• Nenhum resultado encontrado

A providencial mescla de prerrogativa e privilégio

No documento O manto da invisibilidade (páginas 32-35)

4 A MISTIFICAÇÃO DA CARREIRA DE ESTADO

4.1 A providencial mescla de prerrogativa e privilégio

Cardoso de Oliveira (2011b, p. 38) oferece relevante esclarecimento acerca da persistência recalcitrante de privilégios em oposição à conveniência de estabelecer relações sociais mais equânimes, como meio de atingimento da equidade, ressaltando as contribuições de Taylor22 e Berger23 para as discussões travadas em seus trabalhos, “com ênfase nas implicações da transformação da noção de honra em dignidade para a cidadania, na passagem do regime antigo para a sociedade moderna”:

[...] vários autores têm insistido na importância da noção de igualdade como um componente central da percepção ou dos ideais de justiça (e.g. Rawls24, 1971 e 2001); Boltanski25 (1990); Boltanski & Thévenot26, 1991; Ricoeur27, 2005). Ainda que esta relação entre justiça e igualdade possa ser traçada a Aristóteles, como indica Ricoeur (Idem), ela ganha contornos especiais com o desenvolvimento da ideologia individualista na modernidade (Dumont28, 1986). Assim, o status igualitário passa a ser um forte símbolo de equanimidade nas relações sociais e um parâmetro importante para a avaliação das instituições de justiça, sendo a desigualdade, no plano da cidadania, percebida como uma negação da dignidade daquele que não tem o seu status igualitário reconhecido. Contudo, como o desenvolvimento da cidadania e a força dos ideais de igualdade no mundo contemporâneo não eliminaram a existência de privilégios (tratamento especial ou diferenciado), ainda que contextualmente justificados e situados fora do mundo cívico em tela, o qual não tem a mesma conformação quando passamos de uma democracia para outra, nem sempre o tratamento especial ou diferenciado tem as mesmas características e nem sempre é tomado como uma afronta à dignidade ou à cidadania.

22 Ref. TAYLOR, Charles. The politics of recognition. In: Gutmann, A. (Org.). Multiculturalism and “the politics of recognition”. New Jersey, Princeton University Press, 1994, p. 25-73.

23 Ref. BERGER, Peter. On the Obsolescence of the Concept of Honor. In: S. Hauerwas & A. MacIntire

(Orgs.). Revisions, changing perspectives in moral philosophy. Indiana, University of Notre Dame Press, 1983.

24 Ref. RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge, Massachusetts, Belknap Press of Harvard University

Press, 1971; Justice as fairness: a restatement. Cambridge, Massachusetts, Belknap Press of Harvard University Press, 2001.

25 Ref. BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la Justice comme compétences, trois essais de sociologie de l’action.

Paris, Éditions Métailié, 1990.

26 Ref. BOLTANSKI, Luc. & Thévenot, Laurent. De la justi"cation, les économies de la grandeur. Paris,

Gallimard, 1991.

27 Ref. RICOEUR, Paul. Le juste, la justice et son échec. Paris, Éditions de L’Herne, 2005.

28 Ref. DUMONT, Louis. Essays on individualism, modern ideology in anthropological perspective. Chicago,

32

Noutra passagem, em sede de conclusão do mesmo artigo referido anteriormente, Cardoso de Oliveira (2011b, p. 45) se manifesta acerca da mescla entre direitos e privilégios e demais características observáveis em nossa sociedade que reforçam interesses particulares em detrimento dos interesses gerais, na seguinte medida:

A falta de clareza mais ampla quanto à vigência de direitos e privilégios no espaço público, assim como a falta de transparência no encaminhamento das decisões em nossos tribunais, parcialmente estimulada pelo estilo de contraditório vigente (Kant de Lima29, 2010: 25-51; Cardoso de Oliveira30, 2010), indicam que não devemos subestimar as dificuldades do caminho a percorrer. Nesse sentido, nossos esforços de pesquisa pretendem contribuir para uma melhor compreensão de todas as circunstâncias em que direitos e privilégios se confundem, assim como aquelas em que noções de equidade se misturam com padrões normativos diversos, com vigência estritamente local, mas que dão sustentação a práticas que beneficiam interesses particulares mesmo quando estes afrontam direitos da população mais ampla (MISSE31, 2007, p. 139-157). (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2011b, p. 45)

No plano da discursividade, ao menos, desde que Claudio Lamachia assumiu a presidência nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, vem ressaltando que “a relação entre advocacia, magistratura e demais agentes do sistema judiciário deve ser baseada no respeito recíproco”, o que veio a ser reiterado ao se pronunciar acerca de recente episódio que envolveu a conduta de magistrada, supostamente atentatória às prerrogativas de advogados no exercício de suas funções profissionais32.

