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Capítulo II – A noção de política e o acontecimento enunciativo

2. A produção do conhecimento científico no materialismo histórico

Na produção do conhecimento científico, a ciência está voltada para si mesma, se representa como transparente, não-subjetiva, representada, às vezes, na linguagem pelo enunciador universal, como se estivesse fora da história. No entanto, a produção de conhecimento científico está inscrita na história, com uma língua que é própria desse discurso que representa uma interpretação, dentre outras possíveis, do real, feita a partir de certas posições-sujeito.

Henry (1992) considera que é preciso fazer a distinção entre objeto de conhecimento e objeto real. Segundo ele, o objeto do conhecimento, diferentemente do objeto real, muda porque está inscrito na história. A indistinção levaria à contradição do funcionamento das

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ciências, contradição que é operante mesmo não sendo observada, é o lugar das ideologias no processo de produção dos conhecimentos.

Segundo o autor,

[...] o processo de produção do conhecimento é suscetível de tomar e tomou formas históricas diversas. Tudo o que se pode dizer é que o processo implica uma certa divisão que decorre da contradição objeto real – objeto de conhecimento, a qual funda igualmente, sem que possa ver aí um retorno à concepção continuísta do desenvolvimento das ciências, a autonomia relativa do processo de produção dos conhecimentos (HENRY, 1992, p. 25).

Compreendemos, então, que o objeto de conhecimento, por ser um objeto histórico, possibilita várias interpretações, opondo-se, assim, a uma ciência idealista que se coloca como reveladora de um objeto real, único, como se o conhecimento fosse produzido fora da história, num processo contínuo, sem falhas. Assim, com a indistinção, a ciência é produzida como se fosse contínua, sem falhas, inquestionável, e aquele que a produz se representa como objetivo, como origem do dizer, como se o que dissesse fosse neutro.

Mas, segundo Henry (1992), ao se produzir conhecimento é preciso considerar o par ciência/ideologia e não apenas um desses elementos. Essa distinção também leva o autor a reconhecer que nas ciências idealistas, aquele que produz o conhecimento é um tipo de sujeito específico, o sujeito do conhecimento ou da ciência, universal e individual, que tem a função totalizante do formalismo.

É nesse ponto que Henry, pela crítica ao formalismo que leva ao fechamento da Linguística, chega à crítica às ciências idealistas, assim como o faz Pêcheux (1975). Esse sujeito da ciência leva a uma redução do objeto de conhecimento (constituído sob uma certa formação discursiva) ao objeto real, confusão esta que leva ao imaginário de transparência e evidência dos sentidos e dos sujeitos.

Para Henry (1992), o sujeito da ciência é uma posição dentre outras, uma posição historicamente constituída que não reconhece que o modo de produção do material afeta o processo social e intelectual:

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O materialismo histórico supõe uma posição de sujeito da ciência que rompa com esse sujeito permanente, eterno, seja no fora-do-lugar da verdade ontológica, ou por sua gênese no modelo do sujeito epistêmico piagetiano, integrando o processo de produção do conhecimento, concebido como autônomo com relação à luta de classes (p.128).

O que Henry e Pêcheux nos mostram é que o reconhecimento de que a posição- sujeito da ciência é uma posição dentre outras permite considerar que a produção de conhecimento é realizada a partir de uma discursividade que prevalece sobre outras na constituição do sujeito. Assim, os objetos das ciências podem ter outras explicações que não apenas as canonizadas, legitimadas por uma posição formalista no discurso da ciência.

Le Goff (1977) nos dá um exemplo disso ao tratar das ambiguidades da palavra História. Ele mostra que esta disciplina, ao longo de seu desenvolvimento, foi tratando dos acontecimentos de acordo com a corrente de pensamento de cada período, a partir do conhecimento produzido no Ocidente.

Segundo o autor, a história pode ser, por um lado, a história vivida, isto é, o objeto de procura, e, por outro, a ciência que busca explicar o objeto. Ainda, ela pode ser entendida como a narração dos acontecimentos.

Conforme Veyne, “a história é quer uma série de acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos” (apud LE GOFF, 2003, p. 18). A ciência histórica se daria diferentemente de acordo com certas correntes de pensamento em vigor em determinado período, modificando-se, assim, a forma como vai se produzir a história. Além disso, é o historiador quem organiza a série de acontecimentos, isto é, é ele quem escolhe os acontecimentos que vão ou não entrar na série que vai constituir a narrativa da história.

