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A Presidência Fernando Henrique Cardoso: esforços preparatórios

4. A AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA: CONSTRUÇÃO DE UM

4.3.3. A ABIN

4.3.3.1. A Presidência Fernando Henrique Cardoso: esforços preparatórios

O processo de criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) foi iniciado em 1995, por meio da Medida Provisória nº 813, de 1º de janeiro, que reestruturava o Poder Executivo, transformando a Secretaria de Inteligência em Subsecretaria de Inteligência, subordinada à Secretaria de Assuntos Estratégicos, órgão responsável por “promover, elaborar, coordenar e controlar estudos, planos, programas e projetos de natureza estratégica”. Autorizava, ainda, a criação de uma Agência Brasileira de Inteligência,

“autarquia federal vinculada à Presidência da República, com a finalidade de planejar e executar atividades de natureza permanente relativas ao levantamento, coleta e análise de informações estratégicas, planejar e executar atividades de contra-informações, e executar atividades de natureza sigilosa necessárias à segurança do Estado e da sociedade”.

Iniciou-se, assim, o processo constitutivo de um órgão de inteligência democraticamente funcional, criado pelo novo regime com, almejava-se, um mandato claro e a sujeição a um mecanismo de controle democrático eficaz, que reduziria os riscos de desvios e abusos. Nesse espírito, alguns congressistas decidiram opinar a respeito do novo órgão e seus objetivos. Destacamos aqui a proposta do deputado Jacques Wagner, que apresentou o Projeto de Lei nº 1.279, de 29 de novembro de 1995, com um enfoque prioritariamente externo. À inteligência competiria a coleta e processamento de dados e informes e a difusão de informações sobre as capacidades, intenções e atuações de Estados estrangeiros que pudessem afetar a segurança ou interesses nacionais; a contrainteligência consistiria na “obtenção de conhecimentos e nas ações desenvolvidas contra espionagem, atuação de órgãos de inteligência estrangeiras e contra todas as outras atividades atentatórias ao Estado Democrático de Direito e à Soberania Nacional, promovidos por Estados estrangeiros”.260

Esse projeto, como as demais propostas que tentavam influir nos rumos da inteligência brasileira, foram descartados em audiência pública da Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, que em 21 de maio de 1996 decidiu esperar a iniciativa do Poder Executivo a respeito da matéria. Foi encarregado de elaborar o Projeto de Lei do

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Executivo o general Fernando Cardoso, chefe do CIE na gestão Collor, o qual desentendeu-se com o Secretário-Geral da Presidência, Eduardo Jorge, quanto ao momento de apresentação da proposta e deixou o projeto em abril de 1996. Assumiu então a tarefa o general Alberto Mendes Cardoso, Ministro-Chefe da Casa Militar, que logo declarou à imprensa que o novo órgão cuidaria predominantemente de questões relativas à segurança da sociedade e do Estado, tais como o narcotráfico, o contrabando de armas, a espionagem, a “manipulação” das causas sociais justas e outros261.

Na audiência de 21 de maio de 1996, o general Alberto Cardoso delineou os objetivos-chave da nova agência. Seria um órgão de Estado, desideologizado e apartidário, centralizaria a inteligência produzida por um sistema de agências de inteligência e estaria submetido ao controle dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, desde a escolha de seu chefe até a autorização para a execução de atividades sigilosas. A inteligência seria definida como “ação voltada para o interesse do Estado, com relação a grupos ou potências estrangeiras, baseadas em hipóteses de obstáculos ou impedimentos a interesses do próprio Estado” e a contrainteligência como a defesa interna contra a inteligência estrangeira. Defendeu, por fim, a atuação sobre grupos nacionais que atentem contra a sobrevivência do Estado e os interesses da nação262.