Quando do discurso de posse33 na presidência nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Claudio Lamachia enfrentou temas polêmicos como os “formalismos desnecessários”, a persistência de privilégios e do patrimonialismo na sociedade brasileira, o “ostensivo desarme e sucateamento do Poder Judiciário”, dentre outros a que fez alusão, e diante dos quais conclamou a sociedade a promover “reformas de base34”:

29 Ref. KANT DE LIMA, Roberto. Sensibilidades jurídicas, saber e poder, bases culturais de alguns

aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada. Anuário Antropológico, 2010, p. 25-51.

30 Ref. CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Concepções de igualdade e (des)igualdades no Brasil. In: KANT DE LIMA, Roberto; EILBAUM, Lucía; PIRES, Lenin. (Org.). Conflitos, direitos e moralidades em

perspectiva comparada — volume 1. Rio de Janeiro, Garamond, 2010, p. 19-33.

31 Ref. MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados (USP, impresso), v. 21, 2007, p. 139-157.

32 Ver OAB Notícias. Disponível em: http://www.oab.org.br/noticia/29299/oab-denunciara-juiza-ao-cnj-por- desrespeito-as-prerrogativas>. Acesso em 18 mar. 2016.

33 Ver íntegra do discurso proferido na sessão de posse solene de Claudio Lamachia em OAB Notícias. Disponível em: < http://www.oab.org.br/noticia/29328/em-posse-solene-lamachia-conclama-uniao-contra-crise- corrupcao-e-cpmf>. Acesso em 18 mar. 2016.

34 Observe-se que não se tratam das mesmas “reformas de base” contextualizáveis em meados do século passado, sobretudo as reivindicadas durante o governo de João Goulart.

33

[...] Que nossa luta redunde no fim da hipocrisia reinante na atividade política e no Estado brasileiro. Que este país abandone os formalismos desnecessários, e “as

manifestações de apreço ao senhor diretor”, como diria o esclarecido Manuel

Bandeira. Que vejamos o fim das ficções jurídicas, das ficções econômicas e, principalmente, das ficções institucionais. Que com a coragem daqueles que defendem a verdadeira Justiça avancemos de forma irresistível rumo à simplicidade que traz a transparência.

[...] Que os discursos dos agentes políticos sejam para exprimir o que se pensa, e não para se esconder o que se faz. Enfim, chegou a hora de construirmos uma nova

Nação, alicerçada na simplicidade das formas e dos conceitos, que aproxime o povo do centro das decisões. Temos que deixar de ser uma democracia meramente formal para nos tornarmos uma democracia substantiva. Vos

pergunto: de que adianta termos um dos mais formidáveis catálogos de direitos e garantias fundamentais do planeta, com assento constitucional, se vivemos em um regime de rigorosa irresponsabilidade política? Se as autoridades responsáveis pela efetivação de tais direitos não responderem por seus atos, como avançaremos? Ou

os cidadãos deste país continuarão a ter que eternamente mendigar por seus direitos diante das autoridades que, em realidade, são seus empregados? Temos

que superar esse patrimonialismo imobilizante, tão bem denunciado pelo meu conterrâneo e ex-presidente nacional da OAB, o saudoso Raymundo Faoro, que no seu “Os Donos do Poder” descreveu com acurada precisão a formação do patronato político deste país, bem assim suas consequências funestas sobre nossa sociedade. Não é possível que em pleno século XXI essa chaga da herança colonial ainda nos domine, subvertendo nossas instituições, assim como não é possível que, a cada vez

que se propõe alguma medida de controle externo e de arejamento das instituições, as reações sejam virulentas e avassaladoras. Somos uma Democracia. Somos um Estado de Direito. Somos uma República! O Estado é do povo! E de mais ninguém! E todos que nele trabalham devem ter a consciência

