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A possibilidade de uma brecha na terceirização: a agência docente?

5. CAPÍTULO 3 – A PRÁTICA DA TERCEIRIZAÇÂO

5.2. A formação docente na parceria terceirizada: treinamento ou posicionamento crítico?

5.2.1. A possibilidade de uma brecha na terceirização: a agência docente?

Um fato bastante marcante nas observações de aula durante a pesquisa trouxe à tona uma questão fundamental quando se pretende repensar práticas de ensino e modos de significação no ensino de línguas, em relação à formação docente: a agência. Seria essa uma possibilidade de abertura e transformação mesmo em um modelo tão fechado e restrito por treinamentos e técnicas institucionalizadas?

Relato a seguir uma provável evidência dessa possibilidade, através da descrição da aplicação de uma avaliação (aula 9, apêndice p.166). Observei a aplicação de uma avaliação em uma sala de 7º ano; trata-se de um writing test que deve ser produzido durante os minutos presenciais de aula, sobre um tema determinado, visando o uso de estruturas e vocabulário específico já estudado, com um limite de palavras pré-estabelecido, 80 – 100 palavras. Os alunos devem optar entre dois temas: What do you think your life will be when you are 20? Write a text about your prediction, e o segundo, Your Best friend is not doing well in school. Write him/her an e-mail giving advice. O professor elucida que este teste faz parte de uma avaliação mais ampla onde cada habilidade linguística é avaliada, além de uma prova gramatical, a qual já havia sido realizada; esta destina-se a avaliar especificamente a produção escrita e serão considerados para a formação do conceito, o uso de estrutura correta e vocabulário adequado.

Em recente pesquisa sobre o assunto, Duboc (2007) identifica três problemas nas práticas avaliativas nos contextos de ensino de língua inglesa atuais, que segundo sua análise, decorrem de influências de paradigmas da modernidade. Seriam os problemas: avaliação como sinônimo de mensuração, fruto do modelo caracterizado pela experimentação e observação de fatos de forma lógica, racional e concreta; ênfase na avaliação de conteúdos

objetivos e memorizáveis, fruto de uma concepção estruturalista saussuriana de língua como um código fixo; e utilização de provas escritas quase que essencialmente, indicada pela possibilidade de neutralidade e objetividade que essa forma de registro tenta garantir.

Segundo a fala do professor neste episódio, seriam avaliados somente esses aspectos estruturais podendo tal fato denotar uma visão que se encaixa nestes modelos acima descritos. Outras possibilidades de significação e/ou produção não são levadas em conta, ou talvez sejam até mesmo interpretadas como erro por estarem fora do modelo padronizado. Por exemplo, como o professor conceituaria se o aluno usasse uma variação linguística própria dos meios eletrônicos e própria do uso do linguajar adolescente em uma possível resposta à segunda opção, que abre espaço para tal possibilidade, dada a solicitação ser um e-mail para um amigo?

Sob a perspectiva das teorias dos Multiletramentos e do letramento crítico essa possibilidade seria perfeitamente aceitável, pois o conceito pertinente a estas teorias enfatiza justamente essas possibilidades de tipologia textual “amalgamadas” (COPE e KALANTZIS, 2000) onde os modos de representação são muito mais amplos do que a língua por si só.

Destaco ainda na continuidade deste mesmo episódio observado, o fato de que quatro alunos não conseguem chegar ao limite de palavras imposto pela atividade e estes ficam extremamente abalados com a possibilidade de entregar a avaliação fora das solicitações estipuladas, pois sabem que sua nota será prejudicada por esse fator. Mesmo depois de alguns minutos após o término da aula, após todos saírem, visto ser a última aula do período, estes quatro alunos permanecem tentando realizar a atividade a qualquer custo, num clima bastante tenso. Três deles vão, pouco a pouco, desistindo da tarefa e entregam suas atividades, parecendo bastante frustrados. No entanto, um deles, um menino que se mostra bastante nervoso, fica por último dizendo que não pode desistir e começa a chorar copiosamente. O professor interfere tentando consolá-lo de alguma forma dizendo o seguinte: “Calma! O máximo que vai acontecer é você ficar de recuperação...” Posteriormente, o professor relatou- me que este aluno, o qual se descontrolou durante a avaliação, era um excelente aluno em todas as outras disciplinas, com conceitos sempre muito altos; além disso, mesmo em inglês, fazia todas as atividades propostas sempre com muita dedicação, muito embora não obtivesse sucesso nas atividades avaliativas formais de língua inglesa. Em havendo uma possibilidade de autonomia ou de agência ampliada para este professor, neste episódio, a avaliação desse aluno poderia ter um outro formato ou ser de outra natureza, a fim de contemplar possíveis diferenças de aptidão ou do próprio momento especial vivido por esse aluno.

