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A proclamação da República e o novo clima cultural

A REVISTA A ÁGUIA E A RENASCENÇA PORTUGUESA

1. A proclamação da República e o novo clima cultural

Na sequência lógica do clima sócio-económico e político-ideológico finissecular, e após algumas tentativas falhadas e prematuras, a República é finalmente proclamada a 5 de Outubro de 1910. Essa proclamação era o corolário do ideal republicano que tinha vindo a tomar corpo a partir de 1820, ideal consignado nos postulados de "liberdade de pensamento, igualdade jurídica de todos os cidadãos, solidariedade das diferentes classes sociais" , e que entrosava no ideário da Revolução Francesa, com a sua trilogia axiológica: Liberdade - Igualdade - Fraternidade.

A implantação da República não marca contudo, de imediato, um ponto saliente de clivagem relativamente ao cenário sócio-económico que deixei delineado no capítulo precedente, e isto, em grande parte, porque, como lembra Oliveira Marques, continuava muito arreigada a tendência "para se conceder à palavra 'República algo de carismático e místico, e para acreditar que bastava a sua proclamação para libertar o país de toda a injustiça e de todos os males." Quanto ao clima cultural, é certo que também muitas figuras-charneira do espectro intelectual português não vêem na República proclamada a panaceia para os numerosos males que afligem a vida nacional

'. António Reis, "Republicanismo", in Dicionário Ilustrado da História de Portugal, vol. II, Publicações Alfa, 1985, p. 162.

2. A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, 3." ed., vol. Ill, Lisboa, Palas Editora, 1986,

e nutrem grande cepticismo quanto a uma alteração para melhor, como seria de esperar do novo ethos político. Assim Júlio de Matos, respondendo a um inquérito organizado por Boavida Portugal no diário República, de Setembro de 1912, e intitulado "Portugal Intelectual - Inquérito à Vida Literária" , afirmava a 4-IX: "a nossa literatura, como todas as manifestações da vida nacional presente, atravessa uma fase de assustadora desorientação." Augusto de Castro, respondendo ao mesmo inquérito, em 7-IX, caracteriza o panorama cultural português em termos quase idênticos:

"a época actual é de dispersão - de dispersão económica, de dispersão social, de dispersão intelectual [...]. Portugal atravessa um período de combate, sem ter, aliás, uma literatura ou uma arte de combate. "

E Veiga Simões secunda esta maneira de ver, ao afirmar: "Toda a manifestação artística portuguesa do momento presente oferece-nos um aspecto mesquinho e

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estreito, em que só as mediocridades conseguem triunfar" . Apesar destes juízos negativos, está fora de dúvida que o novo regime constituiu um forte desafio à corrente de pensamento de alguns sectores da intelectualidade portuguesa. O quadro mental de alguns dos seus membros foi sensivelmente alterado, sobretudo pela laicização que passou a imperar nos vários sectores da vida portuguesa, no sentido de uma maior liberdade, de um espírito crítico mais desperto e de uma mais ampla tolerância. A vitória dos ideais republicanos contribuiu inegavelmente para um arejamento de alguns sectores da vida cultural, a partir de 1910. Esse arejamento vai- -se manifestar em várias vertentes. Assim assiste-se a uma democratização do ensino e consequentemente a uma redução da taxa de analfabetismo, a qual, em 1911, se

. As respostas a este inquérito foram mais tarde coligidas em volume, intitulado Inquérito Literário, Lisboa, Liv. Clássica Editores, 1915.

revelava ainda muito elevada. Criam-se as universidades de Lisboa e do Porto (1911), acabando-se, deste modo, com o monopólio que, havia séculos, imperava em Coimbra, de cuja universidade Guerra Junqueiro afirmava que, se se quisesse que desse luz, era preciso deitar-lhe o fogo . Na própria cidade do Mondego, a Faculdade de Letras vem ocupar o lugar da extinta Faculdade de Teologia, muito embora, herdando-lhe as instalações, a biblioteca e parte do corpo docente, lhe herdasse também muitos dos seus vícios, sobretudo o seu conservadorismo intelectual, de raiz filosófica positivista. Surgem, em Lisboa e no Porto, Universidades Livres (1912) e Universidades Populares (1913), as quais, autênticas universidades abertas, procuram ir sobretudo ao encontro das camadas menos favorecidas da população urbana, com a organização de conferências e de cursos, ministrados por especialistas, trabalhando em regime de voluntariado. Essas conferências aparecem depois publicadas em opúsculos que, ou são comercializados a preços módicos, ou até distribuídos graciosamente. Tais universidades vão transformar-se também em centros de agitação radical. Todas estas alterações, porém, importa sublinhar, pouco mais são do que uma gota de água no oceano de intenções e ambições reformadoras da I República . Várias casas editoras divulgam entre a população obras nacionais e traduções de obras estrangeiras, a preços acessíveis. É assim que, pela primeira vez, em 1913, aparecem entre nós, traduzidas, obras de Frederico Nietzsche, editadas por Guimarães & C.a, Lisboa, a saber: Como falava Zaratustra, tradução de Araújo Pereira , e A Genealogia da Moral, tradução

'. Apud Rui Ramos, "Turbulência na República das Letras", in História de Portugal, direcção de José Mattoso, vol. VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 537.

