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A “problemática do matrimônio tribal” e a noção de “mentalidade” nos escritos de

4. A perspectiva missionária e a “mentalidade primitiva”

4.3 A “problemática do matrimônio tribal” e a noção de “mentalidade” nos escritos de

O principal problema apresentado por Valente n'A problemática do matrimônio

tribal23 (1985) consiste no fato de o casamento “tribal”, como praticado “pelos africanos”24, ir contra o que denomina “lei natural”, que seria a lei divina para os povos “não- civilizados” e “não-cristãos”, determinadora de um comportamento “natural”, esperado dos povos que não tivessem ainda tido contato com a doutrina cristã, e portanto admissível até o momento de sua conversão. Assim, coloca-se como problema para o missionário discutir em que medida o casamento praticado pelos não-cristãos se adequaria ou não a esse modelo de casamento “natural”: baseado no amor, no consentimento mútuo e na constituição de uma família a partir dos cônjuges, e não na anexação da família dos cônjuges à família do “patriarca”. (VALENTE, 1985, pp. 13-14). A distinção entre as duas formas de casamento aparece como necessária porque seria indispensável extirpar os elementos não condizentes com esse estado de natureza para que não entrassem em conflito com os desígnios divinos. Os casamentos simultaneamente “pagãos” e “não-naturais” apontariam para a “degeneração” de uma instituição vista como fundadora da sociedade humana. As uniões realizadas em desacordo com a “lei natural” eram, portanto, classificadas como “concubinato”, motivo pelo qual deveriam ser declaradas inválidas pelos missionários.

Do exposto acima decorre, portanto, que a evangelização é concebida em etapas: num primeiro momento, caberia aos missionários extirpar os costumes que afastassem os “não-cristãos” da natureza. Como baliza para o “natural” e o “degenerado”, recorreu-se a exemplos retirados das narrativas bíblicas – principalmente o Antigo Testamento e os Evangelhos –, ao direito canônico, a discursos proferidos por autoridades eclesiásticas e às informações compiladas por Valente no que diz respeito aos usos e costumes locais durante o período em que conviveu com os Ovimbundu como missionário. Todo o esforço de reflexão do autor será pautado pela tentativa de estabelecer linhas

23 Doravante, Problemática.

24 É digno de nota que Valente se refira aos “africanos” em geral, embora seus exemplos empíricos se

restrinjam aos “bundos”. Esse procedimento está estreitamente relacionado à noção de mentalidade empregada e estendida pelo autor a todos os africanos, como veremos adiante.

divisórias entre naturalidade e degeneração, num primeiro momento, e cristianismo e paganismo no momento seguinte, principalmente com base na forma de realização das cerimônias de casamento e dos preceitos morais implicados por elas.

Essa necessidade de definição sobre a validade ou não dos casamentos advinha do problema prático que se colocava para os missionários no cotidiano da missão no que dizia respeito ao catecumenato: não se poderiam admitir catecúmenos que vivessem em concubinato para serem iniciados na doutrina cristã. Em relação a isso, é sugestiva a estupefação de Valente com o fato de essa regra nem sempre ser seguida por todos os missionários. Coloca como problema o batismo de não-cristãos que coabitavam em união não-natural, e portanto inválida, por parte de outros missionários, quando seria necessário primeiramente validar essa união, caso fosse considerada natural25.

Após se certificarem da naturalidade da união pagã, caberia aos missionários apresentar-lhes a doutrina cristã e o caminho a ser percorrido em direção à “civilização”. Ora, a cada um dos estágios que compunham o percurso rumo à “evolução” e ao “progresso” corresponderia uma “mentalidade” distinta. Nas palavras de Valente, cumpriria encontrar uma solução para isso que via como problema, pois Angola necessitaria de uma “mentalização a nível nacional para a desprender de todos os tabus antigos” (ibidem, p. 11). No trecho acima aparece um desdobramento dessa noção de “mentalidade”: a idéia de “mentalização”, cunhada pelo missionário na obra Paisagem africana (VALENTE, 1973a, p. 128) e utilizada ao longo de toda a Problemática. Esse desdobramento implica a transformação da “mentalidade”, resultante dos avanços trazidos pelo “progresso” e pela “civilização”. Se os “africanos” prendiam-se aos tabus por uma questão de “mentalidade”,