Outros aspectos pertinentes às práticas avaliativas – os contextos de pressão psicológica e emocional, as pressões burocráticas em relação à composição de conceitos e médias para uma aprovação e continuidade do curso, a auto-avaliação individual trazendo conceitos de baixa ou alta auto-estima – normalmente não são levados em conta na maioria dos planejamentos das práticas avaliativas sugeridas nas escolas formais da atualidade. No entanto, estas práticas dentro do funcionamento organizacional das escolas têm suas bases numa filosofia que se espelha nas configurações das instituições empresariais em uma sociedade neoliberal que tem por premissa a excelência, a formação instrumental e a competitividade individual (GÓMEZ, 2001). Estas propostas de organização em relação à avaliação, longe de serem neutras ou irrelevantes, podem gerar nos alunos uma visão do mundo social balizada pelas conquistas instrumentais, além disso, o êxito e o fracasso acadêmico corroboram a formação de uma identidade possivelmente frustrada, ao se restringir a significação pessoal e social deste período ao êxito acadêmico. Nas palavras de Gómez (2001),

O êxito acadêmico dá a identidade e a justificativa social a esta etapa propedêutica da vida do estudante. Quando se produz o fracasso acadêmico, por certo notavelmente alto, não existem outros mecanismos de recuperação da identidade nem da satisfação pessoal (op. cit. p.157).

Em outra aula observada, de outro professor terceirizado, pudemos interpretar em uma situação de avaliação, uma atitude relativamente diferente e de certa forma contrastante no seu propósito, em comparação com o fato acima descrito. Trata-se de uma aula pós-prova, quando os alunos ficam muito curiosos e porque não dizer ansiosos, para conhecer sua nota. Essa ansiedade é algo bastante comum na maioria das situações avaliativas de nosso sistema educacional, visto haver uma base meritocrática fundamentada na organização desse sistema. Como já citado anteriormente, muitas coisas da vida do estudante, não só em termos acadêmicos, dependem de seu sucesso ou fracasso nessas avaliações. Pudemos constatar a postura bastante comum de outros professores durante as observações quanto a isso (aula 9, apêndice p.167-168), de simplesmente anunciar a nota ou a média, em alguns casos com alguns comentários genéricos e até mesmo depreciativos, não individualizados, sobre a avaliação, prática docente bastante comum, não só no caso da terceirização, mas como prática docente em geral. Este professor, no entanto, ao iniciar sua aula, entrega a prova corrigida, feita na aula anterior, chamando cada um para ver e conversar sobre a mesma. Antes de iniciar essa atividade individual, divide a turma em duplas para que façam determinado

exercício do livro. Assim, chama um aluno de cada vez para ver e conversar sobre a avaliação feita na aula anterior – trabalho não muito tranquilo – por ter que parar diversas vezes para atender as duplas que tentam fazer o exercício proposto e, outras vezes, interferir em alguma outra dúvida geral da classe. O professor tem que dispor de um tempo e energia especiais para esta atividade, visto que não consegue terminar a revisão individual com todos os alunos, continuando na aula subsequente.

Duboc (2007), em sua investigação sobre a avaliação nas aulas de língua inglesa, ressalta que a conceituação da avaliação como sinônimo de mensuração, fruto do modelo positivista de educação do século XIX, se evidencia na medida em que se prioriza o ato de informar aos alunos o resultado da medida de seu aproveitamento ao invés de um diálogo sobre seu desempenho nas atividades avaliativas, o que poderia se constituir num provável mecanismo de redirecionamento da prática educativa (op. cit.).

