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Capítulo II A emergência do rock em Portugal em finais da década de 60

3) A problemática dos contextos performativos

A importância predominante da dança nos contextos de apresentação pública destes grupos constituiu, segundo os músicos abordados, um problema de difícil ultrapassagem durante este período inicial. A hoje já típica apresentação de um grupo no contexto de um espectáculo rock num pavilhão ou anfiteatro era quase inexistente, estando estes grupos praticamente confinados – como já foi referido - às actuações no contexto de bailes de finalistas, festas em aldeias e cidades, entre outros. Vários intervenientes sublinham a importância da dança no contexto do baile de finalistas enquanto “...expressão sexualizada da altura” 18, enquanto local de

sociabilização culturalmente aceite entre rapazes e raparigas. Contudo, a necessidade de

17 Entrevista realizada via e-mail, Janeiro, 2011. 18 Entrevista realizada a 9 de Fevereiro de 2011, Oeiras.

apresentar versões de temas conhecidos pelo público, de interpretar repertório de dança, assim como o facto de grande parte destes grupos terem enorme dificuldade em ver o seu repertório editado em disco, dado o fraco interesse editorial em Portugal de apostar nestes novos estilos, inibiu, em alguns casos, a criação de repertório original dentro dos novos estilos do rock. O conceito de “concerto rock” enquanto tipologia de espectáculo intimamente ligada ao género encontrava-se de forma quase exclusiva na apresentação ao vivo de grupos estrangeiros em Portugal. Estes eventos, ao contrário dos bailes, constituíam oportunidades de apresentação de repertório original por parte de grupos portugueses que preenchiam a primeira parte do espectáculo. Outras ocasiões propícias à apresentação de originais enquadrados nestes estilos foram os festivais em crescente número (por vezes realizados em locais como praças de touros, como no Montijo e em Santarém) dedicados à actuação de vários grupos rock, eventos estes subsequentes ao Festival de Vilar de Mouros, em 1971. Carlos Barata, membro do grupo almadense Kama-Sutra desde 1971, que participou no Festival “Música Conceitualto” na Praça de Touros do Montijo em Junho de 1972, juntamente com os grupos Objectivo, Ephedra e Status, considera que a grande distinção entre o baile e o festival residia em saber que “..o festival era um sítio em que em princípio as pessoas não nos iam chatear por só tocarmos originais...no festival as pessoas estavam à espera que nós fossemos tocar aquilo que nós queríamos tocar”19, e

que seria sobretudo para este tipo de evento que o grupo praticava. O grupo Kama-Sutra, inicialmente constituído por Rui Pipas na viola eléctrica, Pedro Taveira na bateria, Gino Guerreiro na viola-baixo e Carlos Barata na voz, desde logo preza pela composição de repertório original, inspirado pelo facto de que o grupo Beatniks – do qual Rui Pipas era membro – já teria, inclusive, gravado composições próprias para edição em disco (como no EP Cristine Goes to

Town, 1971, pela editora Tecla). Apesar do grupo Kama-Sutra nunca ter chegado a gravar para

edição, este apresentava ao vivo composições que Barata caracteriza como “tendo muitas partes, e todas contrastantes”, aspecto que o músico qualifica como forma de o grupo mostrar que era constituído por pessoas “evoluídas”, acreditando na altura que “aquilo era onde nós mostrávamos que éramos minimamente inteligentes”20. Estes originais chegaram, inclusive, a ser apresentados

em alguns bailes de finalistas de liceus. Barata considera que, no início da década de 70, os bailes de finalistas de liceus nas principais cidades do país (como o Liceu Passos Manuel ou o

19 Entrevista realizada a 31 de Maio de 2011, em Oeiras. 20 Ibid.

Liceu Camões, em Lisboa) começam a sofrer uma progressiva – ainda que lenta – mudança na possibilidade de incorporação de repertório original “em que ninguém dançava” intercalado com versões, feito especificamente para “ouvir”, ao qual seria inerente “uma certa solenidade” espectável por alguns membros do público que adoptariam e seriam familiares com as conotações comportamentais atribuídas aos novos estilos do rock. António Pinheiro da Silva, que seria mais tarde membro do grupo Perspectiva, sublinha a importância da transformação do contexto de apresentação de grupos no baile de finalistas enquanto precursor da tipologia do concerto rock:

“...nos próprios bailes, começou a haver uma grande transformação, as pessoas já não utilizavam aquilo essencialmente para dançar, mas para ouvirem. Ou seja, era altura dos solos longos, e de todo um conjunto de factores que levavam a haver uma certa atracção por esse tipo de atitude perante a música, a ouvir a música, na realidade. E então, as pessoas deixavam de dançar, e daí, da parte do próprio grupo...que transformou o baile em concerto...”21

Contudo, em inícios da década de 70, esta realidade constituía mais a excepção do que a regra, mesmo dentro do contexto dos bailes de finalistas, e, sobretudo, durante as apresentações em festas destes grupos por todo o país. Jorge Pinheiro, membro do grupo Ephedra – o qual raramente tocava versões ou animava bailes, exceptuando situações necessárias para o pagamento de prestações de instrumentário e amplificação - sublinha as enormes dificuldades de apresentação de originais no contexto de bailes e festas, afirmando que “ser diferente”, neste período, passava “exactamente [por fazer] o contrário de grupos que fazem covers”22. Numa

entrevista dada ao Diário de Lisboa em 1972, o mesmo grupo afirma que é “...cada vez mais pelo sistema de concertos, já que aí a nossa música pode ser apresentada com unidade e uma certa coesão” (Letria, 1972). Apesar das crescentes transformações, esta dicotomia entre bailes e festivais prolongar-se-ia durante toda a década. Numa entrevista dada ao periódico Rock em

Portugal, e editada em Abril/Maio de 1979, os membros do grupo Apocalipsis – cujo repertório

é caracterizado pelos próprios enquanto “...rock mais progressivo, anti-conservador, rock orquestrado” - afirmam “detestar” tocar em bailes, actividade à qual se cingem, e que a sua maior ambição seria “...poder tocar em festivais, levar ao público a nossa música. Nos bailes não somos

21 Entrevista realizada a 9 de Fevereiro de 2011, Oeiras. 22 Entrevista realizada a 3 de Janeiro de 2011, Oeiras.

bem aceites e o pessoal fica meio parvo a olhar para nós. O que é necessário é que o público comece a cultivar-se a olhar para a música como factor cultural, a compreender que nós tentamos transmitir-lhe algo” (Moreira, 1979). No mesmo número, num artigo intitulado O Baile do

Burgo..., assinado por Fernando Oliveira, o autor critica genericamente as comissões

organizadoras de bailes e festas de todo o país por não ponderarem a inclusão de “...qualquer coisa para além do simples facto de fazer as pessoas dançarem, como um mínimo de qualidade na música que interprete” (Oliveira, 1979). No mesmo artigo, o autor cita ainda várias afirmações do viola-solo José Moreira, do grupo Stop 70, em que este afirma que “...a música original convém realmente é para festivais, onde as pessoas estão é para ouvir...num baile, só cerca de 10% do pessoal aderiria a uma música composta originalmente” (ibid.).

A convergência entre as características musicais inerentes ao repertório de grupos como o Quarteto 1111 e o Pop Five Music Incorporated com os sentidos valorativos que lhe eram atribuídos, assentes no veicular de uma postura auditiva vista como necessária para a recepção e compreensão desta nova música, a qual, segundo os músicos, implicava uma reconfiguração dos eventos performativos, foi um aspecto fulcral na subsequente emergência de um rock visto como “sinfónico/progressivo” no país, a explorar no próximo capítulo.