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A produção da verdade configura-se como um importante mecanismo de ocorrência dos rituais de poderes nos diferentes momentos históricos no mundo ocidental. De acordo com Foucault (2003, 1992, 1984), o desenrolar histórico alçou o inquérito e a confissão como os dois principais instrumentos ou lugares em que o exercício de poder manifesta-se em busca da construção da verdade sobre determinados fatos sociais. Para Rabinow e Dreyfus (1995), além do inquérito e a confissão, o panótipo também se constitui como instrumento ou lugar de rituais de poder. Ao que interessa a este estudo tanto o inquérito quanto a confissão são objetos de análise, uma vez, que os dois institutos são mobilizados no inquérito judicial pesquisado e permite analisar como a justificação e a desculpa (dispositivos de prestação de contas) pode ser interpretada como dispositivo de poder e de resistência durante o inquérito judicial, ou seja, durante as audiências de conciliação e julgamento na Justiça Instantânea Juvenil de Porto Alegre.

Dessa forma, considero que o foco privilegiado deste estudo são as situações sociais constituída das interações entre dois ou mais atores em diferentes contextos. Para levar a termo este estudo utilizo a noção de interação social de Werneck (2013) como instrumento de compreensão das ações dos atores envolvidos nas audiências da Justiça Instantânea Juvenil de POA. É a compreensão dos sentidos e dos motivos das ações dos atores sociais envolvidos nas audiências o elemento que nos possibilita identificar alguns dos entraves que impedem o funcionamento eficaz e eficiente desse sistema de justiça juvenil. Segundo este autor, não se pode confundir interação com relação, pois, enquanto a primeira caracteriza-se por ser a associação básica entre dois ou mais atores que interagem em situações variadas através de vínculos temporários ou pouco intensos num curto espaço temporal; a segunda caracteriza-se por ser uma relação específica entre dois ou mais atores ao longo do tempo entre pessoas que mantêm vínculos mais intensos.

O lugar situacional de análise deste estudo é a sala de audiência de conciliação e julgamento dos adolescentes acusados de atos infracionais no Centro Integrado de Atendimento a Infância e Juventude de Porto Alegre.

A sala de audiência é um lugar marcado pela atuação de diversos atores que desempenham múltiplos “papéis” manifestando diferentes moralidades. Nas audiências juízes, promotores, defensores públicos ou privados, adolescentes acusados e seus familiares atuam de forma a desempenhar os papéis de decisão, de defesa, de mediação e acusação e de acusados estabelecendo interações marcadas pelo exercício do poder e da resistência, o que torna o espaço caracterizado por um conjunto de práticas e dinâmicas, estratégias e táticas de ação que se manifestam nas falas e nos discursos de cada um dos atores. Trata-se de um poder, nos termos de Foucault (1992), que não é essencialmente identificado em um individuo, na legislação ou nos aparelhos de Estado, mas, sobretudo, um poder que é disseminado por todo o corpo social e que não pode funcionar sem uma produção e uma circulação, ou seja, é um poder que se exerce de forma circular e relacional entre os atores que exercem poder e imprimem resistência conforme suas estratégias e táticas de ação.

As disputas de poder entre os atores envolvidos nas audiências não se dão apenas entre os “sagrados”, aqueles com capacidade técnica e social e aptos a atuarem no campo jurídico, mas também, entre os “profanos”, aqueles que não possuem capacidade técnica e social para atuar no campo jurídico e em relação à ocupação dos espaços onde os rituais judiciais acontecem, nos termos de Bourdieu (1989). Sobre isso, Fachinetto (2012) constata que as práticas dos agentes jurídicos nas audiências do Tribunal do Júri em Porto Alegre/RS são permeadas pelo exercício de diferentes formas de poder pelos diversos atores no campo jurídico. Da mesma forma nas audiências da justiça juvenil o poder e a resistência se manifestam através da ocupação dos espaços, no desempenho de papéis e nas manifestações éticas pelos atores durante as audiências no CIACA.

A dimensão ética e espacial do poder expressa durante as audiências no CIACA de Porto Alegre são importantes elementos ao qual o poder perpassa. Para Garapon (1997), quando a justiça em algumas vezes é reduzida ao direito, ao texto legal, ela apresenta-se amputada de uma parte de si mesma, por isso, a justiça deve atentar para outras dimensões além da legal. Este elemento associado à circulação desproporcional de poder entre os atores envolvidos na cena judicial resulta em diferentes percepções da justiça e das práticas judiciárias por estes atores, o que corrobora o entendimento de Garapon (1997) referente à experimentação diversa da justiça entre os diferentes atores, envolvidos no espaço judiciário.

