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2. AUTONOMIA DO ATOR E AFETO NO PROCESSO CRIATIVO DE JOHN

3.3 Possíveis produções de presença

3.3.1 A presença do silêncio, do vazio, da tensão e da ambiguidade

Desde o início da pesquisa aqui apresentada, quando passei de um espectador de cinema para um apreciador-investigador-cinéfilo, comecei a perceber como o silêncio no cinema pode muitas vezes se materializar em imagens que condensam afetividade, especialmente se tais imagens forem fotogênicas. Ao assistir a inúmeros filmes, sobretudo os produzidos por John Cassavetes, compreendi como um olhar, um gesto ou o silêncio de uma personagem podem ser suficientes para conferir a determinada imagem uma carga poética e afetiva. Não que no teatro isso não seja possível, mas apenas identifiquei ser mais frequente a efetivação desse tipo de silêncio no cinema. No teatro, na maioria das vezes, o silêncio não se efetiva ou é apontado, muitas vezes, como ausência de ação, em um entendimento que se configura como simplista.

É preciso considerar que o dispositivo cinematográfico permite regular a relação da imagem com o espectador com mais eficiência, por manter maior controle sobre o objeto. Mesmo ao entender que o efeito de qualquer obra, fílmica ou teatral, é sempre aberto e subjetivo, podemos afirmar que o cinema regula esse efeito com mais eficácia pelas suas próprias particularidades de expressão. Enquanto o cinema delimita, por meio do enquadramento, o centro de interesse no que concerne a própria imagem, no teatro, o centro de interesse é mais aberto, mesmo considerando que um dos objetivos da encenação teatral pode ser justamente a delimitação desse centro. Em outras palavras, é exatamente a própria especificidade do modo de expressão cinematográfico que possibilita a materialização do silêncio como potência afetiva e presença. Uma pergunta passou, então, a ecoar a partir dessa constatação: quais as formas de expressão no teatro que podem potencializar o silêncio?

O questionamento sobre o silêncio no teatro me remeteu à já referida afirmação de Robert Bresson (2005, p. 18): “Não importa o que os atores querem mostrar, mas sim o que eles escondem”. Essa frase ecoa constantemente em minhas escolhas como ator e diretor. Na dúvida, geralmente, prefiro recorrer ao mistério, ao vazio, ao silêncio e à ambiguidade como forma de não representação do que optar por uma expressividade unilateral e óbvia. E foi ao longo deste estudo que distingui inúmeros procedimentos de diretores que, na eterna luta contra os clichês, o exagero e as obviedades da atuação, dialogam com a busca pela presença do silêncio, do vazio e da ambiguidade. Não se trata de uma procura pela construção do sentido, mas por seu deslizamento. Silêncio e vazio podem ser compreendidos como gestos eficazes no deslizamento do sentido e na desconstrução da representação.

Podemos perceber, por exemplo, como o conceito de espaço vazio de Peter Brook não se relaciona, o seu entendimento, apenas com a ideia de um espaço físico, mas com o encontro, no vazio e na imobilidade, da possibilidade de os atores estarem presentes. Para o diretor:

Sentar-se imóvel ou ficar quieto requer muita coragem. A maioria das nossas manifestações exageradas ou desnecessárias provêm do pavor de não estarmos realmente presentes se não avisarmos o tempo todo, de qualquer jeito, que de fato existimos. Isso já é um grande problema do dia-a-dia, em que as pessoas nervosas e incontroladas podem nos infernizar a vida; mas no teatro, onde todas as energias devem convergir para o mesmo fim, a capacidade de reconhecer que se pode estar totalmente “presente”, embora aparentemente sem “fazer” nada, é fundamental (BROOK, 2005, p. 18).

Na obra de Brook há diversos procedimentos no sentido de a imobilidade, o silêncio e o vazio se tornarem presença. Influenciado pelo zen budismo, ele encontrou no teatro a possibilidade de experimentar a “realidade absoluta da extraordinária presença do vazio, em contraste com a confusão estéril de uma cabeça entulhada de pensamentos” (BROOK, 2005, p. 19). O seu trabalho, assim como o de Grotowski, direciona-se predominantemente ao esvaziamento e à desconstrução. Ele afirmava também que preparar uma personagem “[...] é o oposto de construir – é demolir, remover tijolo por tijolo os entraves dos músculos, ideias e inibições do ator que se interpõem entre ele e o papel, até que um dia, numa lufada de vento, o personagem penetra por todos os seus poros” (BROOK, 1995, p. 63).

