cerebrais e que contrariam o próprio lirismo, dissolvendo o eu, o poeta defende, em última instância, a liberdade do eu se manifestar e de exprimir a sua visão de mundo como bem entender. Mas não é mais o eu onipresente do romantismo, em consonância com a própria radicalização crítica empreendida pela lírica moderna. Em seus poemas críticos, ausentando-se de si, o poeta português expõe a contradição que a concepção romântica do eu apresenta na sociedade massificada do capitalismo tardio, atitude que compartilha com as variadas posturas antiartísticas que pontificaram a partir dos anos 50. Solidária a essa crítica do eu é uma busca, amparada na atitude crítica, de uma dimensão autônoma para a obra de arte, uma afirmação da independência da voz poética, que não se deve dobrar a nenhum imperativo alheio a ela mesma. O tom provocativo das apropriações de Cesariny diante das visões mais convencionais da posteridade literária dos autores que ele glosa é uma demonstração de que o poema crítico se configura para Cesariny como um campo de polêmica no debate sobre o valor desses autores e de seu lugar na tradição literária, e também de uma contestação simbólica de uma série de valores, inclusive políticos, que o poeta rejeita e que fazem parte do contexto “abjeto” em que ele se vê rodeado.

Caberia, enfim, neste ponto, indagar se a atitude da poesia crítica não representa uma nova postura do artista lírico moderno diante da problemática do eu, em que ele é visto de forma menos fetichizada e mais desconfiada. Isso representaria um aspecto das novas formas de expressão artística surgidas no pós-guerra, formas que se propuseram radicalmente críticas, mas se depararam também com a contradição de pouco serem ouvidas por uma sociedade que substituía os modos tradicionais da cultura pelos meios tecnológicos de difusão e pela indústria cultural. Essa indagação, contudo, envolve um exame apurado da filosofia adorniana, de que nos furtaremos aqui, em vista do exíguo espaço de que dispomos.

Documentos relacionados