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2. As macro categorias discursivas de classificação: a Igreja, o Estado e os “indígenas”

2.4 A Congregação e os “indígenas”

A Congregação do Espírito Santo reivindica quase que uma descendência da ordem dos jesuítas em vista das relações históricas estabelecidas entre as duas instituições religiosas. Para além de semelhanças no que concerne ao trabalho missionário propriamente dito, compartilhariam ainda a inclinação para a produção de obras científicas sobre os habitantes das regiões a serem evangelizadas. São muitos os missionários espiritanos produtores de etnografias, dicionários, gramáticas, estudos de geografia e de história natural. O trabalho científico é caracterizado por seus membros como importante, embora acessório à função missionária. Afirmam:

Notre but principal (…) c’est l’évangélisation (…) Tout le reste ne peut être pour nous qu’une chose accessoire (…) Cependant, nous ne devons pas rester indifférents aux intérêts de la science (…) Il est d’ailleurs de ces travaux, tels que ceux sur les langues indigènes, qui rentrent tout à fait dans les oeuvres dont nous avons à nous occuper comme moyens ou conditions utiles pour le success du ministère apostolique. (KOREN, 1982, p. 499)

Essa centralidade do aprendizado das línguas locais é expressa, por exemplo, no fato de os estudos mais significativos sobre o umbundu terem sido justamente o dicionário umbundu-português de Alves (1951), a gramática de Valente (1964), o dicionário português-umbundu de Valente e Le Guennec (1972) e as compilações de contos e provérbios de Valente (respectivamente, 1973a e 1964). O domínio do vernáculo era tão importante por ser o primeiro passo para a compreensão da alteridade “indígena”: para além de instrumento de comunicação, era porta de entrada para o universo mental desses outros. A concepção de que a língua reflete a “alma de um povo”, tão presente nas obras de Estermann e Valente, pode ser estendida a toda a Congregação. O aprendizado da língua local era a primeira tarefa a ser cumprida pelos missionários que chegavam ao campo. E essas línguas refletiam, aos olhos dos missionários, o “estágio evolutivo” no qual esses “indígenas” se encontravam. A classificação e gramatização das línguas locais foi realizada juntamente com o esforço de classificação dos “indígenas” em grupos étnicos8. A cada língua corresponderia, grosso modo, uma etnia. Dessa forma, os “indígenas” eram

8 O esforço classificatório missionário, tanto do ponto de vista étnico quanto lingüístico é extensível a

divididos em “bosquímanes” e “bantos”, com os “bantos” subdivididos em inúmeras etnias, às quais se atribuíam um território, uma língua, costumes e um certo caráter psicológico.

Existem muitos elementos em comum na forma de olhar para os “indígenas” por parte da Congregação do Espírito Santo e do governo colonial português. Ambas as instituições compartilhavam a preocupação com a melhor forma de adequar a diversidade observada ao seu projeto universalizante de cristianização e civilização. Nessa chave, era comum a ambas o esforço de compreender o outro para ser capaz de determinar os elementos que não representavam empecilho a seu projeto, e portanto poderiam ser preservados, e os elementos que o contrariavam, a serem progressivamente transformados. É assim que os “indígenas” deveriam ser guiados, passando pelos diversos estágios de desenvolvimento da escala evolutiva até atingirem o patamar de “civilização” desejado, para o qual, sem dúvida, evoluiriam pari passu com a compreensão e prática da doutrina cristã. Nessa proposta, a leitura racialista da alteridade realizada pela Congregação guarda semelhanças bastante notáveis com aquela que embasou a legislação colonial. Essas categorias discursivas dão acesso a uma leitura da alteridade que determinou a relação dos missionários com aqueles que viam como “indígenas” e foi, por sua vez, determinada por essa mesma relação.

Salta aos olhos que os “indígenas” não são nomeados na maior parte dos registros internos à Congregação. Seus nomes não são mencionados nas cartas dos missionários, muito menos nos relatórios, nos quais são designados ora como “negros” ou “indígenas”, ora como “cristãos”, “católicos” ou “pagãos” nas relações estatísticas. Alguns nomes de “indígenas” são citados, com alguma freqüência, nos artigos de Estermann e nas obras Paisagem africana e A problemática do matrimônio tribal de Valente (respectivamente, 1973a e 1985), quando se trata de caracterizar indivíduos que ilustrem os problemas apontados. É digno de nota, ainda, que esses indíviduos ganhem nomes apenas nas obras mais recentes, do período pós-conciliar, sendo raríssimas vezes mencionados nas obras de Estermann anteriores à década de 70 e em nenhuma das coletâneas, dicionários e gramáticas dos outros missionários da mesma época. Assim, Estermann nomeia algumas “feiticeiras” quando pretende compreender a possessão entre os “bantos” e esmiuçar a