2. Quanto à discrepância entre o real e o ideal, constatável no domínio da democratização do ensino,

ou seja, entre o que se idealizou realizar e o que concretamente se efectuou, veja-se Manuel Ferreira Patrício, "A instrução pública: os limites de uma reforma", in Portugal Contemporâneo, direcção de António Reis, vol. 3 (1910-1926), Lisboa, Publicações ALFA, 1990, p. 233.

3. Manuel Joaquim de Araújo Pereira [1871-1945] foi essencialmente um homem do teatro. Tendo

feito o Curso do Conservatório, revelou-se mestre exímio da arte teatral, tanto como actor como encenador e professor. Desempenhou com êxito os mais variados papeis, merecendo particular destaque a sua actuação em Peraltas e Sécias, de Marcelino Mesquita, representado em 1899 no Teatro Nacional de D. Maria. Como encenador e director artístico levou à cena Amanhã, de Manuel

do Dr. Carlos José de Meneses, criptónimo de Henrique Marques \ Assiste-se, pois, a uma democratização e a uma generalização da cultura. Criam-se movimentos artísticos e literários, de que falarei mais adiante, todos eles caracterizados por uma criatividade

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quase febril , mas também por uma forte componente política. Aliás a política, durante esta fase inicial da I República, será uma omnipresença, como sublinha Oliveira Marques: "Visitantes estrangeiros foram ao ponto de dizer que os portugueses eram o povo mais político do mundo e a diagnosticar a política como doença nacional."3 No

fundo não se trata duma doença, pois política feita no sentido de maior abertura e de mais ampla desinibição vai contribuir para um diálogo mais intenso e mais profundo com os titulares de novas formas de pensamento e com os quais, até então, só esporádica e superficialmente se dialogava. Entre esses titulares contava-se Frederico Nietzsche, o qual, como mais adiante veremos, passava a estar presente, duma maneira mais notória, na cultura portuguesa. Também a imprensa periódica, onde são Laranjeira, O Doido e a Morte, de Raul Brandão, Prezado Amigo, de Rocha Martins, Espectros, de Ibsen, QA Carapuça, de Pirandello. No Conservatório de Lisboa distinguiu-se como professor da arte de dizer e representar. Deixou colaboração em Revista Nova (Lisboa, 1927), em cujo n.° 1, de Janeiro, publicou um curto episódio dramático intitulado "A lápis negro", (pp. 7-10), Quid (Lisboa, 1933), Gleba (Lisboa, 1934) e O que eu sei (Lisboa, 1934). Da sua bibliografia destacam-se: Carteira dum rapaz (1910), Pregar peças (1914) Um conto de Gorki (1914), Nunca mais (1915), Um Pai (1916), Amor de um dia (1918), em colaboração com Luís Castelão, À sombra da tarde (1934). Sem filiação literária e sem revelar ecos de recepção nietzschiana na sua obra, é de admitir que Araújo Pereira tenha chegado a Nietzsche através do teatro. Seria, pois, lógico que tivesse começado por traduzir A Origem da Tragédia, mas nem sempre é a lógica que comanda a actividade cultural.

'. Henrique Marques [1859-1933], escritor, pedagogo e jornalista, colaborou no Dicionário Universal Português Ilustrado e no Dicionário Popular, de Manuel Pinheiro Chagas. Foi redactor de O Correio Português, República, Voz Pública e Século. Deixou colaboração dispersa em Revista Ilustrada (1890-1892), Branco e Negro (1896-1898), Nova Alvorada (1891-1903), Ecos da Avenida (1890- -1926) e Diário de Notícias, entre outros periódicos, usando os pseudónimos de Hemar, Pandemónio, Marcos Lido e Henry Grammont. Da sua bibliografia destacam-se: Bibliografia Camiliana (1894), Bibliografia Pimenteliana (1925), Os Editores de Camilo (1925), Memórias de um Editor (1935). Como tradutor, trabalhou sobretudo para a Livraria António M. Pereira, tendo traduzido inúmeros autores, dos quais merecem particular destaque Nietzsche, Hoflmann, Daudet, Flaubert, Zola, Lotti, Diderot, A. Dumas, Victor Hugo, C. Dickens, Balzac, E. Salgari, Norman Angell, etc.

2. Cf. António Reis, "A Primeira República", in História de Portugal, Alfa, vol. 6, p. 133, e A. H. de

Oliveira Marques, op. cit., pp. 343-359.

. A. H. de Oliveira Marques, Ensaios de História da I República, Lisboa, Livros Horizonte 1988 p. 23.

abordados os temas mais variados, conhece um florescimento e uma proliferação sem precedentes. É nalguns dos periódicos integrantes dessa imprensa, sobretudo nos de mais nomeada, que a maioria dos nossos escritores inicia a sua carreira de plumitivos. De tal avalanche de publicações periódicas merece destaque privilegiado a revista portuense A Águia (1910-1932). Mas não se pode falar desta revista sem falar do movimento cultural de que ela, a partir de 1912, foi órgão, a Renascença Portuguesa.