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2. AUTONOMIA DO ATOR E AFETO NO PROCESSO CRIATIVO DE JOHN

3.3 Possíveis produções de presença

3.3.3 A presença da improvisação ou a improvisação como presença

O improviso, de acordo com a análise realizada tanto no primeiro capítulo a partir das experiências com a peça EUTRO e com o filme No Lugar errado, quanto no segundo, pela perspectiva do trabalho de John Cassavetes, atualiza-se, neste ponto, como possibilidade de produção de presença ou, ao menos, como elemento intrínseco ao trabalho do ator.

Desde a montagem da peça EUTRO, cujo processo se baseou essencialmente na improvisação, tenho integrado esse procedimento aos meus trabalhos, tanto para a criação e ensaio, quanto na condição de operador do próprio espetáculo. Se pensarmos a partir do que discutido em Natureza e Sentido da Improvisação Teatral, um dos únicos livros brasileiros dedicado integralmente ao tema, a estrutura em si do teatro pressupõe seu caráter de improviso. De acordo com a autora, Sandra Chacra:

Por mais preparado, ensaiado e pronto, o teatro no seu grau máximo de cristalização – embora passível de reprodução – ainda assim ele não é capaz de se repetir exata e identicamente do mesmo jeito, por causa do seu fenômeno, cujo modo de ser é a comunicação momentânea, “quente”, ao vivo, e cuja efemeridade leva a um efeito estético também transitório (CHACRA, 2005: 15).

Se o improviso, em menor ou maior grau, sempre esteve presente no evento cênico, no contexto do teatro performativo ele se torna um elemento constituinte do processo criativo e da materialidade da obra, especialmente porque muitos processos compõe a dramaturgia de seus espetáculos com base na improvisação. Apesar de haver se originado na Grécia, com

ampla estruturação na Comédia dell’arte, é apenas no Século XX que a improvisação passa a ser utilizada, em concomitância com o texto dramatúrgico, como técnica de criação (ASLAN, 1994, p. 03).

Mais uma vez é Stanislavski quem integra a improvisação na elaboração do espetáculo teatral, permitindo que o ator ressoe sua própria materialidade no texto dramatúrgico. Para Jacó Guinsburg, em referência ao trabalho de Stanislavski:

Desligado do texto e das falas previstas na peça, o ator poderá voar na mesma direção com forças próprias, emoções e objetivos nascidos de suas experiências e projeções pessoais, infundindo ao seu desempenho uma qualidade interpretativa mais convincente, junto da técnica improvisacional (STANISLAVSKI, 1992, p. 219-220).

Esse trabalho é conhecido como método das ações físicas, em que Stanislavski propõe e sistematiza uma série de improvisações a partir das circunstâncias explícitas e implícitas do texto e da personagem. Por essa metodologia, o ator pode se desgrudar parcialmente do texto e descobrir novas perspectivas com a improvisação. É também por esse viés que Stanislavski (2004) propõe maior autonomia para o ator, por meio de seu corpo e do redimensionamento de sua função criadora e ações físicas no espaço, propiciando outras percepções da obra.

De maneira sucinta, podemos dizer que essa prática parte de uma primeira compreensão do texto, a fim de definir os objetivos das personagens em cada cena, para, em seguida, improvisar com base nos objetivos de limitados de modo a encontrar novos pontos de vistas para a cena. Se, numa primeira fase de Stanislavski, a emoção era determinada com base no texto dramatúrgico, com o método das ações físicas, ela se estabelece na ação. A perspectiva inaugurada por Stanislavski influencia diversos procedimentos técnicos para o ator, como, por exemplo, os realizados por Jerzy Grotowski, Michael Chekhov, Stella Adler e Sanford Meisner.

Stanislavski, em seu método de ações físicas com a improvisação, permite que o ator integre seu ponto de vista ao do texto. Apesar de prevalecer o enfoque do texto dramático e da personagem, essa técnica anuncia os primeiros princípios de improvisação em que o corpo do ator pode não apenas redimensionar a obra preestabelecida, como propiciar a criação de outra obra. Se, para Stanislavski, o improviso acarretaria a multiplicação de pontos de vista da obra e a integração do corpo do ator como potência criadora, no teatro performativo essas consequências podem ser preservadas, mas não necessariamente se adequam ao texto dramatúrgico. A adequação se refere principalmente à presença do ator. Desse modo, a

improvisação é pensada, no contexto deste estudo e dessa forma de teatro, por sua potencialidade de produzir presença.

Se considerarmos que o estado de devir se apresenta quando o ator busca se colocar no instante, escutando e reagindo a todos os estímulos que envolvem as circunstâncias cênicas, sejam elas dramáticas ou performativas, podemos afirmar que ele inevitavelmente se potencializa na improvisação, produzindo sua presença.