forma como funciona esse processo no qual delas se apoderam os espíritos dos antepassados (ESTERMANN, 1983, p. 356). Já Valente cita alguns nomes para exemplificar como diversas “indígenas” se opunham ao fato de casarem-se sem que isso dependesse de seu consentimento. Menciona ainda, na Paisagem africana de 1973, o papel fundamental que tiveram as narrativas dos catequistas na confecção da coletânea. Nessas instâncias, o ato de conferir nomes aos indivíduos e remeter às situações vividas tem caráter legitimador na narrativa missionária: evocar um sujeito em uma situação concreta transporta o leitor à situação narrada e afirma a legitimidade da narrativa através da presença missionária em campo.

Entretanto, nos registros internos da Congregação e em seus registros destinados ao governo colonial português, os “indígenas” não são nomeados. Diferentemente das obras destinadas ao grande público, cujo intuito é divulgar a ação missionária e civilizadora do Estado e da Igreja, e que não obstante se valeram da mesma grade de leitura, nesses registros internos fica mais clara a forma de classificação operante. Aqui, vê-se como Igreja e Estado compartilharam da visão primordialmente racialista à qual aludi ao tratar da legislação colonial. Não só nas estatísticas, mas também nas cartas trocadas entre os missionários, os habitantes dos territórios a serem evangelizados são tratados ora como “indígenas”, ora como “negros”, tanto quando contabilizados nas estatísticas, quanto ao serem mencionados nas narrativas sobre a vida nas missões. Algumas cartas chegam inclusive a aludir a uma polêmica ocorrida com relação à divisão dos seminaristas brancos e negros em aposentos distintos. Alguns dos missionários colocavam-se a favor e outros contra a prática. A situação é descrita em carta do bispo Junqueira ao superior da Congregação, em 10 de agosto de 1948:

Mais ici, dans mon diocèse de Nova Lisboa, il y a en plus une situation spéciale dont résulte que les prêtres européens ne doivent pas diminuer. C’est sans doute le diocèse où il y a plus d’européens entre tous les dioceses d’Angola, au moins. Ces européens augmentent continuellement. Ils sont dispersés dans toutes les régions de l’intérieur. Or ils n’acceptent pas le ministère des prêtres noirs. Je pensais bien que cette séparation de races irait diminuant peu à peu, mais je constate qu’il en est tout le contraire. C’est un cas qui ne laisse pas de me préocupper, mais je continuerai à développer l’oeuvre du clergé indigène, tant que je pourrai. (arquivo da C.S.Sp., Paris, pasta 3L1.20a6)

Essa hierarquização dos missionários a partir do critério racial, epitomizada na separação física no espaço dos seminários, é bastante ilustrativa das diferenças existentes entre eles9: a hierarquia racial visível na legislação colonial, se era em princípio rechaçada pelo corpus jurídico da Congregação, reproduzia-se na prática das relações entre seus membros. É digno de nota ainda que, ao mencionar um missionário específico, fosse mencionado apenas seu nome, quando “europeu”, e portanto “branco”, e que o nome do dito missionário fosse seguido de “mestiço” ou “negro” quando fosse esse o caso. As listas dos missionários da Congregação em Angola, contendo nome, idade, descrição psicológica e avaliação de desempenho, também discriminavam se o missionário era “branco”, “mestiço” ou “negro”. Em carta ao superior da Congregação cujo intuito é agradecer um breviário, Gabriel Joseph Candide inicia seu texto identificando-se da forma esperada: “je suis un jeune seminariste noir portugais” (carta de Candide a Louis Le Hunsec em 14 de janeiro de 1949, arquivo da C.S.Sp., Paris, pasta 3L1.20a6).

