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4 A efervescência da Psicologia no debate sobre o DSD

5.2. A proteção da criança como arma nos discursos

Nos embates entre as coalizões, o grupo do CFP defende que não se protege a criança/adolescente buscando extrair dela uma prova para incriminar o autor da violência sexual perpetrada, pessoa com quem ela pode ter vínculos afetivos significativos. Por seu turno, o grupo que defende a implantação do DSD, ligado à psicologia do testemunho, sustenta que não se protege a criança sem afastá-la do contato com o agressor, de maneira que se faz necessária a produção da prova para puni-lo e, assim, interromper o ciclo da violência, através da obtenção do relato da criança ou do adolescente vítima do abuso sexual. Apesar dos significados atribuídos à proteção não coincidirem, a função que essa categoria desempenha nas práticas discursivas mostra-se bem convergente. Nessa perspectiva, nos discursos das coalizões, os enunciados da proteção seguem regras de formação bastante semelhantes. A esse respeito, cabe citar como Foucault (2010 [1969], p.98) explica a função enunciativa:

[...] É uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.

A proteção se insere nas estratégias postas em ação para afirmar a positividade do discurso da coalizão que a profere e, por conseguinte, desqualificar o discurso da coalizão de oposição. Nesse contexto, a proteção participa da construção dos consensos e é utilizada nos

discursos como instrumento do qual as coalizões lançam mão para atingir umas às outras, alegando-se que parte da Psicologia protege a criança/adolescente vítima de violência sexual, enquanto outra parte não o faz, conforme pode ser visto nos trechos a seguir:

[...] Ressalvadas as boas intenções de seus proponentes, é legítimo perguntar se os

fins justificam os meios. Ou seja, para reparar um dano podemos causar um outro dano ? [...] É ilusório acreditar que a filmagem do depoimento, por si, elimina

o dano que existe numa tal situação, tornando-se inevitável perguntar o que vem a ser um dano – pois esta pergunta antecede a análise do dispositivo, inventado justamente para proteger crianças de possíveis danos (CFP, 2008, AUDIÊNCIA PÚBLICA NO SENADO FEDERAL, grifo nosso).

O CFP desqualificou o esforço do judiciário, baseado em anos de experiência e constatação do sofrimento de inúmeras crianças e adolescentes, que, inovando aplica recursos do poder público para adaptar salas de fóruns com o objetivo de proteger a vitima de abuso sexual de defrontar-se com seu agressor. Os magistrados informam que uma das razões para a impunidade dos abusadores é, precisamente, o fato de nossas crianças e adolescentes não serem ouvidos em nossos tribunais. Esquece-se o

CFP que o dano maior já foi causado pelo abuso sexual e que a impunidade de agressores, facilitada pela falta de provas, contribui para alimentar a impunidade (SBP; ABPMC, 2010, NOTA DE REPÚDIO CONTRA AS

RESOLUÇÕES DO CFP, grifo nosso).

Em analogia à constante menção ao “interesse da criança” nos discursos proferidos no debate sobre a Convenção Internacional (THÉRY, 2007 [1992]), os enunciados da proteção também conferem austeridade aos discursos no debate sobre o DSD, fortalecendo-os, considerando que se trata de um argumento que causa comoção, que mobiliza a sociedade.

Os enunciados da proteção apontam para uma posição de sujeito a ser ocupada pelos indivíduos que a enunciam, haja vista que todos os enunciados deixam um lugar determinado e vazio, que pode ser ocupado por indivíduos diferentes. O enunciado não é concebido enquanto tal em função de quem o profere, mas porque nele pode ser identificada uma posição de sujeito (FOUCAULT (2010 [1969]). Nesse sentido, os enunciados dessa categoria determinam que todo indivíduo, para ser seu sujeito, assume a postura de quem protege a criança e o adolescente do sofrimento decorrente de um abuso sexual, seja ele integrante de uma coalizão ou de outra.

Cabe assinalar ainda outra regularidade presente na forma de enunciação da proteção, uma vez que esta é associada, frequentemente, à noção de tempo. Nessa perspectiva, a coalizão do CFP condiciona a proteção ao tempo necessário para a elaboração psíquica da violência. Caso os imperativos do processo judicial não permitam que esse tempo seja respeitado, não será possível proteger a criança ou o adolescente. A coalizão do Estado e da psicologia do testemunho também faz referência ao tempo, pontuando que, quanto mais

próximo do evento a criança/adolescente for inquirida, mais se terá elementos sobre os fatos, os quais facilitarão a punição do agressor, o que, para essa coalizão, é imprescindível para a proteção.

Ademais, para afirmar o que é proteger a criança/adolescente e do que se trata a proteção, as coalizões fazem referência às legislações, a exemplo do ECA e da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, no intuito de dar respaldo às suas argumentações, embora cada uma delas interprete os dispositivos desses textos legais à sua maneira. Esse aspecto pode ser observado nos trechos a seguir:

Seguindo o estabelecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos da

Criança, o Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos 28, § 1º, e 111, inciso VI, estatuem o direito da criança/adolescente ser ouvido pela autoridade competente, sempre que possível, seja para manifestar-se sobre a sua eventual

colocação em família substituta, seja para apresentar a sua versão em processo por ato infracional que esteja respondendo (DALTOÉ, 2008, PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO: DIREITO AO DESENVOLVIMENTO SEXUAL SAUDÁVEL, grifo nosso).

Posto estas considerações iniciais, passemos ao que está estabelecido na legislação

nacional sobre a Proteção Integral. Tal proteção encontra-se claramente

formulada no Estatuto, sendo que o seu art. 1º diz exatamente isto: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. [...] Se aprovado o PL, significará o acréscimo de toda uma Seção VIII ao Título VI, do Capítulo III do Estatuto da Criança e do Adolescente, alterando também o Código de Processo Penal. [...] Não consideramos este um acréscimo menor, uma vez que em lugar

algum o Estatuto menciona que crianças e adolescentes devam ser inquiridos judicialmente para produção antecipada de prova, seja como vítima ou testemunha [...]. Portanto, entendemos que o PL não trata da regulamentação de

matéria existente no Estatuto, mas sim acrescenta matéria nova, qual seja, a inquirição judicial de criança e adolescente, vítima ou testemunha, para a produção antecipada de prova (ARANTES, 2008, AUDIÊNCIA PÚBLICA NO SENADO FEDERAL).

No entanto, apesar das consonâncias no que tange à função enunciativa da proteção e às regularidades que ela apresenta nas práticas discursivas, os saberes psicológicos que vão agenciar as intervenções que se dispõem a proteger a criança/adolescente afastam-se completamente, sendo a memória a categoria que irá provocar tal afastamento.