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A Prece de Mauss

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CAPÍTULO 4 – MEMÓRIA RELIGIOSA, SÍMBOLO, EDUCAÇÃO

4.2 A Prece de Mauss

Através das considerações feitas acima, fica constatado que a presença da religião no universo das representações criadas pelos seres humanos dá-se pelo pensamento, pela linguagem falada e escrita, pela arte e também pela própria organização social, na medida em que se progride na história.

Mas para que a vida em sociedade aconteça é necessária a existência de um mínimo de valores comuns entre seus membros, isto é, para que haja adesão efetiva e afetiva a esses valores. Uma das condições para que tais valores se tornem coletivos, sociais, e para que sejam eficazes é o compartilhamento dos valores comuns almejados. Segundo Lemos (2004, p.130), “essa condição é obtida quando os valores são remetidos a representações, que se articulam em modelos culturais estruturados do viver e do sobreviver”.

A prece é um dos elementos inerentes aos ritos existentes nas diversas representações religiosas, e assim sendo, interage dialeticamente com a sociedade. Ela pode fornecer valores que favoreçam a vida social? Essa é a questão fundamental que tentaremos evidenciar a partir dos estudos do artigo ‘A prece’ de Mauss (1979)3 e também da realidade empírica dos alunos, coletada através da entrevista escrita.

A prece é um fenômeno religioso, faz parte das manifestações do conjunto das coisas sagradas. Ela está presente na história das religiões. De todos os fenômenos sagrados é o que dá, de imediato, a impressão de profundidade, de vida, de riqueza, de complexidade. Isto porque a prece é um dos fenômenos centrais da vida religiosa. Ela é o ponto de convergência, de adesão a muitos outros fenômenos

religiosos, através de dois meios distintos: os ritos e as crenças. A prece participa da natureza do rito e da natureza da crença. Os dois pólos regulam a experiência religiosa. As crenças consistem nas representações. Enquanto os ritos são ações que dão sentido às diversas visões de mundo de todos os grupos religiosos e sociais. Assim sendo os ritos e as crenças formam um sistema de representações que explicam o sagrado, e a prece é um dos elementos desse sistema.

Nesse mesmo aspecto, Eliade (2001, p. 19) analisa a questão de “o sagrado e o profano que constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumida pelo homem ao longo da história”. A prece é uma forma de unir essas duas modalidades do universo humano. É na experiência íntima com o sagrado que se dá a prece, pois este universo contém em si o sagrado e o profano, que representam o bem e o mal na construção de sua organização social.

A prece é um rito pois é uma atitude assumida, um ato realizado em vista de coisas sagradas e se dirige a uma divindade. É uma crença em certo grau, um credo que exprime um mínimo de idéias e sentimentos religiosos. O ser humano se relaciona com o sagrado como algo que se encontra acima e é diferente dele. É como se o sagrado fosse uma arma poderosa para enfrentar o caos.

Dessa forma, a prece apresenta diversos papéis: é uma exigência, uma ordem, um contrato, um ato de fé, uma confissão, uma súplica, uma louvação, um hosana, segundo Mauss (1979).

Na prece, o fiel age e pensa, a prece é pensamento e ação. Neste sentido, ambos estão intimamente ligados em um mesmo momento religioso. A oração para Mauss (1979) é uma palavra, é a linguagem, é a comunicação, é um movimento que tem um objetivo e um efeito. É um instrumento da ação humana. Falar é ao mesmo tempo agir e pensar: a prece é, simultaneamente, crença e culto.

Por outro lado, a prece é um dos melhores sinais pelos quais se manifesta o estado de desenvolvimento de uma religião. Ela é um rito que pertence a uma religião; seus destinos e os da religião estão estritamente unidos. Através do desenvolvimento da oração, podemos perseguir o fio que conduz às grandes correntes que agiram sobre o conjunto dos fenômenos religiosos.

Uma religião nasce de simulações de várias naturezas: da liturgia, que é uma das formas de prece; do espaço temporal, que afirma a fundação de uma religião; dos oráculos, que são narrativas fundantes de uma religião; das fórmulas teológicas e dos objetos sagrados. Tudo isso é organizado por um corpo de especialistas que dão continuidade aos ritos e às crenças revisando os mitos, transformando-os e zelando pela sua existência. É a função exercida pela agentes religiosos.

A experiência religiosa, quando institucionalizada, quer dizer juntar, unir, religar. Nisto ela se caracteriza por uma estrutura simbólica, procura dar sentido único, global e comunitário à vida para os que nela crêem. Por isso, ela é também uma organização nos parâmetros sociais.

No decorrer da história, o ser humano, na sua busca por respostas e sentido de vida, sempre faz uso de sua capacidade de transcender-se. Isto ocorre porque ele acredita no transcendente ao qual deu o nome de criador, mantenedor da ordem cósmica, providência, bem, deus, princípio, vida. Essa crença é testada nos mitos de origem em praticamente todas as religiões, afirma Schiavo (2004). Assim a religião faz parte da cultura de um povo porque ela é a tentativa de busca, de dar significados e respostas aos questionamentos mais profundos do cotidiano da vida das pessoas.

A partir das considerações feitas acima sobre religião, compreende-se melhor as origens da prece. Segundo a definição de Mauss (1979, p. 146) ela é “um rito

religioso, oral, diretamente relacionada com as coisas sagradas.” No início, ela foi totalmente mecânica, agindo só por meios de sons proferidos, acabou adquirindo a forma mental e interior. Dessa dimensão passou para efusão do pensamento da alma. Primeiramente coletiva, segundo formas comuns, tornou-se a livre conversão do indivíduo a Deus. A prece pôde chegar a essa etapa devido à sua natureza oral. Assim, a oração sendo, uma palavra, acha-se bem próxima do pensamento, por isso pode abstrair-se e espiritualizar-se.

A origem da prece pode ser encontrada nas formas de ritos orais, petição dirigida à personalidade divina ou ao menos espiritual. No entanto, foi-se revestindo de formas fixas e específicas. Da simples mantra, passa à prece mental, à concentração mística do pensamento, superior a todo rito. A prece é um fato interior que escapa à observação, pois ela faz parte do campo da espiritualidade. Por isso, é um fenômeno inapreensível, que segundo Mauss (1979) só se pode conhecer interrogando a si próprio ou àqueles que rezam.

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