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A produção da forma escolar – universo de trabalho do professor

No documento Valeria de Souza.pdf (páginas 31-34)

Um olhar sobre a profissão docente e sobre a identidade profissional do ATP

1.1.1. A produção da forma escolar – universo de trabalho do professor

Segundo Nóvoa (1986), a origem e o desenvolvimento da forma escolar constituem um longo processo e a análise sócio-histórica deste processo pode contribuir com o entendimento da profissionalização docente.

Para Vincent, Lahire e Thin (2001), em suas pesquisas sobre a construção sócio- histórica da forma escolar, a escola deve ser analisada como uma “invenção”, pois tende-se a vê-la como algo eterno e universal. Para romper com esta análise superficial faz-se necessário compreender como os sistemas escolares modernos se impuseram a outros modos de socialização, transformando-se em uma forma de aprender hegemônica. Segundo Varela e Avarez-Uria, em estudo sobre as condições sociais que permitiram o aparecimento da escola nacional, a escola pública, gratuita e obrigatória é datada. Nasce no início do século XX, quando os professores passam a ser funcionários do Estado e algumas medidas eram tomadas para regulamentar a proibição do trabalho infantil antes dos dez anos: “A escola nem sempre existiu; daí a necessidade de determinar suas condições históricas de existência no interior de nossa formação social” (Varela e Avarez-Uria, 1992, p. 68).

Algumas correntes historiográficas da educação partem do pressuposto de que haveria uma história de continuidade da escola. Cometem o anacronismo de comparar em épocas e locais distintos o que, atualmente, se chama de escola:

É, portanto, a análise sócio-histórica da emergência da forma escolar, como modo de socialização que ela instaura, das resistências encontradas por tal modo, que permite definir esta forma, quer dizer, perceber sua unidade (a da forma) ou, mais exatamente, pensar como unidade o que, de outro modo, somente poderia ser enumerado como características múltiplas (Vincent, Lahire, Thin, 2001, p. 12).

Assim, a própria forma de aprender a partir de uma relação social entre mestres e alunos, uma relação pedagógica, é uma invenção histórica. Para esses autores esta relação é inédita, já que outras formas de aprender marcaram a história da humanidade. O que se denomina hoje como sociedades antigas, o aprender não se desvinculava do fazer. A criança poderia aprender com sua própria família em sua casa e o jovem poderia aprender com os mestres artesãos. A criação de um lugar distinto para ocorrer esta nova relação social, denominado escola, também foi cuidadosamente concebido e organizado.

Esta relação pedagógica, portanto, é exercida num espaço fechado, em um tempo determinado e submetido a regras impessoais que irão definir a especificidade do modo de socialização escolar:

A escola não é somente um lugar de isolamento em que se vai experimentar sobre uma grande parte da população infantil, métodos e técnicas avalizados pelo professor, enquanto “especialista competente”, ou melhor, declarado como tal por autoridades

legitimadoras de seus saberes e poderes; é também uma instituição social que emerge enfrentando outras formas de socialização e de transmissão de saberes, as quais se verão relegadas e desqualificadas por sua instauração. (Varela e Alvarez-Uria, 1992, p.83)

Em estudo sobre a construção histórica da escola na Europa, Rui Canário (2005, p. 63), corrobora essa perspectiva de análise, destacando que o nascimento dos modernos sistemas escolares, ocorre na passagem para as sociedades industriais. A criação dos Estados Nacionais e o apogeu do capitalismo liberal também são os cenários para o nascimento e consolidação desse sistema:

A forma escolar introduz e generaliza, em termos históricos, uma forma de aprender em ruptura com os processos que, até então, haviam sido dominantes e que privilegiavam a continuidade da experiência individual e social. Baseando-se num princípio de revelação (o mestre que sabe ensina ao aluno ignorante) e num princípio de cumulatividade (aprende-se acumulando informações), o modo escolar propõe processos de aprendizagem baseados na exterioridade relativamente aos sujeitos. A memorização, a abordagem analítica, a penalização do erro e a aprendizagem de respostas configuram um processo em que a aprendizagem é pensada com base na desvalorização de atitudes de pesquisa e descoberta. Na escola, as crianças deixam de fazer perguntas e passam a dar as respostas que lhe são ensinadas (Canário, 2005, p. 69).

