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4.3 Psicanálise e Ciência

4.3.3 A psicanálise como ciência conjetural

Ainda resta analisar uma posição adotada por Lacan: a de considerar a psicanálise como uma ciência conjetural.

Alberti e Elia (2008) nos ajudam a compreender o que seria a ciência conjetural. Partindo de Karl Popper, esses autores afirmam ser conjeturais as teses que não podem ser elevadas à categoria de princípio ou de teoria porque se orientam a partir de uma afirmação presumida como verdadeira ou como genuína, mas cujos fundamentos são geralmente inconclusivos. Em matemática, são conjecturais as teses cuja verdade ainda não foi provada conforme as regras da lógica-matemática. Às vezes, a conjetura é uma hipótese frequentemente usada na verificação de outros resultados.

No Seminário II, Lacan (1954-1955/1985) propõe que a expressão ―ciência conjetural‖ substitua ―ciências humanas‖. Alberti e Elia (2008) nos alertam que Lacan

ainda considerava apropriada a expressão ―ciências humanas‖. Entretanto, dez anos depois, ele dirá: [...] Não há ciência do homem, porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. É conhecida a minha repugnância de sempre por esta denominação ciências humanas, que me parece ser o apelo mesmo à servidão [...] (Lacan, 1966/1998). Para o autor, essa modificação no pensamento de Lacan é resultado da criação de sua única invenção, o objeto a, responsável pela irredutibilidade do Real em relação ao Simbólico.

Nesse mesmo ano, Lacan transforma sua pergunta inicial: ―É a Psicanálise uma Ciência?‖, em outra: ―Qual a ciência que comportaria a Psicanálise?‖ (Lacan, 1966) Com essa transformação, dizem os autores, Lacan está agora em outra posição discursiva quanto às relações entre psicanálise e ciência, posição na qual a operação psicanalítica é que está em posição de interrogar a Ciência: [...] Que ciência poderia comportar a inclusão do real do sujeito? [...] (p. 798).

Os autores consideram a entrevista que Lacan dá em 1970, publicada sob o título Radiofonia, um dos textos mais importantes para se pensar a ciência no século XX. Nessa entrevista, Lacan faz referência à revolução científica de Kepler, que descobre que as órbitas planetárias não eram esféricas, mas elípticas. As órbitas elípticas só ocorrem por meio de dois centros, o que implica a introdução de um centro matemático além do Sol para trabalhar com essas órbitas. Consequentemente, só é possível trabalhar com as órbitas elípticas pela via simbólica. Essa descoberta é associada por Lacan à frase de Galileu de que não existe natureza que não seja matemática.

Outra articulação de Lacan com a ciência conjetural aparece, em 1964, no artigo Posição do inconsciente, diz Fink (1997). Nele, Lacan considera a psicanálise um estatuto semelhante à teoria dos jogos e, nesse sentido, também como ―ciência conjetural‖. A associação se dá porque na teoria dos jogos as probabilidades podem ser calculadas de modo muito preciso e o jogador é reduzido a sua posição (ou melhor, é a posição que define o jogador). Além disso, cada posição do jogador se define por um número estritamente definido de movimentos possíveis. Dessa forma, a teoria dos jogos, como expressão da ciência conjetural, leva a distinção entre ciências exatas e ciências conjeturais cair por terra.

Lacan soluciona o problema colocado por Dor (1991), a saber, a noção de sujeito dividido (spaltung) ou sujeito do inconsciente é incompatível com a ciência, ao dizer que a ciência conjetural leva em consideração o simbólico e, introduz uma

forma que, segundo ele, renova a cristalização, a de uma ciência conjetural do sujeito (LACAN, 1964/2008, p. 49). Na ciência conjetural do sujeito, o método científico de investigação é o ―método de rede‖ porque: [...] o sujeito deve advir. E para saber que se está lá, só há um método, que é de discriminar a rede [...] (p. 51). O método chamado de rede será desenvolvido por Lacan como rede dos significantes.

Entretanto, Fink (1997) diz que Lacan não chega a categorizar de modo definitivo a psicanálise como ciência conjetural em que o sujeito pode ser reduzido a uma simples proposição caracterizada por um simples objetivo. O projeto da psicanálise de Lacan é manter e explorar esses dois conceitos básicos – causa e sujeito.

Segundo Fink (1997) Lacan optaria, no final, por situar a psicanálise num lugar específico fora da ciência, o que não quer dizer fora de rigor.

