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A REVISTA A ÁGUIA E A RENASCENÇA PORTUGUESA

2. A Renascença Portuguesa

Falando da implantação da República e do período que de imediato se lhe seguiu, imperioso se torna abordar o movimento da Renascença Portuguesa, enquanto expressão emblemática do novo clima cultural que se ia esboçando entre nós . Abordá-lo na sua génese, nos seus ideologemas, na sua acção e projecção e destacar o papel catalisador por ele desempenhado, bem como o da revista A Águia, qual púlpito onde subiram e donde se fizeram ouvir as vozes mais paradigmáticas da cultura nacional, tal é o objectivo das páginas que se seguem.

Entre 1912 e o declinar dos anos 20 a Renascença Portuguesa, a "mais 2

ambiciosa organização de intelectuais alguma vez vista em Portugal" , exerceu uma acção preponderante na vida artística, cultural e literária, não só dos meios portuenses,

'. Relativamente ao movimento renascentista e ao clima cultural que ele protagoniza são de imprescindível consulta Paulo Samuel, A Renascença Portuguesa - Um perfil documental, e Alfredo Ribeiro dos Santos, A Renascença Portuguesa - Um movimento cultural portuense, obras editadas no Porto, pela Fundação Eng. António de Almeida, 1990.

2. Rui Ramos, "A Renascença Portuguesa", in História de Portugal, direcção de José Mattoso, Lisboa,

mas também do próprio âmbito nacional. Estamos efectivamente perante a agremiação de maior significado e de maior alcance na evolução da vida intelectual e literária em Portugal dos primeiros anos da época republicana. Este movimento, aberto ao pluralismo das ideias e das sensibilidades, traduz uma nova forma de pensar e de fazer cultura. A ideologia e os ideais que estão subjacentes à Renascença Portuguesa e os nomes que a lançaram e dinamizaram congraçaram-se, a partir de 1912, em torno do famoso periódico portuense, A Águia, de grande importância e projecção em todo este processo de ressurgência cultural.

2.1. A Renascença Portuguesa na sua génese

Convictos de que a grande lacuna do movimento republicano tinha sido dar o primado à política, em vez de ter feito preceder o desencadear da revolução duma ampla promoção e educação do povo português, Jaime Cortesão, Raul Proença e Teixeira de Pascoaes, encetavam, em 1911, contactos mútuos com vista a pôr de pé uma associação de artistas e homens de letras portugueses, empenhados tão somente em desempenhar um papel catalisador e pedagógico na sociedade portuguesa. Em carta dirigida a Raul Proença, datada de 26-VII-1911, Cortesão fala expressamente na

"necessidade de fundar uma Associação dos artistas e dos intelectuais portugueses com o fim principal de exercer a sua acção isenta de facciosismos políticos, dentro da actual sociedade. Acção social orientadora e educativa no meio como o nosso, onde não há grandes ideias, nem grandes homens que se imponham" .

. Cf. Jaime Cortesão, Raul Proença. Catálogo da Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984), Lisboa, Biblioteca Nacional, 1985, p. 277.

Concebia essa associação como "uma espécie de Maçonaria de Artistas e Intelectuais, sem o carácter ridículo da outra" . Por sua vez Raul Proença, denotando um grande espírito de tolerância, escrevia:

"Urge concentrar num bloco de renascença nacional tudo o que há de esparso, todas as boas vontades que têm esbarrado com a indiferença, todas as iniciativas que se têm malogrado por falta de uma acção comum persistente. Todas as inteligências que se esterilizam no isolamento. Bloco, sim, mas norteado apenas pelo amor da colectividade, estranho a todas as facções políticas, religiosas e filosóficas, e a todas as coteries literárias e artísticas, e tão largo que nele caibam as tendências mais variadas, contanto que úteis, e os espíritos mais diversos, contanto que dedicados."

A 27 de Agosto realiza-se um encontro preparatório em Coimbra que congrega Jaime Cortesão, progenitor e profeta da ideia, Álvaro Pinto, então director de A Águia, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e Augusto Casimiro, entre outros. Aí se lançaram os caboucos para esse empreendimento, para o qual Pascoaes idealizou o nome de Renascença Lusitana. Pairou nessa reunião um clima anti-intelectualista, consubstanciado no Saudosismo do autor de Verbo Escuro, que pretendia imprimir ao movimento uma força centrípeta, ad intra, com ressaibos de neonacionalismo e de neo-romantismo lusitanista, filiado em Garrett e em Nobre e rejeitando o modernismo de Cesário Verde, Eugénio de Castro e Camilo Pessanha . Ouçamos o próprio Teixeira de Pascoaes expondo, após a reunião de Coimbra, os intuitos do movimento

\lbid., p. 278.

