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A prudência do legislador no contexto de racionalidade da legislação

4 O DIÁLOGO ENTRE LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA NO DEVER DE

4.5 O raciocínio do juiz e o raciocínio do legislador – contraposição ou

4.5.1 A prudência do legislador no contexto de racionalidade da legislação

Por uma dimensão pragmática e operacional, a prudência do legislador implica a adoção de um ponto de vista compreensivo, voltado para o uso de instrumentos jurídicos capazes de concretizar a ideia de liberdade como principium e a autonomia dos sujeitos dentro de um Estado Democrático.

Assim, ainda que a legislação consubstancie uma decisão política, a sua legitimação demanda, como foi aqui sustentado, uma racionalidade que tem várias dimensões: ______________

a racionalidade formal, relacionada ao procedimento, à inteligibilidade das leis e às questões de sistematicidade do direito, como plenitude e coerência do ordenamento (ATIENZA, 1989); a racionalidade material, voltada para a reflexão sobre os meios e instrumentos adequados ao alcance de fins e valores eticamente justificados (ATIENZA, 1989); a racionalidade comunicativa, que, intimamente relacionada às outras, impõe a discussão pública e a participação nos processos decisórios estabelecidos pelo contraditório (AMADO, 1997; SOARES, 2004).

A inserção da jurisprudência na proposta de diálogo de fontes deve considerar, nesse contexto, as racionalidades afirmadas acima, de acordo com o que a perspectiva legisprudencial e o ponto de vista hermenêutico. Em correspondência à racionalidade formal e material, temos a legística formal e material, articuladas no propósito de justificar a decisão e o conteúdo da legislação.

A legística formal ou técnica legislativa interessa-se pelos aspectos formais da legislação e de sua inserção no sistema e se relaciona à linguagem e comunicação das normas. A partir do conhecimento do conteúdo que será positivado, o legislador, considerando a exigência de racionalidade formal, deve refletir sobre a forma apropriada do ato, nível, competência, densidade normativa e, consequentemente, sua clareza e coerência dentro do ordenamento.

A legística material tem como objeto o desenvolvimento de um procedimento metódico para a construção e escolha do conteúdo das leis, assim como para a sua aplicação e avaliação. Utiliza-se de técnicas como check list, modelização causal e reconstrução de cadeia de fontes, “que permitem tanto realizar diagnósticos e prognósticos como verificar o nível de concretude dos objetivos que justificaram o impulso para legislar e os resultados obtidos a partir da sua entrada em vigor” (SOARES, 2007, p. 8).

O processo metódico que se desenvolve de maneira analítica, antes da efetiva redação do projeto de lei, está consubstanciado em etapas, todas inter-relacionadas, concomitantes e não lineares, quais sejam: definição do problema, determinação de objetivos, estabelecimento de cenários alternativos, escolha de soluções, avaliação prospectiva ou ex

ante, execução e avaliação retrospectiva ou ex post e adaptação ou correção da legislação

(DELLEY, 2004; MADER, 2007). A divisão em etapas apenas facilita a compreensão do funcionamento do processo, mas não deve sobrepujar o seu caráter interativo.

o impulso legislativo, o diálogo entre fontes do direito tem fundamental importância para a determinação do problema. Vale reiterar que a jurisprudência atua, no contexto apresentado, de duas formas: como impulso inter-orgânico condicionante da decisão de legislar, ou seja, impulso situado no domínio do poder político constituído constitucionalmente (SOUZA, 1991) que evidencia uma tensão entre o estado presente e a situação desejada; ou ainda, no âmbito da avaliação legislativa, como “manifestação da cultura jurídica” (SOARES, 2007, p. 10) e, portanto, como representante da faticidade da norma, dos questionamentos sobre sua validade. A interpretação do direito feita pelos tribunais é, nesse caso, uma fonte que forma o repertório de sentidos que podem compor as normas, ora ampliando o circulo normativo, ora fornecendo dados para corrigi-lo.

Adotando-se, então, um ponto de vista hermenêutico, o legislador lança um olhar sobre a fala dos tribunais e, pelo procedimento metódico da legística, analisa a situação presente, definindo o problema ao qual está vinculada uma intenção de legislar da forma mais precisa possível para, posteriormente, propor quais os fins deseja alcançar, assim como os meios e instrumentos para tanto.