Existe claramente uma diferença de ênfase nos relatórios internos da Congregação e nos relatórios realizados para o governo português: nos primeiros, a ênfase é quase exclusivamente nos processos de evangelização (especialmente projetos de construção de novas missões e desempenho dos missionários, não havendo praticamente menções ao cotidiano das relações com os “indígenas”) e nas questões financeiras, ao passo que nos segundos contemplam-se mais as realizações da missão no que diz respeito ao sucesso obtido na catequização e na educação dos “indígenas”. A maior parte das estatísticas apresentam números como: “católicos”, “catecúmenos”, “batismos”, “casamentos”, “confirmações”, “confissões”, “comunhões”, “tratamentos médicos”, “alunos internos dos dois sexos”, “instrução primária”, “ensino médio”. No quesito “evangelização”, dá-se especial ênfase ao número de “católicos” e à administração dos sacramentos (vista como confirmação da classificação desses “indígenas” como

9 Ao considerar os missionários como agentes, é importante atentar para as diferenças existentes no

interior da categoria. Aqui temos um exemplo fundamental. Outras instâncias desse tipo serão mais bem exploradas no próximo capítulo.

“católicos”). No que diz respeito à “educação”, nota-se a grande maioria dos “católicos” no catecumenato e alguns poucos nos ensinos primário e médio.

Na relação apresentada no relatório quinqüenal a Roma dos anos 1955 a 1960, referente à diocese de Sá da Bandeira, “habité par la même tribu des “Vimbundos” ayant

une seule langue, ce qui facilite beaucoup l'enseignement de la doctine chrétienne”, a

população é descrita da seguinte maneira:

Le nombre d'habitants du diocèse est de 1.204. 776

La surface du diocèse est de 65.560 km2

Le nombre de Catholiques est de 611.518

Dont:

Catholiques indigènes 559.618

Catholiques européens blancs 40.000

Catholiques métis 12.000

Le nombre de catéchumènes est de 54.831

Le nombre de protestants 150.000

Le nombre de païens 388.427

Il n'y a pas de mahométains, ce qui est un grand bien.

Le nombre de Juifs peut être une douzaine, en tout et ils ne partiquent pas. Ce sont des commerçants.

Tabela 2: Descrição da população da diocese de Sá da Bandeira no período que vai de 1955 a 1960. Fonte: Relatório qüinqüenal a Roma dos anos 1955 a 1960, p. 2, arquivo da C.S.Sp., Paris, pasta 3L1.30b2.

O número de “indígenas católicos” é superior ao dos “pagãos”, “fato” que legitima o discurso da adesão dos Ovimbundu ao cristianismo. A presença dos protestantes na relação e seu número reduzido em relação aos católicos, se aponta para a já mencionada competição entre católicos e protestantes, reitera novamente o discuso da preponderância das conversões ao catolicismo em relação ao protestantismo entre os mesmos Ovimbundu. Os catecúmenos são testemunho da continuidade da obra, na medida em que representam potenciais cristãos. No mesmo relatório, são apresentados ainda números exaustivos

referentes à quantidade de missionários, professores, catequistas, catecúmenos, escolas e alunos internos em cada estação missionária.

Nos diversos relatórios e cartas, o processo de estabelecimento das missões e da evangelização propriamente dita é descrito pelos missionários como “florescente” ao mesmo tempo que apontam as dificuldades do trabalho: falta de pessoal, mortes e doenças, dificuldade de fazer com que os “indígenas” sigam a doutrina à risca, competição com as missões protestantes. Assim, os números dos relatórios confirmam a extensão dessa “cristandade”, com o aumento da administração de sacramentos, o maior número de “cristãos”. Ao longo dos anos, acompanha-se nos registros esse crescimento. Constroem-se edifícios, novas escolas, seminários. Formam-se novos catequistas, ordenam-se alguns “irmãos indígenas”, num processo visto como inevitável, mas que se deveria retardar o máximo possível, dada a “falta de preparo” dos “indígenas” no momento para assumir semelhante tarefa. Como afirma Junqueira, tratando da abertura de novas missões, os padres indígenas deveriam ser convocados, quando necessário, apenas se acompanhados de um padre europeu: “il faudrait mettre un seul Missionnaire européen avec un indigène, car

les prêtres indigènes sont tous encore trop jeunes et inexperimentés pour prendre la direction d'une station” (carta do bispo Junqueira ao superior da Congregação em 1946,

arquivo da C.S.Sp., Paris, pasta 3L1.20a6). Em carta de 1958 ao superior da Congregação, afirma o bispo Alves: “Travailler pour les Noirs et négliger les Blancs c’est ça laisser la

tête et soigner les membres” (arquivo da C.S.Sp., Paris, pasta 3L1. 20A7). Vê-se, pois, que

a resistência da Congregação em transferir a liderança da Igreja aos “indígenas” perdurou enquanto foi possível.