Enquanto procedimento e treinamento, a improvisação tem se configurado, desde a montagem da peça EUTRO, como base para a realização de todos os exercícios e propostas nas quais busco o estado de devir. Com processo criativo em Misanthrofreak até as investigações no workshop Entre o teatro e o cinema: a performatividade do instante, eu procuro fundamentar a improvisação a partir da escuta, da reação e da multiplicação de pontos de vistas, a fim de gerar o impulso e materializar a presença. Essas questões são sempre trabalhadas na tensão entre a esfera da realidade e da ficção, priorizando, como ponto de partida, a esfera do real, da matéria e do corpo fenomênico. Ou seja, todos os exercícios propostos, a princípio, excluem elementos como personagem, ficção, representação e o corpo semiótico. Durante essa etapa de desenvolvimento, minha postura, enquanto condutor, diretor e observador, é a de olhar para o corpo daqueles que executam as ações, como ocorre com o homem da tautologia de Didi-Huberman. O meu principal objetivo, ao assim proceder, está na identificação de impulsos instituídos na materialidade do próprio ator, tendo em vista a produção de presença. Talvez o maior desafio nessa etapa seja evitar que os automatismos dos corpos, os impulsos mais racionais e o corpo semiótico assumam o lugar da organicidade dos impulsos.

Por mais que nos concentremos, neste estudo, em apontar procedimentos gerais, é essencial a percepção de que cada processo apresentará sua própria demanda, e cada corpo, suas peculiaridades. Desse modo, as propostas elaboradas não intencionam uma imposição sobre o corpo, mas uma abertura para as individualidades, estabelecendo-se o diálogo com cada uma delas, num processo de troca e devir.

Durante a elaboração de Misanthrofreak, por exemplo, assumindo a improvisação como técnica primordial de criação, destaca-se a importância de se partir da relação de afeto − afetar e ser afetado − do meu próprio corpo com o espaço, com o tempo, com o instante, com os objetos, com as imagens e com as músicas, desenhando os contornos do que viria a ser o espetáculo. Uma especificidade desse processo, já ressaltada anteriormente, foi a ênfase no trabalho de oposição dos impulsos gerados pelas improvisações. Todo impulso, pensamento

ou sensação que me provocasse ações e gestos deveriam ser concretizados por meio de sua oposição. Não significa dizer, no entanto, que todos os impulsos para as ações e gestos se determinaram somente pela oposição, mas sim que houve um estímulo decorrente ao menos da sua tensão. Se, em determinado improviso, meu primeiro impulso fosse no sentido de sentar, por exemplo, a minha ação deveria ser realizada justamente no rumo de sua oposição, ou seja, permanecer em pé ou agir de acordo com a reação gerada por essa tensão.

Tais procedimentos, nas improvisações, provocam, entre outras coisas, o questionamento próprio, evitando-se padronizações que podem resultar em representações desgastadas e simplistas. A tentativa de escutar os impulsos do corpo, por mais que muitas vezes se encontrem automatizados no cotidiano, viabiliza uma maior acuidade e consciência dos gestos e ações a serem modulados tanto pelo trabalho de oposição, conforme mencionado, quanto por inúmeros outros procedimentos, determinados de forma que sua inerente materialidade seja suficiente enquanto presença.

Durante as apresentações, por outro lado, foi fundamental manter a situação de improviso, já que muitas das minhas ações, e até mesmo cenas, eram definidas com base na minha relação com o momento e com o espectador, na procura do instante e da experiência. Essa percepção se evidenciou com a primeira apresentação da peça no HERE, em um formato predominantemente experimental. Nessa apresentação, constatei que boa parte das minhas motivações e ações estava na minha própria relação com a plateia. Até essa ocasião, a minha relação direta com o público se dava apenas em alguns momentos. Por se tratar de espetáculo solo e solitário, pude sentir, durante essa apresentação, a profunda necessidade de me direcionar à plateia com maior frequência. Por fim, a peça Misanthrofreak, em seu último formato, reconhece o espectador como uma personagem central. Como dito anteriormente, as correlações entre ator e espectador devem ser compreendidas como constituintes da peça, posto que pela relação sempre improvisada com a plateia é possível potencializar também a presença.

Vale destacar um último procedimento em termos de improvisação, qual seja, a integração do risco no processo e nas apresentações de Misanthrofreak. Féral (2008, P. 209) considera que, “no teatro performativo, o ator é chamado a ‘fazer’ (doing), a ‘estar presente’, a assumir os riscos e a mostrar o fazer (showing the doing), em outras palavras, a afirmar a performatividade do processo”. Ainda que o “valor de risco” se apresente como elemento constitutivo da performatividade e também da improvisação, a ideia em Misanthrofreak era ampliar o risco (FÉRAL, 2008, p.203). Como o fracasso se destacou como uma das questões

que mais transpareciam na dramaturgia de Misanthrofreak, a possibilidade do erro, gerado pelo risco, era bem-vindo. O risco integrou as apresentações em diversas instâncias, algumas delas já mencionadas anteriormente.