A diretora Arianne Mnouchkine, que costuma realizar uma espécie de workshop com os novos atores do Théâtre du Soleil, desenvolve constantemente com os participantes alguns princípios básicos de seu trabalho. Para ela, há uma tendência no ator em querer evidenciar tudo o tempo todo, quanto é preciso, antes de mais nada, “aprender a dar espaço à respiração, inscrever pausas e aceitar a imobilidade” (MNOUCHKINE apud FÉRAL, 2010, p. 43). Esse processo visa abrir espaço para a imaginação do espectador, pois ele não terá essa oportunidade se o ator revelar todas as intenções por meio de seus gestos e palavras. Para Josette Féral (2010, p.44) “[...]somos reféns da ‘tagarelice’ cênica, que Mnouchkine denuncia e da qual quer fugir”.

cinema, na televisão ou em qualquer captação de imagem com uma câmera, já que essa tecnologia registra os mínimos detalhes e gestos. Assim ocorre principalmente quando os atores não permitem o silêncio ou enfatizam sobremaneira as intenções que envolvem a cena. Apesar de inúmeros cineastas trabalharem com um registro que vise conferir espaço à expressividade do ator, comumente se constata no cinema uma maior proximidade com a estética realista.

Desse modo, é fundamental que o ator, ao trabalhar frente à câmera, consiga transitar entre os diferentes registros exigidos. Para o roteirista e diretor de cinema David Mamet (2010, p. 105), “O bom ator executa da maneira mais simples e menos emocional possível. Isso permite a plateia entender a ideia”. Quando ele se refere a “menos emocional”, podemos entender também como uma maneira de evitar a “tagarelice”, valorizando a contenção, tão fundamental para o cinema.

De modo geral, quando a atuação cinematográfica é inserida no contexto teatral, ela permite desenvolver um registro “menos emocional” ou mais sutil, que, ao ser projetado, possibilita evidenciar uma atuação que provavelmente não teria o mesmo impacto para quem a assistisse no espaço teatral. A exigência desse registro de atuação no cinema interfere não apenas nas imagens a serem projetadas, mas também no trabalho do ator como um todo. Em Misanthrofreak, por exemplo, ao realizar as filmagens para projeção na peça, foi possível mapear impulsos e reações mais microscópicas, que ampliaram a ambiguidade de intenções e ações no palco. A utilização da câmera durante os ensaios constitui-se como ferramenta extremamente importante para gerar outras percepções ao ator, permitindo que ele identificasse, no registro videográfico, os seus mínimos impulsos.

A proposta de contenção para o ator, por meio do esvaziamento e do registro com a câmera, ocorre, então, no sentido de permitir mais ambiguidade à atuação, e não necessariamente para que ela seja “menos emocional”. Essa busca pelo vazio e pelo silêncio é também uma maneira de priorizar mais a materialidade e a presença do corpo a fim de enfatizar sua performatividade, sem propriamente excluir as possibilidades de representação e construção do sentido.   O conceito de matidez, proposto por Jacques Lassalle e Jean Loup Riviére, é o que, neste contexto, melhor sintetiza a ideia de conter e esvaziar, mantendo uma constante tensão interna, a fim de revelar. Para os autores, matidez

[...] é a recusa do pleonasmo, da muita homogeneidade de signos e da ausência de tensão, de contradições entre os elementos da representação. Trata-se de introduzir no centro de cada proposta, senão o seu contrário, ao menos o seu correlativo contraditório. A matidez tem mais a ver com o translúcido do que com o

transparente. Ela implica um jogo que não seja jamais irremediavelmente declarativo [...] Em termos de técnica teatral, a matidez corresponde, primeiramente, a uma grande economia de atuação. Ela evita o excesso, o hiperatuar, o “tudo está dito”, o “nada mais a declarar” (LASSALLE; RIVIERE, 2010, p. 82 e 83).

Pelo conceito de matidez, sustenta-se a ideia segundo a qual não apenas a ação pode ser gerada a partir de uma tensão ou mesmo um conflito, mas que a própria “ausência” de ação em si é passível de integrar determinadas tensões. Compreende-se, assim, que o silêncio permite encontrar outros conflitos não tão explícitos em determinadas dramaturgias cênicas ou cinematográficas.

Na peça Misanthrofreak, uma das principais motivações era que todo o trabalho fosse conduzido por diversos níveis de tensões, de forma que estes não apenas motivassem a criação, mas também integrassem a dramaturgia em si. Tensão fundamental para a criação de Misanthrofreak está presente na opção de colocar em dúvida qualquer ação ou decisão durante a peça, principalmente porque uma das questões centrais versava sobre a dificuldade de se tomar uma decisão. Nessa perspectiva, a peça iniciava e terminava com a personagem sentada entre dois módulos. Em um deles, havia um copo de Coca-Cola; no outro, um copo de suco, ambos remetendo à sua principal dúvida: continuar a vida do mesmo jeito ou mudar, fugir e se isolar? A tensão encontrada no questionamento quanto à tomada de decisões foi também motor para a movimentação da personagem. Definiu-se, diante dessa opção, que qualquer ação ou gesto sempre se originaria em um movimento de oposição. O trabalho foi inspirado nos procedimentos de Eugenio Barba, para quem a oposição, como um dos princípios-que-retornam150 da Antropologia Teatral, é entendido não apenas como oposição do movimento, ou seja, como resistência contrária, mas também como um princípio da atuação. Julia Varley, atriz do Odin Theatre, dirigido por Barba, esclarece:

Oposição, para mim, como atriz, é uma forma complementar de pensamento, ação, sensibilidade, vontade, intenção e resultado. Uma oposição é caracterizada por tensões antagônicas entre si. São as oposições que me mantêm em pé: a vontade de olhar para cima contrasta com o peso inerte do meu corpo; a energia muscular mantém ereta a estrutura do esqueleto, atraída ao solo pela força da gravidade. As oposições reportam aos princípios técnicos e à capacidade de fazer operar juntas disciplina e liberdade, presença e vulnerabilidade, rapidez e imobilidade, desejo eufórico de avançar e consciência do resultado final (VARLEY, 2010, p. 61).