2. Raul Proença , "A Renascença Portuguesa", in^ Vida Portuguesa, n.° 22, 10 Fev. 1914, p. 11.

Reproduzido também no citado catálogo, p. 249.

3. Cf. Jacinto Prado Coelho, "O Saudosismo e os seus valores individuais", in Estrada Larga,

Antologia do Suplemento "Cultura e Arte" do Comércio do Porto, Porto Editora, s/d, vol. I, p. 43. Quanto às características das várias formas de neo-romantismo^veja-se José Carlos Seabra Pereira, "Tempo neo-romântico (contributo para o estudo das relações entre literatura e sociedade no primeiro quartel do séc. XX)", va. Análise Social, Lisboa, vol. XIX (77-78-79), 1983, pp. 845-873.

nascente:

"A Renascença Lusitana é uma associação de indivíduos cheios de esperança e de fé na nossa Raça, na sua originalidade profunda, no seu poder criador duma nova civilização".

E continua, afirmando que a alma nacional se tem vindo a adulterar e a perder o seu carácter genuíno por influências estrangeiras que se têm vindo a fazer sentir no campo político, artístico, literário e religioso. A Renascença Lusitana propõe-se combater essas influências e criar condições para que surjam novas forças morais "que sejam essencialmente lusitanas". O movimento de 5 de Outubro é já expressão desse ressurgimento. Foi o estremecimento do morto, importa abrir-lhe a tampa do túmulo. Essa será a tarefa da Renascença Lusitana. A ideia subjacente à Renascença Lusitana é, pois,

"reintegrar a alma da nossa raça na sua pureza inicial, revelar o que ela é na sua intimidade e natureza originária, para que tome conta de si própria, e se torne activa e criadora e realize, enfim, o seu destino civilizador."

Uma segunda reunião tem lugar em Lisboa, a 17 de Setembro. Nela participam o grupo local contituído, entre outros, por Raul Proença, António Sérgio, Veiga Simões, Câmara Reis, Mário Beirão e João de Deus Ramos, bem como representantes dos núcleos do Porto e Coimbra. Aí são redigidos, nas suas linhas gerais, os estatutos do movimento. As duas figuras que pontificam são António Sérgio e Raul Proença, os quais procuram dar à nova agremiação uma dinâmica diferente da orientação gizada em Coimbra. Reagindo ao lusitanismo fechado de Teixeira de Pascoes, pretendem transformá-la num movimento intelectualista ad extra que desperte interesse, entre

\ Teixeira de Pascoaes, "Ao Povo Português - A Renascença Lusitana", in A Vida Portuguesa, n.° 22, 1914, pp. 10-11.

nós, por tudo o que é europeu ou até universal, por tudo aquilo que, afinal, interessa os intelectuais lá de fora, um movimento que faça a sociedade portuguesa acertar o passo pelo ritmo que impera além-fronteiras. Como escreve o próprio Proença:

"Pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê- -la interessar-se pelo que interessa os homens lá de fora, dar-lhe o espírito actual, a cultura actual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais. Temos de aplicar a nós mesmos, por nossa conta, esse espírito do nosso tempo, de que temos estado tão absolutamente alheados."

É nesta linha de ideias que Proença não está de acordo que o órgão do movimento se chame A Águia:

"A respeito do título, havia efectivamente toda a conveniência em mudá-lo para Renascença, e era bom transigirem daí, porque é do nosso lado que está a razão. 'A Águia' servia magnificamente para título duma revista literári|, exclusivamente literária, de gente moça, exclusivamente moça" .

O movimento nascente tinha objectivos mais amplos que não cabiam numa concepção meramente literária. Estamos, pois, face a duas sensibilidades, distintas e opostas, presentes ao surgimento da Renascença Portuguesa. Uma representando o Sul e encarnada em homens de formação científica e racionalista, outra, a do Norte, consubstanciada em figuras de formação literária, onde predominam os poetas. Mas o aparecimento do n.° 1 da 2.a série de A Águia, de 1-1-1912, é simultaneamente a certidão de nascimento do novel movimento e a afirmação da segunda das sensibilidades referidas. Por isso, Raul Proença e António Sérgio cedo desertarão as

'. Raul Proença, art. cit., ibid., p. 12.

2. Id., Carta, sem data, a Jaime Cortesão, apud António Braz de Oliveira, "Jaime Cortesão e

R. Proença: 30 anos de convívio epistolar", in Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, série 2, vol. 1, n.°s 1-2, Jan./Dez.l986, p. 56.

fileiras da Renascença Portuguesa e demandarão, mais tarde, outras paragens, as da

Seara Nova, concretamente.