Quando a jurisprudência atua, em grande medida junto a outros fatores, como impulso para legislar, geralmente há um conjunto de leis ou normas que, de alguma forma, têm conexão com a materia a ser legislada. A análise da situação presente impõe, nesse contexto, a verificação de causas e, de modo geral, fatores que concorrem com fonte do problema, entre eles: omissão legislativa na regulamentação de determinada materia; lacunas na aplicação da lei por deficiências na elaboração do texto; inadequação dos meios aos fins, como resultado de uma análise, ainda que precária ou parcial, da situação; ininteligibilidade do texto; inconstitucionalidade da norma; e, por fim, evolução do problema ao longo do tempo, podendo-se fazer um prognóstico sobre a necessidade de intervenção legislativa para corrigir uma situação (DELLEY, 2004; FLÜCKIGER, 2007).

Uma das técnicas utilizadas pela legisprudência, no âmbito da legística material, para representar o problema é o gráfico de modelização causal. Segundo Delley (2004, p. 113),

Ele permite visualizar o problema decompondo-o em diferentes fatores, estabelecendo os elos (relações de causa e efeito) entre esses fatores e a natureza desses elos (fortalecimento e enfraquecimento). A vantagem dessa modelização, puramente qualitativa, é facilitar a vista panorâmica do problema e de seus diferentes elementos sob uma perspectiva dinâmica, o que não é possível com a mera verbalização do problema.

A jurisprudência, ou decisão judicial, pode tanto representar o problema propriamente dito, como compor um ou mais fatores que funcionam como causa ou efeito para o problema que demanda uma intervenção legislativa. Como técnica que otimiza a qualidade da lei, o gráfico de modelização causal ajuda a apontar os fatores que determinam a situação de tensão e as relações entre esses fatores, de modo a compreender a dinâmica e a complexidade do problema (DELLEY, 2004). Também Delley (2004) afirma que a qualidade dessa etapa é fundamental para garantir ao legislador uma descrição da realidade que lhe possibilitará atuar de forma mais adequada e, assim, produzir normas que sejam eficazes.

A racionalidade da legislação não se esgota aí, pois todo o processo de produção racional de leis pressupõe, nesta pesquisa, o Estado democrático constitucional. Não só regras procedimentais e técnicas que maximizem a eficácia das normas devem ser consideradas, mas também uma racionalidade que reflita o axioma democrático de identificação entre o povo e a decisão normativa, ou melhor, uma decisão legislativa ou regulatória que concilie as convicções da comunidade para a qual se destina e em meio a qual será aplicada, considerando também o respeito às minorias. É salutar a contribuição de Amado (1997) sobre esse aspecto:

A efetividade do princípio democrático exige algo mais que a pura articulação formal de certos órgãos depositários de representação; supõe, no que se refere à legislação, à organização prática e procedimental de uma certa racionalidade que tem seu eixo no respeito aos interlocutores e à sua igualdade, e no procedimento que assegura tudo isso e a transparência do resultado. (AMADO, 1997, p. 314, tradução nossa)84

Por isso, é pertinente afirmar que a racionalização não diz respeito somente ao aperfeiçoamento do sistema por meio de técnicas, mas deve, também, estabelecer critérios que ampliem o grau de aceitabilidade e receptividade dos interesses que estão em jogo no processo (CHEVALLIER, 1992; SOARES, 2004). Isso ocorre pela possibilidade de participação e pelo estímulo a ações que traduzam o consenso ou um equilíbrio possível de interesses. Ao ampliar o círculo normativo pela avaliação e conhecimento da jurisprudência, de forma indireta, isso também é concretizado pelo legislador prudente.

E se é esperado em um sistema democrático que haja perdedores, a prudência ______________

84 “La efectividad del principio democrático exige algo más que la pura articulación formal de ciertos

órganos depositários de la representación; supone, em lo que a la legislación se refiere, la plasmación práctica y procedimental de uma cierta racionalidad que tiene su eje em el respeto de los interlocutores y de su igualdad y em el procedimiento que assegura todo ello y la transparência del resultado”. (AMADO, 1997, p. 314).

legislativa deve ser invocada com maior substância, pois dela deve derivar uma justificativa satisfatória que demonstre o tratamento justo das partes e considere os resultados das diferenças. O argumento parte da assertiva de que em uma sociedade pluralista, a decisão política está sempre sujeita a ser desafiada pelos perdedores (INOUE, 2007).