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A proteção da privacidade do candidato como fator de promoção

3. A PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE DO CANDIDATO A EMPREGO NA

3.2. A proteção da privacidade do candidato como fator de promoção

Elencados os fatores de não discriminação e igualdade, cumpre-nos verificar a existência de um nexo de causalidade entre a violação da intimidade da vida privada do candidato a emprego e a violação do princípio da igualdade e do dever de não discriminação no acesso a emprego.

Conforme já mencionado, os dados pessoais e sensíveis da pessoa humana carregam inúmeros caracteres da personalidade e da intimidade de seu titular, a exemplo do nome, da idade, do sexo, da opção sexual, das práticas e crenças religiosas, das opções políticas, das concepções filosóficas, dos aspectos familiares e de parentalidade, dos dados sobre saúde, dentre outros. Com efeito, é possível que

41 a concretização da igualde e do dever de não discriminação no acesso a emprego tenham como um dos meios a proteção à exigência, ao fornecimento e ao tratamento dos dados pessoais do candidato pelo empregador.

Como reflexo do direito fundamental da igualdade e não discriminação, no artigo 26.º, n.º 1 da CRP, o Código do Trabalho, embora não mencione especificamente a igualdade e não discriminação, estabelece uma proibição geral de condutas discriminatórias do empregador em relação ao empregado (art. 22.º, n.º 2 do CT), fundada em fatores de discriminação (art. 23.º, n.º 1 do CT)102.

Nas etapas preliminares à formação do contrato de trabalho, é de se esperar que as partes cedam reciprocamente informações relevantes à concretização do pacto, nomeadamente em relação a aspectos do trabalho a ser realizado, informações sobre a empresa e, por parte do candidato, dados pessoais que revelem as suas qualificações e competências103.

Neste sentido, o Código do Trabalho consagra o conteúdo mínimo de informações que devem ser prestadas pelo empregador ao trabalhador (embora aparentemente extensíveis ao candidato) para a execução dos serviços, a exemplo de dados relativos à retribuição, ao local de trabalho e a descrição das funções. A disposição resulta do Dever de Informação, positivado nos artigos 106.º a 109.º do Código do Trabalho, anteriormente previsto na Lei n.º 5/94, de 11 de Janeiro, que transpunha a Diretiva n.º 91/533/CEE, de 14 de Outubro104.

Não obstante as regras sobre o Dever de informação sejam predominantemente direcionadas ao dever de informação do empregador ao trabalhador, o número 2 do artigo 106.º trata sobre o dever que tem o trabalhador de informar sobre aspectos relevantes para prestação da atividade laboral. Em verdade, o fundamento deste preceito é justamente a irrelevância que têm os aspectos relativos à vida privada do candidato e do trabalhador, na formação e na execução do contrato de trabalho. A doutrina aponta que a imprecisão do termo “aspectos relevantes” é propositada,

102 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direitos de Personalidade... cit., p. 635 103 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Tratado: Parte II... cit.,, p. 157. 104 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Tratado: Parte II... cit., p. 157-158

42 uma vez que representa a tentativa de estender o viés igualitarista105 às partes em

relação ao dever de informar106.

A análise das disposições sobre o dever de informação do trabalhador e do candidato, especialmente durante a formação do contrato de trabalho, deve se coadunar com as limitações relativas à exigência de dados pessoais que revelem aspectos relativos às esferas íntima e privada do candidato, constantes no artigo 17.º do Código do Trabalho. Contudo, pode ser justificado o pedido de determinadas informações relativas à vida privada do trabalhador, nomeadamente para a proteção de regras de saúde e segurança do trabalhador ou de terceiros. Assim, pode ser importante saber se um candidato a motorista infringe leis de trânsito habitualmente, se uma candidata a operadora de radiografia está grávida ou se o candidato a mineiro é portador de doenças respiratórias107.