Outra questão que ele destaca sobre a ciência histórica é a relação entre o passado e o presente. Trata-se da compreensão do passado pelo presente, isto é, é impossível nos desvestirmos do presente para olhar o passado, o que leva a uma contínua reconstrução do passado.

Ou seja, para o autor, a história pode ser sempre re-contada, podendo, assim, haver várias interpretações, já que ao olharmos para o que aconteceu estamos partindo do presente que possibilita entendermos o passado de outras formas. O futuro também

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possibilita outras formas de se olhar para o passado, já que ao se observar os acontecimentos passados, sabemos o que aconteceu depois deles.

Mas, além dessas questões, Le Goff alerta para o fato de que a história se baseia nas noções e concepções ocidentais ou, mais especificamente, europeias.

[...] a história se faz em geral da mesma maneira nos três grandes grupos de países existentes hoje no mundo: o mundo ocidental, o mundo comunista e o Terceiro Mundo. As relações entre produção histórica destes três conjuntos dependem das relações de força e das estratégias políticas internacionais, mas também se desenvolve um diálogo entre especialistas, entre profissionais, numa perspectiva científica comum (LE GOFF, 2003, p. 52).

Como ele afirma, noções como civilização, cultura etc., tiveram sua origem na expansão greco-romana, foram elaboradas em função do imperialismo,e, desse modo, o que é civilizado e o que não é, é considerado a partir desse ponto de vista. Ele cita como exemplo o caso da Índia, que foi considerada como não tendo “história”, uma vez que o seu modo de desenvolvimento, econômico e social, se difere do ocidental.

Assim, para Le Goff (2003, p. 136), “há um alargamento do horizonte histórico que deve trazer uma verdadeira revolução da ciência histórica, devido à necessidade de pôr fim ao etnocentrismo e de deseuropeizar a história”.

Trata-se de uma “colonização” da história que se espalhou pelo mundo. O modelo ocidental de produção científica se difundiu para os países colonizados como o Brasil, desconsiderando-se que há outras formas de se fazer história, de se produzir ciência, com outras interpretações. É, muitas vezes, através do olhar do colonizador que se conta a história do Brasil, que se estuda a sociedade que se formou aqui.

“Desautomatizar” esse olhar sobre o Brasil é justamente o que estamos nos propondo ao questionarmos pela história e política dos sentidos da palavra preconceito em importantes textos das ciências sociais, que buscam dar, no início do século XX, outras interpretações sobre a formação social brasileira, num período de consolidação do país como nação. Para tanto, nosso corpus se constitui por obras de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.

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Não perderemos de vista que eles são locutores que enunciam num espaço de enunciação da ciência tal como vimos no capítulo anterior, e que são, desse modo, sujeitos da ciência que podem enunciar como se suas teorias estivessem à parte da história. Eles falam dos lugares sociais de professores e pesquisadores, que estamos considerando aqui como locutores-cientistas, porque esses lugares os legitimam a produzir conhecimento, mas, como já vimos, são falantes constituídos na relação da língua portuguesa com línguas estrangeiras (línguas da ciência) no espaço de enunciação brasileiro, enunciando de posições-sujeito específicas aos discursos que os agenciam.

Esses autores falam, então, de lugares sociais que os autorizam a falar sobre as relações sociais no Brasil, constituídos diferentemente por certos discursos científicos que circularam no Brasil, como o do evolucionismo, o do marxismo etc., e também por uma preocupação com a “questão nacional”. Também são movidos pela preocupação em mostrar as diferenças da formação social do Brasil relativamente à portuguesa, trazendo as “heranças” e as diferenças que fazem nossa sociedade ser brasileira.

Observaremos, então, nos textos desses autores, falantes da língua da ciência, legitimados a falar do lugar da ciência e, também, do lugar do Estado, no caso de Oliveira Vianna, quais sentidos se constituem para a palavra preconceito pelo modo como ela é designada, de forma a significar as relações sociais no Brasil. Sentidos estes que se dividem, entram em conflito, que são apagados, significando algo das relações sociais. Ou seja, ao mesmo tempo em que esses autores interpretam as relações sociais construindo sentidos para elas, eles são também constituídos enquanto sujeitos agenciados por certos sentidos.

Desse modo, compreender o que a palavra preconceito designa, no interior do acontecimento de enunciação que é político, é uma forma de compreender o modo como a sociedade brasileira é representada pela ciência, no caso as Ciências Sociais, não pelo “conteúdo” que é dado pelo autor, embora ele constitua as evidências dessa representação, mas a partir de um olhar político, observando o litígio dos sentidos da palavra preconceito.

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3. A formação do corpus: a representação das obras no pensamento social