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4 A FÍSICA DIVERTIDA DOS EXCITÁVEIS

4.1 A poesia do corriqueiro

Assim começamos a aventura pelo mundo dos Excitáveis. Apontada pelos críticos como uma das “práticas mais engenhosas” (BELLUZZO, 2011, p. 163) de Sérvulo Esmeraldo; para outros, a “série mais radical de sua pesquisa como inventor” (RESENDE, 2011, p.25), a “contribuição máxima de sua trajetória” e “a mais interessante contribuição brasileira à arte cinética internacional depois de Palatnik” (AMARAL, 2011, p. 17); alguns falam em “uma originalidade inegável” (POIRIER, 2011, p. 119), de forma que Sérvulo “deve ser considerado como um outsider essencial da tendência óptico-cinética” (idem, p. 131).

Adjetivos grandiosos para uma série cuja origem remonta a uma simples lembrança de infância: a brincadeira de esfregar o pente de ebonite, atraindo em seguida papéis picados. O fenômeno ganha na física o nome de eletricidade estática, mas, como costuma acontecer com boa parte dos assuntos que saem de outros campos da vida e alcançam o terreno da arte, os objetos com os quais podemos visualizar o evento trazem um nome mais atraente. São os Excitáveis. Não seria má ideia se pudéssemos chamar a eletricidade estática de eletricidade excitante. O próprio artista comenta que, no século XIX, na França, esse ramo da física foi chamado de “physique amusante”48.

Os Excitáveis, no entanto, não agradaram a todos na época de sua criação. Jean Thiery, por exemplo, em artigo publicado no jornal Midi Libre, em 1971, chama esses objetos de pouco excitantes.

Cet article était déjà redigé quand j’ai pu avoir une conversation avec Esmeraldo. Il a bien voulu me préciser que ses << excitables >> ne visent aucunement à l’esthetique. Il se contente de mettre le spectateur-acteur face à un phénomène physique jamais utilisé en art, face à un réel assez << neutre >> sur lequel Il peut intervenir. Il sent, ou il ne sent pas. Il faut croire que je n’ai pas senti49. (A3.2.2).

Já André Parente, no texto Les Excitables ou l’art d’apprivoiser, diz que o contato com os Excitáveis “Ce fut um choc, littéralement! Je fus saisi d’une émotion qui dure encore et qui n’a fait que s’intensifier à mesure que je les étudiais”. 50 (2010, p. 5).

48 Física divertida (tradução minha).

49 “Este artigo já estava redigido quando eu pude ter uma conversa com Esmeraldo. Ele quis precisar que os seus

excitáveis não visam de forma nenhuma à estética. Ele se contenta em colocar o espectador face a um fenômeno físico jamais utilizado em arte, face a um real bastante neutro sobre o qual ele pode intervir. Sente-se ou não se sente. É necessário crer que eu não senti”.

50 “Foi um choque, literalmente! Fui tomado por uma emoção ainda dura, e que só se intensificou desde então, à

Mas, agradando ou não, o fato é que esse objetos traziam, como destaca Thiery, o ineditismo da eletricidade estática como matéria-prima no âmbito da arte e, além de tudo, um certo despojamento pela utilização de material corriqueiro, simples na confecção dos

Excitáveis. Nos anos 60, na cidade de Rosny-sous-bois, próxima a Paris, o artista teve a ideia de adotar bandejas pequenas de isopor para acondicionamento de alimentos como suportes para os primeiros objetos. Após ganharem os pequenos elementos, como confetes de papel, os

foodtainers, como passaram a ser chamados esses protótipos dos Excitáveis, eram recobertos e vedados por filmes transparentes.

Foodtainer 5 e Foodtainer 4, ambos de 1966. Foto: reprodução do catálogo Sérvulo Esmeraldo – Sicardi Gallery.

Não era de agora que Esmeraldo se apropriava de materiais de uso cotidiano em seus trabalhos. O amigo João Rodolfo Stroeter conta que Esmeraldo inventou, ainda em São Paulo, um buril afiado improvisado de varetas de aço de guarda-chuvas (2011, p. 81). Em 1967, cria a série de múltiplos Cales se apropriando de um instrumento de trabalho de torneiro. A matéria de 1975 da Revista Veja, encontrada no IAC, descreve esse encontro:

Há nove anos, quando passava em frente a uma loja de ferragens na rua Oberkampf, em Paris [...] o cearense Sérvulo Esmeraldo teve sua atenção despertada por um pequeno objeto [...]. O que lhe interessou [...] foi o contorno sinuoso de um dos lados da pecinha, semelhante a um serrote muito usado e intimamente ligado às formas que Esmeraldo [...] vinha então pesquisando. (A3.2.4).

Produz centenas desses objetos, numerados e assinados, para um galerista de Paris.