No Código do Trabalho, o direito à reserva da intimidade da vida privada, no artigo 16.º reproduz a disposição contida no Código do Trabalho anterior e estabelece uma regra geral à proteção à reserva sobre a intimidade da vida privada. De tal maneira, o Código do Trabalho inicia por delinear um direito geral de reserva da intimidade da vida privada, à semelhança dos direitos de personalidade na esfera cível, embora com contornos especificamente laborais, nomeadamente em relação a aspectos da vida familiar, afetiva e sexual, o estado de saúde, as convicções políticas e religiosas. É importante observar que o preceito em causa estabelece o

105 Palma Ramalho aponta a inconsistência material do Código do Trabalho em relação à tentativa de

se estabelecer um regime de proteção igualitarista ao trabalhador e ao empregador. Não obstante se tenha certo o dever de proteção aos direitos de personalidade do empregador, é o trabalhador quem merece uma tutela acrescida quanto a este aspecto, porquanto a posição de subordinação que se encontra torna-o sensivelmente mais vulnerável à violação dos direitos de personalidade. Por conseguinte, a destinação integral ao trabalhador das normas sobre a proteção dos direitos de personalidade nos artigos subsequentes ao 16.º do Código do Trabalho, comprovam essa inconsistência. Cfr. RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direitos de Personalidade... cit., p. 628-629

106 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Tratado: Parte II... cit., p. 158-159; RAMALHO, Maria do

Rosário Palma. Direitos de Personalidade... cit., p. 631

107 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Tratado: Parte II... cit., p.161; ABRANTES, José João, Direitos Fundamentais... cit., p. 27.

43 dever de respeito recíproco aos direitos de personalidade da contraparte, o que revela uma perspectiva igualitarista.108.

Diferentemente do artigo 80.º do Código Civil, o Código do Trabalho acrescenta que o direito à reserva da intimidade da vida privada enquadra não só o acesso a elementos e aspectos relativos à intimidade da vida privada da pessoa, mas também a divulgação destas informações. Neste sentido, a doutrina estabelece que, mesmo nos casos em que uma das partes consinta em relação ao acesso a aspectos de sua vida privada, permanece o dever de não divulgação a terceiros destas informações109.

Com base na regra geral da reserva da intimidade da vida privada, o Código do Trabalho desenvolve um quadro de limitações, a exemplo da proteção de dados pessoais, no artigo 17.º, do regime dos testes e exames médicos no artigo 19.º, da proibição de determinados meios de controle à distância no artigo 20.º, da confidencialidade do acesso a informação e mensagens de caráter pessoal, no artigo 22º. Não obstante o legislador tenha sido claro em relação à necessidade de proteção dos direitos de personalidade de ambas as partes envolvidas no vínculo laboral, a parte mais suscetível a ter seus direitos violados é o trabalhador. Assim, a maioria destas regras não tem aplicação recíproca, já que se destinam à proteção dos direitos de personalidade do empregado.

A limitação em relação à exigência de dados pessoais, contudo, não é absoluta. Em linhas gerais, a exceção à esta regra tem lugar mediante o preenchimento cumulativo de dois requisitos, pautados pela proporcionalidade, necessidade e adequação. O primeiro deles diz respeito à necessidade de que tais informações sejam estritamente necessárias à avaliação da aptidão do candidato ou trabalhador no que diz respeito à prestação laboral, ao passo que o segundo diz que é necessário que o fundamento para tal exigência seja fornecido por escrito.

Em se tratando de dados relativos à saúde e ao estado de gravidez, o requisito da estrita necessidade parece-nos ter de se relacionar objetivamente a potenciais

108 DRAY, Guilherme Machado. Direito de Personalidade... cit., p. 73-74; DRAY, Guilherme in:

MARTINEZ, Pedro Romano et. al. Código do Trabalho Anotado... cit., p. 147.

109 DRAY, Direitos de Personalidade, p. 74-75; MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do trabalho... cit., p.