A própria troca de olhares com a plateia durante a peça estabeleceu um constante estado de risco tanto para o ator quanto para o espectador, que muitas vezes teme uma interação maior. Considerando que, em muitos desses momentos, a luz da plateia permanecia acesa, era possível identificar claramente, nas feições de quem assistia à peça, se havia emoção, interesse, displicência, braveza; se a plateia estava dormente ou desinteressada. Essa possibilidade inevitavelmente afeta o ator em cena, cabendo a ele fazer uso desses estímulos a favor do espetáculo.

Outra situação de risco ocorreu na criação em improviso durante a apresentação. Um exemplo é a cena do casamento165, na qual eu me dirijo à boca de cena, escolho uma pessoa da plateia e faço uma declaração de amor completamente improvisada. A reação da pessoa escolhida vai desde o silêncio constrangedor sem resposta, até inúmeras outras reações, tais como: declarar que também me ama; responder que eu preciso pedir a autorização do marido que está sentado ao lado, ou mesmo aceitar o pedido de casamento − em algumas ocasiões, eu acabo mesmo por levar a pessoa ao palco para a realização da cerimônia. Os direcionamentos da cena são sempre motivados pela interação com a plateia, e o risco que pode acontecer contribui diretamente para o estado de devir e de presença do ator em cena. As consequências desse risco determinam o que acontecerá a seguir. Na maioria das apresentações, o resultado foi a simulação do casamento sozinho em cena:

                                                                                                               

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Figura 42 – Cena do casamento166

Quando o ator se propõe a correr risco por meio da improvisação de uma cena a partir das inesperadas reações da plateia, é necessário que ele cogite as diversas alternativas de reação do espectador, preparando-se para elas. Nessa cena, por exemplo, sempre tenho à mão, estrategicamente, um saco com arroz, caso eu queira utilizá-lo, como pode ser visto na imagem anterior (Figura 42), em que os grãos de arroz caem sobre meu rosto. Ou mesmo, é preciso o controle de alguns elementos estéticos. No caso dessa peça, como todas as instancias tecnológicas são manipuladas pelo próprio ator, há como, por exemplo, controlar a utilização da música em cena apenas girando, para um lado e para o outro, o controle de wii, estabelecendo a alternância entre a Marcha Fúnebre de Frédéric Chopin e a Marcha Nupcial de Feliz Mendelssohn. Assim, a improvisação é construída a partir de uma base que permite ao ator transitar entre o controle e o risco, como visto no capítulo 2, quando ela foi abordada em analogia com o jazz.

Outro elemento presente na peça para provocar as ações do ator e o risco foram os estalinhos escondidos por entre os papéis espalhados no palco. Essa ideia buscou basicamente provocar, pelo barulho, alguma reação física no ator, principalmente tendo em vista que os momentos em que eles estouravam eram totalmente aleatórios. Se, nas primeiras apresentações da peça, o uso excessivo dos estalinhos chegava a atrapalhar o andamento da peça, nas últimas encenações, eles provocaram pequenas partituras de movimento, que se repetiam todas as vezes em que produziam barulho. Essas repetições propiciaram até mesmo                                                                                                                

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Captura de tela da filmagem de Misanthrofreak realizada no Teatro SESC Paulo Autran em Taguatinga, no dia 13 de setembro de 2014.

o humor em determinados momentos. Vale destacar que essas reações só foram possíveis por se haver integrado o risco dramaturgicamente.

Como a programação e operacionalização da parte tecnológica da peça é extremamente complexa, a possibilidade de o software falhar se tornou uma constante. Falhando ou não, a situação de risco interferia diretamente na atuação. Os exemplos de risco aqui referidos, no tocante à realização da peça, são os mais evidentes. Porém, destaco, neste ponto, a minha disponibilidade psicofísica enquanto ator, que, em vez de visar a segurança em todas as ações e intenções, propiciava o risco e motivava toda a minha movimentação e atitudes em cena. Se a própria natureza do teatro é um espaço de exposição do ator, colocar-se em risco é uma maneira de ampliar essa exposição e um modo de estabelecimento da experiência, na perspectiva de Larrosa:

O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pôr-nos), nem a o-posição (nossa maneira e opor-nos), nem a im-posição (nossa maneira de impor-nos), nem a pro- posição (nossa maneira de propor-nos), mas a exposição, nossa maneira de ex-por- nos, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impoõe, ou se propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada lhe toca, nada lhe chega, nada lhe afeta, a quem nada lhe ameaça, a quem nada lhe fere (LARROSA, 2011, p.19).

Um dos maiores objetivos de criar e apresentar a peça Misanthrofreak – no que pode ser considerado uma finalidade também do teatro performativo − foi permitir a instauração da experiência tanto para o ator quanto para o espectador mediante a exposição; o risco; a vulnerabilidade; a materialidade dos corpos e das coisas, e a presença no instante.