Se a psicanálise está fora da ciência, se as suas duas noções caras, sujeito do inconsciente e causa do desejo, não são incluídas nas demais áreas de conhecimento, se ela apresenta uma epistemologia própria que ―subverteu‖ as noções de semiologia, de etiologia, de doença e de sintoma e se também é uma ciência que inclui as noções de conjetura, de probabilidade e de simbólico, onde se situa a psicanálise?

A proposta de Aguiar (2006) apoiado em Laplanche (1978 e 1980), Figueiredo (2004) e Mijolla-Mellor (2004), é situar a psicanálise numa ―extraterritorialidade‖ (termo de Laplanche), ou numa posição marginal em relação às demais áreas do saber e práticas.

Essa posição de ―extraterritorialidade‖ garantiria a noção de pluridisciplinaridade, que, segundo Figueiredo, é a (re)combinação dos saberes especializados. Essa (re)combinação precisa, segundo Mijolla-Mellor (2004), não se limitar a uma justaposição de disciplinas, mas acentuar seu caráter plural, heterogêneo. Segundo Aguiar (2006) ―[...] a pluridisciplinaridade implicaria, portanto, alguma complementaridade de seus componentes, eles próprios independentes [...]‖ (p. 123).

Encontrar essa complementaridade não é evidente, porque, por exemplo, se uma perspectiva interdisciplinar é adotada, as disciplinas visam aos pontos de contato entre elas. Mas o ponto de contato é também o lugar de uma separação, e estar no interdisciplinar consiste em fazer ressaltar as diferenças das abordagens

ante um mesmo objeto, alerta Mijolla-Mellor (2004). Pode-se, por outro lado, propor uma abordagem transdisciplinar em que se busca ―[...] tomar como objeto uma superfície que possa atravessar várias disciplinas [...]‖. (p. 124). Mas, nesse caso, o que garantiria que se fala a mesma coisa nessa travessia?

A essas possibilidades pluri ou multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, Mijolla-Mellor (2004) propõe o termo ―interações da psicanálise‖ decorrente das perturbações introduzidas pela noção de sujeito do inconsciente nas relações com as demais disciplinas e áreas do conhecimento. Por ―interações‖ da psicanálise, a autora entende a confrontação dos discursos mantidos por diversas disciplinas de forma a permitir destacar as especificidades de cada uma. Não se trata de buscar uma unidade dialógica, a seu ver ilusória. Essa também é a posição de Kupfer e Voltolini (2005) quando apontam o limite do diálogo entre as disciplinas:

Quando se trata de duas ―línguas‖ diferentes, o equívoco maior estaria em apostar num ―esperanto‖, língua que não nasce de nenhuma outra, proposta como capaz de eliminar o mal-entendido resultante do conflito entre as línguas. Ou ainda de sucumbir a um ―inglês‖, como língua que acaba se impondo como universal por questões de hegemonia política. Talvez se trate de apostar em boas condições de tradutibilidade entre as línguas. Tradutibilidade esta capaz de reconhecer que o real que cada língua delimita implica sempre uma resistência ao traduzível, e que uma língua não pode ser reduzida à outra (KUPFER; VOLTOLINI, 2005, p.15).

As ―interações da psicanálise‖ são possíveis, segundo Mijolla-Mellor ao retomarmos a própria significação do termo psicanálise: ―[...] um procedimento de investigação e um método aplicável em diversos campos [...]‖. (apud AGUIAR, 2006, p. 122). A autora propõe o termo interações e não aplicações, como utilizado por alguns autores, porque salienta que a própria psicanálise está interessada nos diversos outros campos do saber ou da cultura, na medida em que eles são parte constitutiva dela própria.

Considera que as ―interações da psicanálise‖ são preciosas porque permitem precisar e relativizar o saber analítico e seu método, comparando-os e confrontando- os com outros campos. A universidade seria uma base privilegiada para praticar essas interações, acrescentando à pesquisa ―em‖ psicanálise (metapsicológica e clínica) e ―sobre‖ a psicanálise (histórico-epistemológica) a dimensão de uma pesquisa ―com‖ a psicanálise (interações da psicanálise).

Seria essa a filiação da pesquisa IRDI e deste projeto? Poder-se-ia afirmar que a pesquisa IRDI realizou uma interação da psicanálise com o ramo da ciência denominado medicina, representado pela pediatria, por meio dos métodos

experimental e clínico? Interação essa que poderíamos chamar de frutífera, que manteve os princípios e as noções psicanalíticas, ao mesmo tempo trouxe transformações para o seu próprio campo de pesquisa?

Esta parece ser uma direção possível de resposta à pergunta colocada inicialmente neste trabalho. Para prosseguir nesta investigação, pode-se agora analisar a pesquisa IRDI a partir das definições e discussões metodológicas realizadas até aqui.