Para Vincent, Lahire e Thin (2001), quaisquer formas de relações sociais estão relacionadas à apropriação de saberes e à aprendizagem de relações de poder:

A análise permite evidenciar as ligações profundas que unem escola e cultura escrita num todo sócio-histórico: a constituição do Estado moderno, a progressiva autonomização de campos de práticas heterogêneas, a generalização da alfabetização e da forma escolar (lugar específico separado, baseado na objetivação-codificação – acumulação dos saberes), assim com a construção de uma relação distanciada da linguagem e do mundo (relação escritural-escolar com a linguagem e com o mundo) devem ser pensadas como modalidades específicas de uma realidade social de conjunto, caracterizada pela generalização de formas sociais escriturais, isto é, de formas de relações sociais tramadas por práticas de escrita e pela relação com a linguagem e com o mundo que lhes é indissociável (Vincent, Lahire, Thin, 2001, p. 18).

É possível, segundo os autores, apontar características dessas “formas escriturais- escolares de relações sociais”:

x O sistema escolar torna-se cada vez mais indispensável em sociedades onde há escrita e, conseqüentemente, uma acumulação da cultura que, numa sociedade oral estava conservada no estado incorporado. Como os saberes são objetivados, a escola é inventada como espaço específico e desvinculado de outras práticas sociais. “ (...) a escola torna-se o lugar cada vez mais central, o ponto de passagem obrigatório para um número cada vez maior de sujeitos sociais (...)”(Vincent, Lahire, Thin, 2001, p. 28)

x O modo de socialização escolar é indissociável da forma escrita dos saberes que serão transmitidas para a geração futura. Os saberes que foram considerados relevantes para esta sociedade conquistam sua coerência na/pela escrita.

x A sistematização do ensino, por meio da codificação dos saberes e das práticas escolares, permite a produção de efeitos de socialização duráveis.

x A escola é o local onde a aprendizagem é uma forma de exercício de poder, fundada na objetivação e na codificação das relações sociais. “Na escola, não se obedece mais a uma pessoa, mas a regras supra-pessoais que se impõem tanto aos alunos quanto aos mestres.” (Vincent, Lahire, Thin, 2001, p. 30). A relação entre professores e alunos no espaço escolar é mediada por uma regra impessoal.

x O acesso ao saber escolar está vinculado ao domínio da língua escrita, sendo objetivo da escola ensinar a escrever e a falar conforme as regras da língua materna.

Além disso, para Vincent, Lahire e Thin (2001) a forma escolar possui alguns traços comuns: a constituição de um universo separado para a infância; a importância das regras de aprendizagem; o tempo organizado racionalmente; a repetição de exercícios e o aprendizado ditado por regras. Estes traços marcam o modo escolar de socialização.

Conforme os mesmos autores, a escola e a escolarização tornaram-se essenciais para a sociedade moderna à medida que contribuem para a produção e a reprodução das formações sociais. As classificações escolares são também classificações sociais. Estas classificações escolares agem em vários setores da sociedade, principalmente no profissional. Segundo Perrenoud, a “excelência escolar” é uma norma de excelência universal, reconhecidas por todos, até por aqueles que não freqüentaram a escola ou que não foram bem-sucedidos, mesmo freqüentando-as. Ainda, segundo o autor, a nossa sociedade está escolarizada a tal ponto que não consegue pensar a educação a não ser pelo modelo escolar (apud Vincent, Lahire e Thin , 2001):

Além da importância da escola e da escolarização nas nossas funções sociais, do papel das classificações, julgamentos e percepções escolares fora da instituição escolar, a predominância do modo escolar de socialização se manifesta pelo fato da forma escolar ter transbordado largamente as fronteiras da escola e atravessado numerosas instituições e grupos sociais (Vincent, Lahire, Thin, 2001, p. 39).

Portanto, o modo escolar de socialização é dominante, pois a forma escolar está amplamente difundida em outras instâncias socializadoras e também está relacionado com a infância de modo que seja o tipo de prática socializadora considerada legítima:

A maneira dominante de considerar as crianças como sujeitos sociais à parte, com direito a se tornarem objeto de ações específicas e adaptadas, resulta da relação surgida com a forma escolar. Esta forma sui generis de relações com a criança, passa pela constituição da infância como categoria particular de sujeitos sociais, suscetíveis de um tratamento particular: a educação. Esta categoria é, aliás, subdividida à medida que se processa a instauração de instâncias educativas específicas a cada idade... (Vincent, Lahire, Thin, 2001, p. 42-43)

Segundo Nóvoa (1986), a história desta escola construída pela sociedade moderna pode ser contada sob diversos prismas: a) por meio das análises do programas e métodos de ensino, b) do estudo das instituições escolares, c) da pesquisa sobre a evolução das disciplinas, ou ainda, d) da análise sócio-histórica do processo de profissionalização da atividade docente, foco específico a ser aqui privilegiado.

No documento Valeria de Souza.pdf (páginas 31-34)