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4. A AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA: CONSTRUÇÃO DE UM

4.3.1. Ocaso do SNI

O fim do regime autoritário-militar não significou, portanto, o fim das estruturas autoritárias militarizadas. Pelo contrário, “a transição afiançada pelos militares vai manter a hegemonia de um ethos militar na Inteligência civil”245. O SNI continuou sob o governo Sarney, advogando uma agenda mais coerente com o contexto interno de eliminação do perigo comunista e o momento internacional de enfraquecimento da Guerra Fria, que incluía a espionagem internacional, industrial, os problemas de fronteira e outros. Quando as primeiras eleições diretas da redemocratização aconteceram, em 1989, o SNI passava por uma proposta de reformulação institucional denominado “Projeto SNI”, que estimava as mudanças futuras internas e externas e propunha uma mudança de foco organizacional, no sentido de internalizar a nova realidade pós-Guerra Fria e contribuir para uma inserção segura do Brasil na arena internacional246.

Não obstante, durante o governo Sarney o órgão passou por momentos de indecisão institucional e política. Por um lado, o novo Ministro-Chefe, general Ivan de Souza Mendes, afirma ter dispensado pessoas que não eram confiáveis e reduzido o quadro de pessoal, que ainda assim era de cerca de 2.500 pessoas. Adotou também medidas para aumentar o número de civis no órgão e, numa tentativa mista de transparência com propaganda, convidou a imprensa a visitar as instalações da instituição. Apesar disso, o acompanhamento de movimentos grevistas e outras ações reivindicatórias continuou representando grande parte da atuação do órgão, bem como algumas medidas heterodoxas, como a contagem de bovinos no pasto a fim de identificar tentativas de restrição deliberada na oferta de carnes, realizada durante o Plano Cruzado247.

O descompasso entre o momento político e a doutrina de inteligência fica evidente em uma das várias manifestações públicas do general Ivan Mendes, quando afirma que “a atividade de informações não pode ser exercida totalmente dentro dos parâmetros da

244 FAUSTO, 2006, p.290 245 NUMERIANO, 2007, p.195 246 FIGUEIREDO, 2005, pp.406-408 247 ANTUNES, 2000, p.87

lei”248. Em uma de suas últimas ações à frente do SNI, Mendes aprovou uma nova versão do Manual de Informações, em 22 de março de 1989, que suavizava o linguajar ideológico do Manual anterior, mas mantinha as bases de seu pensamento doutrinário, inclusive a preocupação com as ameaças intestinas advindas da instabilidade social, econômica e política. Ainda hoje, o Manual de 1989 é referência na doutrina de inteligência brasileira.

O general Ivan Mendes, entretanto, buscou mais do que modernizar conservadoramente o SNI. Em um governo frágil, instável e carente de legitimidade como o de Sarney, o Ministro-Chefe da inteligência tornou-se um dos principais conselheiros do presidente, seu primeiro despacho diário.

Em 28 de setembro de 1988, o presidente Sarney editou o Decreto nº 96.814, o qual transformou a Secretaria-Geral do CSN em Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional (SADEN). No dia seguinte, o Decreto nº 96.876 alterou o regulamento do SNI de modo a comportar a alteração supracitada e atualizar o serviço quanto a alguns aspectos novos do contexto internacional, como assistir instituições e empresas a respeito da salvaguarda de conhecimentos sensíveis, e da redemocratização, como a criação de uma Secretaria de Controle Interno e a substituição da prioridade “segurança nacional” no mandato institucional para “soberania” e “defesa nacional”. No último caso, ainda que sejam vocábulos pouco precisos e facilmente manipuláveis, denotam por outro lado uma evolução conceitual da inteligência, consoante com a idéia de que em um regime democrático as ameaças ao Estado não são genéricas (segurança nacional), mas sim específicas e visualizáveis (soberania e defesa nacional). Destacamos, por fim, o parágrafo único do capítulo 4º, o qual pela primeira vez prevê o acesso às informações sigilosas do órgão, ainda que condicionado à discricionariedade do gestor:

“Compete, privativamente, ao Ministro Chefe do SNI, autorizar o fornecimento de informações porventura existentes nos registros do SNI, relativas àqueles que as solicitarem, e decidir quanto aos pedidos de retificação, feitos pelos próprios interessados.”

Pouco depois é aprovada a “Constituição Cidadã”, em 5 de outubro de 1988. Imbuída de anseios democráticos, permeada por uma prolixia legal que visava a dificultar a subversão da ordem democrática e defensora dos direitos humanos e individuais que se tentava sacramentar, a Constituição de 1988 não menciona as palavras “informação” ou “inteligência”, na forma aqui trabalhada. O deputado Eduardo Bonfim (PCdoB) chegou a

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apresentar uma proposta de extinção do SNI, que contava com o apoio dos cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, PCB e PCdoB), mas a proposta foi derrotada no Plenário por 197 votos contra, 121 a favor e dez abstenções. Outros dez projetos buscavam acabar com o SNI, mas nenhum obteve sucesso.249

De fato, são mencionados na Constituição diversos órgãos com atuação conexa à da inteligência, como as polícias federal, rodoviária e ferroviária e as próprias Forças Armadas, mas não há qualquer referência ao SNI. Curiosamente, em seu artigo 12º, parágrafo 3º, a Constituição inclui como privativos de brasileiros natos os cargos da carreira diplomática e de oficial das Forças Armadas, mas não menciona os quadros da inteligência, para quem a nacionalidade configura um fator de suspeição natural.

O único “golpe” contra o SNI desferido pela Constituição de 1988 foi a instituição do habeas data, instrumento que dava aos cidadãos o direito de consultar informações a seu respeito arquivadas em bancos de dados públicos e privados. Apesar da clara ameaça de divulgação das “fichas” individuais mantidas pela inteligência brasileira, a Consultoria Geral da União aconselhou o presidente Sarney a relativizar o artigo no que diz respeito ao SNI, pois o parágrafo 2º do artigo 4º da sua lei de criação isentava a divulgação de informações a respeito da organização, funcionamento e efetivo do órgão. Mais ainda, por ser um órgão de assessoramento presidencial, somente o presidente teria o poder para requisitar- lhe informações reservadas250. O entendimento foi acatado por Sarney, que por meio do Decreto nº 96.876, de 28 de setembro de 1988, outorgou ao chefe do SNI a competência para avaliar os pedidos de informações constantes dos registros do órgão, autorizando ou não sua veiculação ao solicitante, bem como as eventuais retificações por ele desejadas.

Às vésperas das eleições de 1989, as perspectivas do SNI eram, no mínimo, sombrias. Dentre os 22 candidatos à presidência da República, os três que aparentavam ter maiores chances eram Fernando Affonso Collor de Melo, Luís Inácio “Lula” da Silva e Leonel Brizola. Os dois últimos ancoravam-se no pensamento de esquerda e foram vitimados pela repressão durante o regime militar, Lula por ser líder sindical e fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) e Brizola por ter sido o principal aliado de João Goulart. O primeiro, que seria eleito presidente, era pouco conhecido politicamente, mas logo entraria em rota de colisão com o SNI em função da recusa do general Ivan Mendes em recebê-lo antes das eleições. Em suas campanhas, todos os três prometiam extinguir o SNI, e Collor assim o fez em 15 de março de 1990, seu primeiro dia de governo, com a edição da Medida Provisória nº

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FIGUEIREDO, 2005,pp.398-399 250

150 (posteriormente, Lei nº 8.028, de 12 de abril de 1990), o que “may have been more idiosyncratic and emotional than tactical”251.