Dos debates ocorridos nessa audiência, destacaram-se dois pontos. Primeiro, o esforço em creditar a nova agência com um pendor democrático, de defensora do Estado e protetora “invisível” da sociedade. Como visto no capítulo 2, são em certa medida contraditórios o desejo por submissão total da atividade de inteligência a controles internos e externos de toda sorte e a expectativa de que esse órgão seja eficaz e, principalmente, eficiente. Em outras palavras, há um embate entre a necessidade de controle e a demanda por inteligência oportuna e completa. O segundo ponto diz respeito à precariedade dos conceitos com os quais trabalhavam os gestores do processo constitutivo da futura ABIN. Ainda muito vagas e permissivas, as definições usadas por Alberto Cardoso deixam a impressão de que seu criador pretendia não “engessar” a inteligência com um mandato constrangedor. Contraditoriamente, ao ofertar uma missão excessivamente ampla, Cardoso indicava que o novo órgão teria que tratar tantos assuntos distintos que seria pouco provável a realização de trabalhos especializados de sucesso.

Uma das críticas mais perspicazes feitas durante a audiência merece destaque

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ANTUNES, 2000, p.144; FIGUEIREDO, 2005, p.492 262

CARDOSO, Alberto, Brasília, 21 de maio de 1996. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. Núcleo de Revisão de Comissões. Câmara dos Deputados. Apud ANTUNES, 146

pela sua contemporaneidade. O professor Thomaz Guedes da Costa apresentou quatro ressalvas ao que era proposto pelo general Cardoso e seus assessores. Primeiro, a abrangência da missão da inteligência impedia a efetiva identificação da missão reservada à inteligência e, consequentemente, das permissões e limites legais à sua atuação. Segundo, o foco sobre o uso da inteligência como mecanismo de prevenção presidencial contra surpresas e escândalos encerra demandas por investigações políticas sobre pessoas e grupos contrárias à missão ideal da atividade. Terceiro, é necessário focar a inteligência na obtenção de dados sigilosos de interesse nacional. Por último, a proposta de uma legislação reduzida que facilitaria a tramitação rápida da proposta conflita com as necessidades democráticas de regulamentação extensiva de atividades que lidam potencialmente com a violação de direitos e simplesmente reproduziria inercialmente as disposições que afetavam então a SSI263.

Ao mesmo tempo que o novo órgão era debatido no Congresso, foi criado pelo Decreto nº 1.895, de 6 de maio de 1996, no âmbito da Presidência da República, a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo (CREDENa), “com o objetivo de formular políticas, estabelecer diretrizes, aprovar e acompanhar os programas a serem implantados, no âmbito das matérias correlacionadas”, inclusive as atividades de inteligência. Comporiam, a priori mas não exclusivamente, a CREDENa o Ministro da Justiça, o Ministro da Marinha, o Ministro do Exército, o Ministro das Relações Exteriores, o Ministro da Aeronáutica, o Ministro Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República, o Chefe da Casa Militar da Presidência da República, e o Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Em 19 de setembro de 1997 foi apresentado ao Congresso o Projeto de Lei nº 3.651, que regulamentava a atividade de inteligência e propunha a criação do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), cujo órgão central seria a ABIN264. Na Câmara dos Deputados, foram apresentadas três emendas “regulares” ao projeto, dentre as quais destacam- se para o presente estudo as propostas de definição da atividade como típica de Estado (deputados Daila Figueiredo e Abelardo Lupion) e a equivalência entre o mandato parlamentar e a duração do mandato dos membros da Comissão Mista responsável pelo controle da inteligência (deputado Paulo Delgado). A primeira foi rejeitada pelo Relator do Projeto, deputado José Aníbal, por tratar-se temas de competência da Administração Pública e a segunda foi aceita como forma de garantir continuidade dos trabalhos e sigilo das

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COSTA, Thomaz Guedes da. Brasília, 21 de maio de 1996. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. Núcleo de Revisão de Comissões. Câmara dos Deputados. Apud ANTUNES, 151

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Trabalhamos a partir deste ponto as emendas propostas ao Projeto de Lei nº 3.651, de maneira bastante resumida. Para maiores informações, recomendamos o trabalho ANTUNES, 2000, pp. 152-162

informações trabalhadas pela Comissão.