44 danos que a atividade laboral possa vir a causar ao futuro trabalhador em decorrência de sua natureza. Trata-se de dados relativos à esfera íntima do candidato ou trabalhador. Nesta hipótese, os dados também não podem ser prestados diretamente ao empregador, mas ao médico, cuja análise técnica informará apenas sobre a aptidão ou não do candidato ou trabalhador para a realização da atividade. São disto exemplo os casos dos pilotos de avião, dos atletas e dos trabalhadores submetidos a condições insalubres, bem assim as atividades em que exista fundado receio de danos ao nascituro, caso esteja grávida a trabalhadora ou candidata110.

Na hipótese de não serem cumpridos os requisitos, considerar-se-ia legítima a recursa do empregado em relação às informações que lhe forem solicitadas e que se refiram a sua vida privada, seu estado de saúde ou gravidez. Trata-se de uma hipótese de desobediência lícita, à qual se aplicam as disposições da parte final da alínea e) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho111.

O Código também garante o controle ao titular dos dados que eventualmente tenham sido prestados, consistente no direito a tomar conhecimento, exigir a sua retificação e a sua atualização. Novamente, questiona-se sobre a possibilidade de se requerer o apagamento ou a destruição desses dados, conquanto se verifique um dano ou potencial de dano oriundos da manutenção dessas informações pelo empregador, não haja impossibilidade de assim o fazer ou não exista a necessidade ou dever de as manter.

Ainda sobre a proteção aos direitos de personalidade do candidato, o código estabelece limitações à exigência de testes e exames médicos no artigo 19.º. O preceito em questão determina que o empregador não pode exigir a realização ou a apresentação de testes e exames médicos, de qualquer natureza, para fins de admissão ou permanência no emprego, como forma de preservação da esfera íntima do candidato ou trabalhador112.

110 DRAY, Guilherme Machado. Direito de Personalidade... cit., p. 79 111 DRAY, Guilherme Machado. Direito de Personalidade... cit., p. 78-79 112 DRAY, Guilherme Machado. Direito de Personalidade... cit., p. 83

45 Similarmente ao artigo 17.º, a limitação à exigência de testes e exames médicos encontra exceção nas hipóteses em que, justificadamente, tiverem por finalidade a proteção e a segurança do trabalhador ou de terceiros ou, ainda, quando houver particularidades inerentes à atividade que tornem necessária a realização destes, desde que fornecida a justificativa por escrito. Nestas hipóteses as informações também são prestadas a médico, que se limitará a atestar ou não a aptidão do candidato ou do trabalhador para a realização da atividade113.

Novamente, em matéria atinente ao estado de gravidez, o legislador conferiu proteção diferenciada à candidata e à trabalhadora grávida, uma vez que proíbe, sob qualquer circunstância, a exigência de testes e exames de gravidez à mulher. Considerando, entretanto, a exceção incluída na alínea b) do artigo 17º, “salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade profissional o justifiquem”, concluímos que a vedação à exigência ou a submissão a testes ou exames de gravidez diz respeito à exigência de exames ou testes de gravidez com fins em si mesmos, e que a possibilidade tratada no artigo 17.º se relaciona a testes cujo objetivo seja a aferição das condições de aptidão da candidata ou trabalhadora, nomeadamente em relação à sua saúde ou à saúde do nascituro. Com efeito, se estivermos diante de uma situação de emprego, por exemplo, em que a mulher se candidata ao posto de operadora de radiologia, por certo se justifica a exigência de exames de gravidez114.

Segundo GUILHERME DRAY, a maior proteção conferida aos dados relacionados à saúde se justifica pelo fato de que essas informações integram a esfera íntima do candidato ou trabalhador, ao passo que informações relacionadas à vida privada são próprias da esfera privada do trabalhador115.