O espaço judicial é um lugar demarcado pela hierarquia e distribuição desigual de poder mesmo entre “sagrados” quanto em relação aos “profanos”, nos termos de Bourdieu (1989). Segundo Garapon (1997), para os “profanos” o espaço judicial exerce um poder inibidor que induz a certa submissão à instituição judicial como, por exemplo, exercendo a função de algema e contenção ao réu ou acusado que mesmo desalgemado passa a ter a sensação de estar “preso” devido à visibilidade que assume durante o ritual judicial. Fachinetto (2012) refere que tal situação no espaço judicial dá uma sensação de “pequenez” ao réu ou acusado, pois, este passa a ser o centro das atenções durante a produção da verdade ou no julgamento.

A produção da verdade em relação à acusação da prática de ato infracional pelo adolescente nas audiências de conciliação e julgamento na Justiça Instantânea Juvenil de Porto Alegre produz o mesmo efeito identificado por Foucault (2003) na retomada da prática do inquérito durante a Idade Média como produção da verdade: há uma atualização das práticas ocorridas no passado e o inquérito é o instrumento que faz prorrogar a atualidade transferindo um fato de uma época à outra. A produção da verdade sobre a prática de ato infracional pelo adolescente acontece por este mesmo mecanismo, porém, de forma oral através do depoimento do adolescente sobre como o fato aconteceu e das suas respostas às perguntas realizadas pelos agentes jurídicos, juiz, promotor de justiça e defensor público sobre o seu comportamento social e sobre a sua participação no ato infracional.

Após a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a produção da verdade no sistema de justiça juvenil de Porto Alegre e brasileiro passou a ocorrer através das audiências de conciliação e julgamento na Justiça Instantânea Juvenil. Tais audiências acontecem, desde janeiro de 2004, no Centro Integrado de Atendimento a Criança e ao Adolescente (CIACA), (situado na Av. Augusto de Carvalho nº 2000, no bairro Praia de Belas, em Porto Alegre/RS) e destinam-se ao atendimento das crianças e dos adolescentes vítimas e em conflito com a lei através do funcionamento específico e da integração dos atendimentos das instituições responsáveis pelo funcionamento do sistema de justiça juvenil de Porto Alegre, composto pelo Poder Judiciário, pela Delegacia da Polícia Civil, pela Promotoria de Justiça do Ato Infracional, pelo Instituto Geral de Perícias, pela Defensoria Pública e pelos membros da equipe técnica de apoio de cada instituição

e pelos agentes socioeducadores da FASERS, que custodiam os adolescentes durante os atendimentos.

A estrutura física do prédio é composta por uma construção em alvenaria com aproximadamente 2,700 metros quadrados, distribuídos em dois andares. A porta de entrada no primeiro piso é guarnecida por três vigilantes de uma empresa privada e por um equipamento detector de metal. À direita no hall de entrada do prédio está situada a Delegacia de Pronto Atendimento ao Adolescente Infrator destinada ao registro das ocorrências de apreensão dos adolescentes em flagrante delito. Do lado externo à sala da delegacia há algumas cadeiras destinadas às pessoas que aguardam o atendimento, pois a permanência no interior da delegacia só é permitida às pessoas que estão em atendimento pelos servidores da polícia. Ao fundo da delegacia encontra-se a sala onde os defensores públicos realizam os atendimentos aos adolescentes apreendidos em flagrante e do outro lado, à esquerda, localizam-se as celas em que os adolescentes ficam detidos aguardando os trâmites processuais. À esquerda do hall de entrada do prédio localiza-se a Delegacia de Atendimento às Crianças e aos Adolescentes vítimas de agressão.

Ao fundo do hall de entrada há uma escada que dá acesso ao segundo piso que é ocupado pelos cartórios de atendimento ao público do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Polícia Civil, bem como pelas salas de audiência da justiça instantânea juvenil e do Ministério Público. Ao lado dos cartórios há diversas cadeiras destinadas ao uso dos adolescentes e dos seus familiares enquanto aguardam a chamada para as audiências.