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Dos bastidores à ribalta, a construção do espetáculo político

No documento O manto da invisibilidade (páginas 68-71)

7 A TEORIA DA DOMINAÇÃO “NEOTROPOLÓGICA”

7.1 Dos bastidores à ribalta, a construção do espetáculo político

Os coadjuvantes representam a camada que corporifica uma obra cênica, ao compor um cenário realístico de um contexto do qual despontarão algumas poucas figuras centrais para desenvolver a ação principal. O ambiente, assim, é constituído por anônimos, o roteiro é dado externamente e a direção repousa sob a incumbência de um agente igualmente externo ao palco no qual se desenvolve o enredo. Mas todos atuam em colaboração para que o espetáculo ocorra, mesmo os que não estejam envolvidos com a realização artística da obra, mas incumbidos de questões técnicas, operacionais, financeiras ou outras tais.

Como pontua, magistralmente, Guy Debord (1997, p. 53),

Ao contrário, o que o espetáculo produz é uma versão hipersubjetiva da vida social, na qual as relações de poder e dominação são todas atravessadas pelo afeto, pelas identificações, por preferências pessoais e simpatias. E quanto mais o indivíduo, convocado a responder como consumidor e espectador, perde o norte de suas produções subjetivas singulares, mais a indústria lhe devolve uma subjetividade reificada, produzida em série, espetacularizada.

81 Ver HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001; NEGRI, Antonio. 5 lições

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O indivíduo submetido ao processo de invisibilização aliena-se de seu papel social e político e passa a nutrir-se de um comportamento mimético, referenciado nos atores do processo social que reconheça como protagonistas, assim como destaca Milton Santos (2007, p. 93-94):

[...] a simpatia do gesto, a valorização plástica, por meio do código aceito de beleza física, a participação na mesma igreja ou no mesmo clube esportivo, o mesmo amor aos animais ou à natureza podem servir como incentivo à solidariedade. Tal movimento tanto pode ser espontâneo como encorajado, e até engendrado pelo uso científico dos meios de propaganda.

Ressalta Heller (1985) que a vida cotidiana pode ser exposta de modo simplificado como “a vida de todo homem”, haja vista que todos a vivem, sem exceção, independentemente de como estejam posicionados na divisão social do trabalho. Assim, não há como “fugir da vida cotidiana”, resumir uma existência a ela, nem conceber sociedades sem vida cotidiana, considerando-se que suas categorias fundamentais são: a heterogeneidade, entendido como conjunto de atividades do ser social, compreendidas atividades e fenômenos como trabalho, linguagem, política, intimidade, dentre tantas outras; a imediaticidade, que recai em ações imediatas, em respostas cotidianas, com predominância de relação direta entre pensamento e ação, importando espontaneidade e automatismo.

O cotidiano deve ser compreendido em sua dupla dimensão (simples e complexa, ou particular e genérica), em conformidade com as objetivações particulares e as objetivações gerais dos indivíduos.

Desta forma: O individuo é sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico. Considerado em sentido naturalista, isso não distingue de nenhum outro ser vivo. Mas, no caso do homem, a particularidade expressa não apenas seu ser “isolado”, mas também seu ser “individual”. Basta uma folha de árvore para lermos nela as propriedades essenciais de todas as folhas pertencentes ao mesmo gênero; mas num homem não pode jamais representar ou expressar a essência da humanidade. (HELLER, 1985, p. 20)

Nos termos propostos por Gaulejac (2006), “a luta de classes não deixou de ser importante, em um mundo fascinado pelo êxito individual, pela performance e pela excelência, as tensões são vivas entre imagens sociais (o que é preciso se tornar para estar bem) e a realidade em que vive”. Assim, identifica uma internalização da vergonha no sujeito, que pode anular-lhe sua autoestima, sendo propiciada pela interação de relações complexas estabelecidas entre o Eu, o inconsciente e a realidade exterior, destacando-se como elementos causais, por um lado, o processo de coisificação, pelo qual se nega ao outro a condição

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humana, ao tratá-lo como objeto, usável e descartável, e, por outro, a ausência de reciprocidade, em que é negada a ocorrência de troca nas relações:

A dominação consiste em considerar que o outro não é seu semelhante, que não tem as mesmas capacidades nem os mesmos direitos nem as mesmas atitudes e que estas diferenças justificam sua condição inferior. (GAULEJAC, 2006).

Nesse processo examinado por Gaulejac (2006), despontam reações defensivas, como a ambição, a depressão, o alcoolismo, o isolamento, a superioridade, que são formas desenvolvidas pelo sujeito para enfrentar e conviver com a vergonha, identificadas, ao mesmo tempo, como causas que retroalimentam os processos causais e desencadeiam um sistemático processo de negação da subjugação. Paradoxalmente, a vergonha permite a manutenção do sentimento de humanidade e pertencimento, dependendo da reação elaborada individualmente pelo sujeito, quando este se considera ainda participante das regras do grupo, ainda que seja substancialmente vulnerada sua identidade e desrespeitada sua dignidade, compreendida como “o sentimento que um indivíduo tem, e que lhe é dado, de fazer parte da comunidade dos homens e de ser tratado com o respeito devido à pessoa” (GAULEJAC, 2006).

Não apenas a pobreza constrange os trabalhadores à submissão, os de condição financeira mais favorável também podem negar a exploração como resultado de um complexo mecanismo de defesa para manter a higidez psíquica e o sentimento moral de adequação às expectativas de normalidade, que difundem o orgulho do trabalhador em colaborar, submetidos a uma dinâmica de alienação, ao adotarem comportamentos até servis de modo consentido (DEJOURS, 2006). A normopatia se mostra um mecanismo de estratégia individual ou coletivo que induz a submissão e o conformismo, ensejando adaptabilidade pelo sofrimento82 oriundo do medo de perder dada posição no processo produtivo. Não é apenas a racionalidade econômica que funda a desigualdade social ou a divisão do trabalho, mas é crucial o reconhecimento da interação da negação do sofrimento individual com a ideologia defensiva no âmbito coletivo – a negação coletiva do sofrimento (DEJOURS, 2006).

Acréscimo relevante à discussão é trazida por Máximo et al (2012):

Dejours, porém, já vinha sinalizando, em algumas de suas obras e entrevistas, a importância de conceder relevo à questão do suicídio no trabalho. Em entrevista publicada em Fevereiro de 2010, Dejours admite que as novas formas de Organização do Trabalho, as buscas incessantes por resultados, as metas sufocantes e as práticas cada vez mais difundidas de assédio moral têm intensificado os modos

82 Ver DEJOURS, Jacques Christophe. Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo: Atlas, 1993.

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de sofrimento83 no trabalho, que podem culminar com o suicídio. Segundo o autor, o suicídio no local de trabalho84 é uma mensagem brutal de sofrimento à comunidade, aos colegas, ao chefe, aos subalternos e à empresa de modo geral.

No documento O manto da invisibilidade (páginas 68-71)