É possível pensar o conceito de oposição exposto por Varley como uma ambivalência                                                                                                                

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Trata-se de conceito próprio da Antropologia Teatral que visa identificar princípios, nos mais diferentes modos de expressão, sempre recorrentes durante a performance, seja ela teatral, uma manifestação popular, arte marcial ou dança. Princípios como oposição, equilíbrio, omissão e equivalência são aprofundados nos livros sobre Antropologia Teatral. Para Barba (2009, p. 31), “descobrir esses princípios-que-retornam é a primeira tarefa da Antropologia Teatral”.

que funciona como motor para diversas camadas da atuação. Em Misanthrofreak, além das ambivalências ou oposições que regeram as ações e os movimentos da peça, todas as intenções também se concretizaram por intermédio de uma oposição. Vale ressaltar novamente que, mais do que resistência e oposição na maneira como efetivadas nas ações, as intenções eram trabalhadas com uma ou mais finalidades opostas, que podem ser comparadas ao conceito de subtexto. Assim como a multiplicação de subtextos trabalhada por Cassavetes com seus atores, conforme abordado no segundo capítulo, a ideia na peça − e neste estudo − é que as intenções se materializem com ambiguidade e multiplicidade com base em dois, três ou mais subtextos.

Outra possibilidade de pensar a oposição refere-se ao contexto da improvisação, o que será elaborado a seguir. Neste momento, é interessante enfatizar, juntamente com as pesquisas do diretor Mikhail Chekhov, a importância da tensão, oposição e ambivalência como trânsito constante entre dimensões distintas, a fim de se conferir maior dinamicidade para a atuação.

Só a polaridade, por exemplo, salvará a performance da monotonia e lhe dará maior expressividade, como sempre acontece com os contrastes; também aprofundará o significado de ambos os extremos. Na arte como na vida, começamos a avaliar, compreender e vivenciar as coisas de um modo diferente se as vemos à luz de verdadeiros contrastes. Pense, por exemplo, em opostos como vida e morte, bem e mal, espírito e matéria, verdadeiro e falso, felicidade e infelicidade, saúde e doença, beleza e fealdade, luz e trevas; ou em fenômenos mais específicos, como curto e longo, alto e baixo, rápido e lento, legato e stacato, grande e pequeno, etc. A própria essência de um sem o outro poderia facilmente escapar-nos. O contraste entre o começo e o fim é, na verdade, a quintessência de uma performance bem composta (CHEKHOV, 2003, p. 121).

Com Chekhov, saímos do âmbito das contradições antagônicas para adentrar as contradições não antagônicas. Discípulo de Stanislavski, Chekhov sistematizou procedimentos para o ator considerando o princípio de contrastes como um fundamento para viabilizar maior dinamicidade para a atuação, salvando-a da monotonia. Essa dinâmica se atualiza aqui na forma de uma atuação complexa e ambígua, na qual todas as ações, intenções, movimentos, composições e ideias precisam ser determinadas com ambivalência. O estudo sobre a oposição complementa ainda a ideia de uma presença do vazio e do silêncio, e que ambos também podem ser pulsantes, vivos e presentes.

Na peça Misanthrofreak, em diversos momentos, me propus a trabalhar o silêncio e a imobilidade como presença. Assim ocorreu quando, por exemplo, me dirijo até a boca de cena151, no começo do espetáculo, fixo o meu olhar na plateia por minutos. Nesse momento,                                                                                                                

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apesar de haver o acompanhamento de uma música melancólica, o silêncio é estabelecido como uma modulação da escuta, pois a imobilidade e silêncio do ator, assim como o contato com o olhar silencioso de cada espectador do teatro, provoca a escuta recíproca, estabelecendo afeto entre eles. O silêncio é entendido, nesse caso, como possibilidade de modular a escuta para estabelecer uma comunicação para além das palavras. A cena visava instaurar uma relação entre o corpo no palco e os corpos na plateia, propiciando aos espectadores vivenciarem não apenas um corpo vivo, mas um corpo carregado de afeto. Um dos caminhos para esse fim foi justamente modular a escuta em seu aspecto mais amplo e sinestésico, mediante o silêncio.

Materializar a imobilidade, o silêncio e o vazio como potências de presença é efetivar o trânsito e o devir de intenções e (in)tensões; é quando os olhos, a respiração e todo o corpo deseja condensar o instante por sua matéria viva e pulsante.