Por esta prática do diálogo sobre a avaliação com seus alunos, cremos que este professor exerceu uma quebra de paradigmas da cultura docente que impera não só nessa escola terceirizada específica, mas em grande parte das escolas formais, que pressionadas por um modelo organizacional onde os objetivos conteudistas se sobrepõem aos objetivos educacionais, não tomariam o tempo e a energia necessárias para esta atividade.

Ainda nesta mesma aula, pudemos observar outra atitude deste professor que nos fez interpretar como contraditória, a sua posição em relação à avaliação, anteriormente descrita (aula 9, apêndice p.164-165). Durante a explicação da atividade que fariam enquanto o professor estivesse atendendo individualmente para a revisão de prova, um dos alunos questiona: “O bimestre acabou. Pra quê vamos fazer isso?” Ao que ele respondeu: “O bimestre sim, mas as aulas não. Posso mudar as notas de vocês a qualquer hora...” Trata-se de uma fala bastante comum dos professores, que faz parte da cultura docente, muitas vezes utilizada como meio de coerção, mostra de poder ou mesmo atitude de limite disciplinar. Essas contradições, não raras nas práticas docentes atuais, parecem mostrar que os professores vivem uma tensão inevitável e preocupante entre as exigências de um contexto social bastante mutável, flexível, plural e cheio de incertezas, marcado por mudanças tecnológicas, diversidades culturais e outros fatores – no caso da terceirização, referentes ao mercado educacional – com as rotinas e convenções de práticas e costumes burocráticos, bastante estáticos e fixos que permeiam a organização escolar (GÓMEZ, 2001). Ademais, a própria formação individual do professor, com valores, crenças e expectativas formadoras de sua identidade, também entram em jogo quando qualquer tipo de inovação, mudança ou

transformação é proposta. Por isso, poderíamos afirmar que a cultura docente é sempre um fator a ser considerado em toda reflexão para uma transformação educacional, com vistas a uma efetiva agência, visto que não basta apenas a compreensão intelectual dos agentes envolvidos, mas a vontade de repensar culturas anteriormente herdadas (op. cit. p.165).

Outro fato ocorrido nesta mesma aula trouxe-me outras impressões sobre a agência exercida por esse professor em sua atuação com os alunos, que diferencia sua aula das demais observadas, denotando um clima mais participativo e até mesmo mais tranquilo de um modo geral.

Enquanto conversavam sobre quanto tempo seria gasto para a atividade proposta – vale ressaltar que o professor sugere 20 minutos, enquanto os alunos querem 30 e, depois de negociado, estabelece-se 25 minutos – um dos alunos, o qual pede uma explicação sobre determinado exercício, usava um fone de ouvido, o que é proibido dentro da sala pelas regras da escola, e então o professor pede que ele retire o fone. O aluno resiste um pouco tentando negociar, dizendo que ele está participando, fazendo o exercício proposto; ao que o professor responde: “Não, você deve tirar, porque isso não é negociável.” Neste momento, um aluno que estava sentado ao meu lado, que sabia que eu estava ali como pesquisadora e anotava todas as coisas da aula, me disse: “Isso é muito importante você anotar... o teacher sempre dialoga com a gente... Por isso ele tem que ficar no outro semestre.”

Esta fala, complementada com todas as atitudes, mesmo as mais sutis, observadas neste professor, denotam que apesar de estar vinculado a uma estrutura bastante estanque e reguladora, que seguia uma metodologia um tanto conservadora, não aberta a possíveis transformações, conseguiu exercer sua agência de modo a abrir espaço para diálogo, negociações e uma possível hierarquia mais horizontal com seus alunos, o que nos parecia trazer um ambiente de aprendizagem bastante favorável, demonstrando que “sempre existe uma margem de liberdade para expressar a autonomia, a resistência, a diversidade e a discrepância” (GÓMEZ, 2001).