Outro aspecto relevante a ser tratado em matéria de proteção da privacidade e da igualdade em relação ao candidato a emprego é o critério da origem, especialmente em relação a trabalhadores estrangeiros, ou apátridas. Segundo um

113 DRAY, Guilherme Machado. Direito de Personalidade... cit., p. 83-84 114 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Tratado: Parte II... cit., p. 161-163 115 DRAY, Guilherme Machado. Direito de Personalidade... cit., p. 80.

46 relatório divulgado pela OIT, estudos realizados apontaram que candidatos a emprego imigrantes têm de apresentar, em média, de três a cinco vezes mais candidaturas em relação aos outros para a obtenção de uma atividade profissional116.

Em relação a estes trabalhadores, o artigo 15.º da CRP estabelece um regime de igualdade entre os cidadãos portugueses e os estrangeiros e apátridas que residam em Portugal em relação a direitos e deveres117. Já o artigo 4.º do Código do Trabalho

garante a igualdade de tratamento em relação aos trabalhadores portugueses, observada a legislação aplicável ao destacamento. O artigo menciona como requisito, também, a autorização para o exercício de atividade subordinada. Em regra, a autorização é exigida aos cidadãos que não sejam nacionais de um dos Estados membros da União Europeia, do Espaço Econômico Europeu ou de Estado terceiro com o qual a Comunidade Europeia tenha celebrado um acordo de livre circulação de pessoas, conforme disposições contidas na Lei de Estrangeiros, n.º 23/2007, de 4 de Julho, alterada recentemente pelas Leis n.º 102/2017, de 28 de Agosto e 26/2018, de 5 de julho.

Relativamente à origem, figuram como aspectos de discriminação, vedados pelo n.º 1 do artigo 24.º do Código do Trabalho, a nacionalidade, a origem étnica, a raça, o território de origem e a língua. O patrimônio genético do candidato ou trabalhador também tem potencial relação com a origem, porquanto testes genéticos, disponíveis inclusive comercialmente118, possibilitam inferir com relativa precisão

aspectos da ascendência de uma determinada pessoa. Mais ainda, a realização de testes possibilita ao empregador conhecer a predisposição a doenças119, cujo fato

116 L Simeone, P. Taran, A Gätcher apud DGERT e Bureau Internacional do Trabalho. Relatório VI - Princípios e Direitos... cit., p. 51

117 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil... cit., p. 181.

118 Por intermédio de testes caseiros de DNA, algumas empresas como a israelense MyHeritage e as

norte-americanas Ancestry e Family Tree DNA, fornecem dados relativos à provável origem étnica a preços acessíveis, assim como também informam a predisposição ao desenvolvimento de doenças. O método passa pela aquisição de kits de para a coleta de material genético, a serem encaminhados via postal ao laboratório destas empresas e que posteriormente fornecem o resultado destas análises.

119 Segundo JOSÉ JOÃO ABRANTES (ABRANTES, José João, Direitos Fundamentais... cit., p. 34-35),

47 pode ser empregado com a finalidade de análise de rentabilidade e ponderação de riscos na seleção de candidatos120.

Com efeito, a conjugação do artigo 4.º do Código do Trabalho, com os artigos 25.º e 17.º do Código do Trabalho parece-nos apontar para a necessidade de cumprimento dos requisitos da estrita necessidade e da justificação na forma escrita (art. 17.º, n.º 1 a)) quando da exigência de dados pessoais que revelem a nacionalidade, a origem étnica, a raça, o território de origem e a língua nativa do candidato.

Isto porque são dados relativos à vida privada do candidato ou trabalhador, e não tem relevância imediata para a prestação laboral. Soma-se a isto o fato de que a legislação preceitua a igualdade de tratamento aos estrangeiros e apátridas em relação aos cidadãos portugueses. Logo, em se tratando de candidato estrangeiro ou apátrida, verificar a existência de autorização para o exercício de atividade profissional subordinada seria critério de seleção suficientemente neutro para fins de formação e execução do contrato de trabalho.