Em 1971, com uma barra rosqueada de aço, arruelas e porcas compradas em uma magazine parisiense, tem a ideia para um interessante objeto cinético movido por ação da gravidade ao ser colocado de ponta-cabeça.

No caminho de volta para casa me vi brincando sem parar com aquele dispositivo que ao menor movimento respondia com a queda espiralada e sonora das roscas. Tocado por sua beleza, apropriei-me da idéia, deste objeto lúdico, acrescentando-lhe um tubo transparente de plexiglass, e um nome: To Spin, Span, Spun. (A1.5.7). Esmeraldo não estava sozinho, já que a apropriação se tornou comum nas artes visuais a partir das décadas de 1950 e 1960 tanto na Europa como nos Estados Unidos. As chamadas assemblages tinham como premissa a ideia de que elementos heterogêneos constituintes de uma obra não perdem sua particularidade, nem sua ligação com o mundo comum, de onde vieram, abrindo espaço para a utilização de materiais antes não relacionados com o mundo da arte. Tradição iniciada com Marcel Duchamp e seurs readymades, objetos comprados pelo artista e posteriormente produzidos em série, entre eles os famosos Roda de

bicicleta (1913) e Fonte (1917), um urinol que levava a assinatura R. Mutt.

Com o convite para a I Exposição Internacional do Livro-Objeto em Nice, em 1967, Esmeraldo inicia oficialmente a produção da série Excitáveis, que logo se tornou objeto de interesse europeu. Em 1970, participa da coletiva La Peau du Lion, em Zurique, com um

Excitável. Em 1971, é a vez da Galerie 32, em Lyon, abrigar a exposição Esmeraldo

Excitables. No ano seguinte, Bruno Munari adquire uma de suas peças. Em 1974, integra a exposição L’idée et la matière, na Galeria Denise René, também com os Excitáveis, ao lado de artistas como Albers, Vasarely, Yvaral, Honeger, Le Parc, Soto, Morellet, Nemours e Tomasello51.

Convite da exposição L’idée et la matière, em 1974, na França (E2). Crédito: Fundo Arquivístico/ Instituto de Arte Contemporânea.

51 Sobre o mercado europeu, Esmeraldo diz: “Estes objetos intrigantes interessavam muito aos franceses.

Comercialmente, porém, o freio conservador gaulois falava mais alto. Foi assim que eles perderam o bonde da arte contemporânea. O melhor saiu do País. No meu caso, o mercado era a Suíça, Itália, Alemanha. Nunca atravessei o Canal da Mancha”. (A1.5.4).

Durante toda a produção dos Excitáveis, o artista fez uma anotação posterior à criação de cada objeto em um caderno de registro onde descreve os materiais empregados, as dimensões e, algumas vezes, faz desenhos desses objetos. Para a identificação da peça, a anotação tinha um modelo: Uma letra “E”, relativa a Excitável, seguida do ano e da ordem de criação, como nos exemplos seguintes. Esses símbolos também correspondiam ao título de cada uma das peças.

Imagem do Excitável e sua respectiva descrição no caderno de registro da série.

Imagem do Excitável e sua respectiva descrição no caderno de registro da série. Foto desta imagem e da anterior: reprodução da foto de André Arruda no livro Sérvulo Esmeraldo – pinturas, desenhos, gravuras, esculturas,

Imagem do Excitável e sua respectiva descrição no caderno de registro da série. Foto: reprodução da foto de Frank White no livro Sérvulo Esmeraldo. Caderno de registro: A1.5.8.

Imagem do Excitável e sua respectiva descrição no caderno de registro da série. Foto: reprodução da foto de André Arruda no livro Sérvulo Esmeraldo – pinturas, desenhos, gravuras, esculturas, objetos e excitáveis.

Caderno de registro: A1.5.8.

Imagem do Excitável e sua respectiva descrição no caderno de registro da série. Foto: reprodução da foto de Emmanuel Nguyen Ngoc no livro Sérvulo Esmeraldo – Les Excitables.

A variedade de cores e formatos dos Excitáveis é grande. E isso podemos observar tanto nas imagens, como no caderno de registro. André Parente diz que:

Les Excitables les plus grands et les plus complexes peuvent atteindre un mètre et demi de hauteur. J’ai entendu parler d’un Excitable de forme tubulaire qui occupait une pièce entière, du sol au plafond. Il est parcouru de haut en bas par un axé central auquel sont attachés des cylindres de bois de balsa qui réagissent à la présence et aux mouvements des spectateurs qui entrent dans la pièce. Une véritable installation cinétique interactive. 52 (2010, p.5-6).

52 “Os maiores e mais complexos excitáveis podem ter algo em torno um metro e meio. Ouvi falar de um

Esse número de possibilidades demonstra o domínio técnico de Sérvulo na utilização da eletricidade estática, como veremos a seguir.