Houve ainda uma “emenda” do deputado José Genoíno que em verdade era uma proposta substitutiva do projeto em debate. O deputado propôs a criação de três agências de inteligência, uma interna (ABII), uma externa (ABIE) e uma de contrainteligência (ABCI) e apresentou uma definição própria de inteligência, que visa “a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança do Estado”. A proposta de divisão da inteligência em três instituições especializadas, o que poderia otimizar os esforços de coleta e reduzir os riscos de abusos decorrentes da concentração de poder, foi rejeitada por, entre outros motivos, dificultar a fiscalização da atividade. A definição apresentada, que era superior àquela apresentada pelo governo, mas ainda assim carecia de uma delimitação clara das missões que competiam à inteligência, foi incorporada ao Projeto. O deputado Genoíno também propôs a definição de atribuições para o SISBIN, bem como as especificidades de cada órgão que o compõe, ambos aceitos pelo Relator.

Nos momentos finais das deliberações na Câmara, a SSI envolveu-se com a questão das privatizações, em especial da estatal de comunicações Telebrás. Em meados de 1998, uma interceptação telefônica clandestina instalada na sede do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) captou conversas entre o presidente Fernando Henrique, o ministro das Comunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros e o presidente do BNDES André Lara Resende. Em uma das ligações ficou registrado o apoio do governo FHC à proposta encabeçada pelo Banco Opportunity e o interesse presidencial em ter a Previ (fundo de pensão do Banco do Brasil) no consórcio de compra da Telebrás. As suspeitas de manipulação do leilão de venda da estatal motivaram a imprensa a estudar o caso, o que culminou com a identificação de um agente da SSI como autor da interceptação e o envolvimento do então chefe de operações do órgão, Gerci Firmino da Silva, na realização do grampo265.

Em janeiro de 1999, o Projeto seguiu para apreciação pelo Senado Federal, onde recebeu mais propostas de emenda, mas apenas uma delas, de autoria do senador Romeu Tuma e referente à composição da Comissão Mista de controle foi incorporada ao Projeto. As rejeitadas diziam respeito a aspectos da fiscalização externa da atividade e à reserva de cargos em comissão aos servidores do órgão, iniciativa essa motivada pelo receio de “povoamento” dos cargos comissionados por militares da reserva ou servidores aposentados. O Projeto foi

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aprovado pelo Senado e pela Câmara e seguiu para o presidente Fernando Henrique Cardoso para sanção, a qual ocorreu em 7 de dezembro de 1999, quando foi convertido em Lei nº 9.883, a primeira lei de inteligência sancionada na América Latina no pós-Guerra Fria.

Pouco antes, Fernando Henrique editou a MP nº 1.911-10, de 24 de setembro, que transformou a Casa Militar em Gabinete de Segurança Institucional (GSI), parte constitutiva da Presidência da República, cujo chefe possui honras e prerrogativas de Ministro de Estado. Entre suas atribuições encontra-se “prevenir a ocorrência e articular o gerenciamento de crises”, “coordenar as atividades de inteligência federal” e “zelar pela segurança pessoal do Chefe de Estado”. Essas três missões resumem bem o que era esperado com a reformulação do órgão, a proteção da Presidência contra ameaças à pessoa do presidente e autoridades próximas, à governabilidade e ao Estado. Ao contrário da Casa Militar, a chefia do GSI não foi legalmente reservada à chefia militar, mas nos dez anos desde sua criação, foi ocupada por somente duas pessoas, o general Alberto Cardoso (1999 a 2002) e o general Jorge Armando Félix (2002 a 2009). De certo modo, esse padrão é funcional, dado que entre as atribuições herdadas da Casa Militar encontra-se o assessoramento pessoal ao presidente em questões militares.

Por fim, essa MP definiu que enquanto não constituída a ABIN, a inteligência federal, bem como as atribuições de segurança das comunicações, seria exercida pela Secretaria de Inteligência (SI), a qual integraria, transitoriamente, a estrutura do GSI. A SI durou menos de três meses, deixando apenas o legado de continuada subordinação ao estrato militar responsável pelo assessoramento e proteção à Presidência.

4.3.3.2. A Presidência Fernando Henrique Cardoso: nascimento conturbado e imprecisão