25 Essa divergência na forma de proceder dos diversos missionários contribui para o argumento de que

é necessário olhar para os missionários como agentes distintos. O autor da Problemática era certamente representante de uma posição distinta no âmbito da missionação, dedicando-se à reflexão sobre a realidade local e sobre como incidir sobre ela. Ao mesmo tempo que essa queixa de Valente sobre o proceder dos outros missionários remete-nos às críticas freqüentemente dirigidas às missões católicas, de que teria feito vista grossa a uma situação que contradizia sua própria proposta (crítica veemente principalmente por parte de outras denominações religiosas – ver Henderson, 1992; Péclard, 1995), alerta-nos para a particularidade da posição do missionário e aponta discretamente o problema de os registros escritos sobre as missões terem sido, em sua maioria, realizados pelos missionários mais intelectualizados e comprometidos com a criação do projeto evangelizador, afastando-nos da realidade do cotidiano da maioria dos outros religiosos em campo, em sua maioria menos intelectualizados e, por isso mesmo, não produtores desse tipo de registro.

deixariam de fazê-lo a partir da mudança desta. A grande questão para Valente torna-se, portanto, discutir qual a melhor forma de realizar essa transformação e qual o objetivo a ser alcançado.

Uma vez que se considerava que essa “mentalidade” tinha conteúdos, o esforço missionário consistia, em linhas gerais, em descrevê-los para em seguida analisá-los: contrapôr seus elementos problemáticos a elementos da “mentalidade” cristã ou ocidental, traduzindo-os para o universo cristão de modo a delimitar em que medida se sobrepunham ou havia dificuldade de transposição de elementos. Esse processo de “mentalização” seria, em última análise, um processo de “fundir mentalidades” (VALENTE, 1964a, p. 9): os africanos apresentavam aos missionários um conjunto de usos e costumes que implicava uma certa configuração mental; entre esses elementos, havia alguns bons, a serem conservados, e outros ruins, a serem extirpados. O mesmo ocorria, por outro lado, com a “civilização ocidental”, portadora também de problemas e de soluções. A “fusão de mentalidades” ideal seria, portanto, a reconfiguração de uma “mentalidade” comum às sociedades africanas e ocidentais, nas quais se conjugassem apenas os elementos positivos de ambas as “civilizações”. Se a evolução era colocada como patamar desejável a ser atingido pelos africanos, a civilização africana também representava um momento evolutivo no qual ainda não se haviam degenerado certos valores essenciais à natureza humana, como a valorização da vida em comunidade e a efervescência do religioso. É nesse sentido que Valente afirma que “a marcha organiza-se conforme as pernas: rejeitar tudo seria injustiça, aproveitar tudo seria temeridade” (ibidem, p. 10). Caberia ao missionário o esforço de realizar essa triagem.

Além dos substantivos “mentalidade” e “mentalização”, o verbo “mentalizar” aponta para esse movimento progressivo. Na introdução à obra, Valente declara ser impossível “decretar leis sem mentalizar o povo” (VALENTE, 1985, p. 12). Essa conjugação dos estágios mentais com o processo evolutivo leva-nos a imaginar a passagem de um patamar mental a outro, estando a idéia de progresso vinculada à superação paulatina dos diversos patamares, delimitados a partir do conteúdo observável na “mentalidade” de um determinado povo em um dado momento evolutivo. Ora, se a noção de “mentalidade”

está estreitamente vinculada ao que Valente denomina “estruturas”, a mudança nos dois âmbitos teria necessariamente de ocorrer de forma simultânea; ou seja: à “mentalidade tribal” corresponderia uma “estrutura tribal”, e à “mentalidade ocidental” uma “estrutura” social característica do Ocidente.

Na realidade, parece haver uma precedência da mudança estrutural, em termos de organização social, com relação à mudança mental, uma vez que o autor afirma em diversos momentos ser o meio determinante em relação a seus habitantes. Afirma: “Diz-se que o ambiente amolda o homem. Querendo, pois, elevar o homem, só conquistando o ambiente e elevando-o também. Ambos são correlativos. Nesta correlatividade, só debelando as causas, se remediariam os efeitos” (ibidem, p. 33). A proposta do missionário é, portanto, a de uma mudança estrutural, que levaria a uma mudança na “mentalidade”, entendida ao mesmo tempo como psicológica e social. E como os povos sob responsabilidade dos missionários não introduziriam mudanças a essa “mentalidade” por si só, ou o fariam apenas muito lentamente, caberia aos missionários encontrar o caminho para incentivá-los a fazê-lo: a mudança dos conteúdos da “mentalidade” a partir da mudança na estrutura social “indígena”, o meio influenciando seus habitantes.