de que, tal qual a lição do eterno mestre Hely Lopes Meirelles, “autoridades são

apenas alguns e durante algum tempo; cidadãos somos todos nós durante a vida toda”. Liberdade, mesmo que tardia! É esse o clamor persistente da sociedade

brasileira mesmo passados mais de 200 anos da Inconfidência! Ora, não podemos mais suportar um Estado que trate seu próprio país como se fosse uma colônia! Assim sendo, aproveitemos que os vilões de sempre estão enfraquecidos e muito preocupados com suas defesas, e não desperdicemos a oportunidade histórica de

unificar o Brasil no consenso em torno das reformas de base, única via para o tão

almejado progresso social e econômico. Tinha razão, portanto, Ariano Suassuna, ao afirmar que vivemos em dois países distintos: “o país dos privilegiados e o país

dos despossuídos”. Chegou, repito, a hora de construir. Construir pontes, e derrubar

barreiras. Derrubar preconceitos, e construir escolas. Destruir a corrupção para podermos finalmente construir as estradas, aeroportos, portos, ferrovias e hidrovias que sejam capazes de transportar nossa gente e de exportar nossas riquezas de forma competitiva mundo afora. Nossa situação é de tal maneira crítica que, ou avançamos enquanto Nação, ou pereceremos como povo! Temos que desatar os nós de uma

matriz institucional cuidadosamente engendrada para não funcionar, marcada por fórmulas e ficções, feita sob medida para afastar o povo dos centros de decisão, e dificultar a participação cidadã na vida política. Uma matriz institucional feita sob encomenda para que os representantes do povo se dobrem ao poder econômico, para apartar eleitores de eleitos e para distorcer a representação popular. Enfim, tudo para se fazer uma simulação de democracia, onde o dinheiro pode tudo. Exemplos desta disfuncionalidade, esses os temos à

farta. Comecemos pelo verdadeiro absurdo que se instalou nos serviços públicos delegados no Brasil.

[...] Em nossa Pátria, quem é fiscalizado acaba nomeando quem fiscaliza. É a crônica da morte anunciada.

[...] O poder público não pode mais conviver com tamanho descalabro! Ao fim e ao cabo, nosso quadro partidário é desolador. Algumas das instâncias partidárias não

representam nenhuma ideologia, senão a da conquista dos espaços públicos para o seu posterior loteamento entre os interesses privados. No que diz respeito ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, propõe a OAB não só a

34 defesa das suas prerrogativas integrais, como também que a estas caibam

vencimentos e subsídios nos estritos termos constitucionais, nem mais nem

menos. Cabe lembrar aqui que se essas prerrogativas dos juízes foram defendidas

pelos advogados no mais difícil período de nossa história republicana, que foi o da ditadura militar, continuarão sendo por nós defendidas agora e sempre, pois é também da independência dos juízes que brota a independência da própria Justiça. Porém tais prerrogativas e independência devem sempre guardar, como limite,

os ditames constitucionais, e disto a OAB também não abrirá mão. A moralidade no trato com a coisa pública, especialmente em termos de remuneração dos agentes do estado, implica não só em seguir a trilha constitucional, como também em parar diante de seus limites. Por outro lado,

estamos presenciando atualmente um ostensivo desarme e sucateamento do Poder

Judiciário, atingido por elevados cortes orçamentários que reduzirão ainda mais a sua já reduzida capacidade instalada, ou seja, o seu potencial quantitativo e qualitativo de produção. A quem interessa um Poder Judiciário

fraco, gerando decisões de má qualidade, sem estrutura e sem tempo para pensar o Direito? A quem interessa um Judiciário atuando em horário reduzido, lento, frustrando os anseios da sociedade e chegando às raias da negativa da prestação jurisdicional? Repito aqui que não podemos aceitar de braços cruzados que se

busque resolver os sérios problemas da Justiça retirando dela instrumentos legítimos, que integram o preceito de amplo direito de defesa e preservam direitos fundamentais. Como já vos disse, de muitos somos um, e em um somos todos! (grifos nossos)

No documento O manto da invisibilidade (páginas 32-35)