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Capítulo II – A noção de política e o acontecimento enunciativo

1. A questão do sujeito

Um dos elementos importantes que Guimarães elenca para a constituição dos sentidos no acontecimento enunciativo é a constituição do sujeito na e pela linguagem. Para ele, não se trata de pensar o indivíduo enquanto um “ser físico” (2002, p. 11), mas de pensá-lo constituído pelos sentidos na linguagem.

Levando em consideração que estamos trabalhando com a noção de acontecimento enunciativo e, portanto, com a noção de memorável, vamos observar os modos como a palavra preconceito é significada no acontecimento enunciativo. Para tanto, vamos verificar seus sentidos nas cenas enunciativas que se compõem pelos enunciadores tal como expomos anteriormente. O Locutor se representa como a origem do dizer, como responsável pela fala, como se fosse um sujeito uno, mas, ao enunciar, enuncia de um lugar social que estamos considerando aqui, no caso dos autores das obras, como o lugar social da ciência, o locutor-cientista. Os enunciadores enunciam como se estivessem fora da história, ignorando que , quando falam, falam de um lugar social. Desse modo, veremos nas cenas a divisão dos enunciadores e o lugar enunciativo que o locutor-cientista adere na argumentação.

Embora o locutor-cientista se represente como enunciador, como se estivesse fora da história, ele é determinado por uma memória de sentidos.

Assim o Locutor está dividido no acontecimento. E está dividido porque falar, enunciar, pelo funcionamento da língua no acontecimento, é falar enquanto sujeito. Para caracterizar este aspecto recorro, neste ponto, à posição da análise de discurso para a qual o sujeito que enuncia é sujeito porque fala de uma região do interdiscurso, entendendo este como uma memória de sentidos. Memória que se estrutura pelo esquecimento de que já significa (Orlandi, 1999). Ser sujeito de seu dizer, ser sujeito, é falar de uma posição-sujeito (GUIMARÃES, 2002, p. 14).

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Apesar de falar como se estivesse na origem do dizer, fora da história, o Locutor é constituído por uma memória de sentidos. Desse modo, articularemos, em nossas análises das cenas enunciativas, a observação da posição-sujeito da qual o locutor-cientista fala a partir de lugares enunciativos diferentes.

Temos, então, algumas questões que se constituem mutuamente relativas à subjetividade. Uma delas é que o sujeito enuncia de uma posição histórica e socialmente constituída; outra, é que os sujeitos não têm acesso ao modo como os sentidos se constituem nele; e uma terceira questão é que este sujeito se representa na enunciação como se estivesse fora do processo histórico, como se não fosse determinado ideologicamente por uma história de sentidos.

De acordo com Pêcheux (1975), o sujeito é sempre “já sujeito”, isto é, não existe um momento em que são indivíduos sem passar pela linguagem. Entretanto, os sujeitos, ao falarem, colocam-se na origem do que dizem, como se houvesse um antes ou um fora da linguagem. Trata-se do esquecimento número 1, que seria para ele o esquecimento de que o sujeito não pode estar fora da formação discursiva que o domina, esquecendo-se de que há um já-dito que determina o seu dizer. Por outro lado, há o esquecimento número 2, que é o esquecimento de que, além do enunciado dito, há outros possíveis de serem ditos também.

Segundo Orlandi (2001), a constituição do indivíduo em sujeito se dá pela relação da língua com a ideologia. Trata-se do assujeitamento que não é quantificável, não se é mais ou menos assujeitado. Sujeito e sentido se constituem conjuntamente, o sujeito está/é sujeito à língua. No entanto, segundo a autora, a língua é passível de equívocos, que é a falha da língua na história. E pelo equívoco na língua que é possível haver deslocamentos, rupturas, possibilidade de outros sentidos, é o lugar da resistência dos sujeitos.

Para Orlandi, a “subjetividade leva ao equívoco da impressão idealista da origem em si mesmo do sujeito” (2001, p. 105). Ela descreve como se dá o processo de subjetivação. Há a forma sujeito histórica que corresponde à “interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia” através da língua na relação com a história. A ilusão do sujeito ser fonte, origem do seu dizer é considerada necessária para a subjetivação.

Uma segunda parte desse processo seria a forma social capitalista que a forma sujeito adquire através da individualização do sujeito pelo Estado (através de suas

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instituições e suas extensões), o que produz diferenças na produção dos sentidos. Assim, o sujeito tem “a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável, que deve assim responder, como sujeito jurídico (sujeito de direitos e deveres), frente ao Estado e aos outros homens” (ORLANDI, 2001, p. 107).

Na forma histórica do sujeito de direito, o sujeito ignora que enuncia de certas posições. A memória discursiva, isto é, o interdiscurso que está na base do dizer, torna o dizer possível e retorna sob a forma do pré-construído, que sustenta cada tomada de palavra, definindo as posições-sujeito a partir das quais se enuncia, sem que aquele que fala tenha acesso a essa memória de sentidos.

Uma vez que selecionamos um corpus que se configura como uma escrita da ciência, e que, como veremos, o discurso da ciência embora se faça como neutro, objetivo, ele está inscrito na história, somos levados a observar as posições-sujeito que sustentam os sentidos da palavra preconceito na medida em que isso for sendo significativo para a análise. Assim, levando em consideração que somos sujeitos de linguagem, nas nossas análises contrastamos os sentidos produzidos a partir das figuras da enunciação, que enunciam como se estivessem fora da história, com os sentidos produzidos a partir das posições-sujeito.