• Nenhum resultado encontrado

A psicanálise da percepção artística e a psicologia da imaginação artística:

Em suas análises artísticas, sobretudo na década de 1960, outro autor que foi referência para Mário Pedrosa sobre a relação da arte com a psicologia foi Anton Ehrenzweig (1908-1966). Renomado psicanalista britânico, Ehrenzweig dedicou-se aos estudos da psicologia da imaginação criadora. Imerso nos conceitos da psicanálise, o psicanalista fez um movimento sincrético de analisar as estruturas da arte pelas vias do conceito de inconsciente. A partir de suas pesquisas, o autor publicou duas obras de grande impacto: A Psicanálise da Percepção Artística - Uma

introdução à teoria da percepção inconsciente (1953) e A Ordem oculta da Arte

(1967) – além de artigos em diversos periódicos.

Uma das grandes teses de Ehrenzweig, em seu primeiro livro, constituiu-se com a inserção da mente inconsciente como organizadora do processo criativo. Como psicanalista, o autor dedicou-se a estudar e analisar os processos mentais pelos quais o artista passa durante seu ato criativo. Ao seguir a metodologia da psicanálise, o autor segue as camadas da estrutura consciente da percepção, logrando alcançar o estrato inconsciente e extrair, daí, informações de interesse para a criação da arte. Ao sondar a dinâmica da percepção inconsciente, Ehrenzweig faz uma análise revisionista das teses objetivistas da gestalt, com o objetivo de demonstrar suas limitações. Afirma o psicanalista:

A teoria gestaltista, porém, entretida no estudo detalhado da gestalt selecionada, porém presta pouca atenção ao destino dos elementos inarticulados da forma que se excluem da gestalt. Uma psicologia da percepção profunda tem que compensar essa negligência. (EHRENZWEIG, 1977, p. 41)

Tendo em vista que a abordagem da psicologia da forma estabelece leis de organização visual, sobre partes percebidas e partes completadas pelo todo dinâmico, a teoria se basearia em um pressuposto deveras consciente, e excluía todo o acervo de informações que não fosse resultante de uma percepção imediata.

O psicanalista, no entanto, aponta que há estímulos captados pela percepção inconsciente que colaboram para a compreensão do todo, mas que não são identificados pelo sujeito. Tais mecanismos operam de maneira involuntária e escapam às leis fixadas pela teoria gestáltica. Para Ehrenzweig, a psicologia da forma estaria sendo negligente com a dimensão da mente profunda, e sua obra seria um aditamento aos estudos da percepção.

Em seu segundo livro, Ehrenzweig parte da noção da percepção incompleta, que se integraliza com a imaginação criadora. Tal evento é típico do universo infantil, que se envolve com conhecimentos, histórias, ações ou objetos sem compreendê- los por completo – mas, ainda assim, se interessam por eles, sem se preocuparem com motivos analíticos. Uma das teses do livro é que há uma ordem oculta na arte, que não é apreendida por nossa mente consciente, mas o é pela percepção inconsciente. Segundo o próprio autor:

Existe uma “ordem oculta” nesse caos que somente pode ser bem compreendida por um leitor bem afinado ou por um verdadeiro amante da arte. Toda estrutura artística é essencialmente “polifônica” quando se desenvolve ao mesmo tempo em diversas camadas superpostas e não apenas em uma única linha de pensamento. É por isso que a criatividade exige uma espécie de atenção difusa e espalhada em contradição com nossos hábitos normais e lógicos de pensar. (EHRENZWEIG, 1969, p.14)

Nesta segunda obra de 1967 (publicação em português de 1969), o psicanalista segue sua investigação pelas camadas conscientes e inconscientes da percepção humana. Ao mover-se entre estas duas noções psicanalíticas, o autor lida com diferentes formas de compreender a arte, ou seja, cada indivíduo, com sua bagagem cultural e cognitiva, estabelecerá uma relação única com a obra de arte. No entanto, esta relação requer a presença da imaginação do espectador, que será cocriador do sentido da obra. Esta relação não exige conhecimentos prévios, exige a disposição para dialogar com a obra em questão, ou seja, a obra de arte exige-nos que a observemos, que imaginemos com ela, e que agreguemos sentidos ao que foi imaginado e observado.

A novidade do pensamento de Ehrenzweig trouxe a noção de que o processo de percepção passa por estratos conscientes e inconscientes da mente. Neste processo, colaboram as vias imaginativas, cognitivas, simbólicas e criativas. A complexidade da arte exige um gesto que o autor chamou de “polifônico”, ou seja,

conhecimentos de diversos domínios, para a interação e a compreensão das informações e da criatividade, ali, dispostas.

Sobre esta abordagem original do texto de Ehrenzweig, Herbert Read teria escrito, no “The Times”, periódico britânico, em 13 de dezembro de 1966:

The Psychoanalysis of Artistic Vision and Hearing advanced an original theory of the part played by-unconscious modes of perception in the creation of the work of art. Essentially a merging of Freudian psycho-analysis and Gestalt psychology, this thesis established the importance of the interplay that takes place between our conscious and formal creation of images and our undisciplined perceptive imagination. The book combines a profound knowledge of modern psychology with an equally profound knowledge of all the arts, particularly painting and music. It has had a great influence in the explanation and justification of the extreme types of modem art, and has been a direct inspiration to many artists.41

Herbert Read (1893-1968), importante crítico de arte britânico, destaca a contribuição de Ehrenzweig para os estudos da arte. Ressalta que sua originalidade se situa na abordagem que mesclou psicanálise e gestalt, em uma perspectiva completiva. Entre análises conscientes e inconscientes, as análises do psicanalista alargam as possibilidades da compreensão da arte, para além das estruturas formais e da análise simbólica. Ehrenzweig abriu precedentes para uma interação com a arte que suplantou os suportes intelectivos. Por mais complexa que sejam suas proposições, cooperam para uma dilatação da consciência cognitiva e criadora. Sua obra motivou muitos artistas à expansão de suas habilidades perceptivas.

Justamente por investigar as habilidades perceptivas humanas, Mário Pedrosa, o nosso crítico, interessou-se pela obra de Ehrenzweig como uma via para alargar seu próprio conhecimento. Muito embora o psicanalista procedesse a uma crítica radical à gestalt, Pedrosa valeu-se de suas análises como contraponto crítico

41“A Psicanálise da visão e audição artísticas avançou uma teoria original do papel desempenhado

pelos modos inconscientes de percepção na criação da obra de arte. Essencialmente uma fusão entre a psicanálise freudiana e a psicologia da gestalt, essa tese estabeleceu a importância da interação que ocorre entre nossa criação consciente e formal de imagens e nossa imaginação perceptiva indisciplinada. O livro combina um profundo conhecimento da psicologia moderna com um conhecimento igualmente profundo de todas as artes, particularmente pintura e música. Ele teve uma grande influência na explicação e justificação dos tipos extremos de arte moderna, e tem sido uma inspiração direta para muitos artistas.” (Tradução nossa)

Esta citação foi retirada da Wikipedia, no endereço <https://en.wikipedia.org/wiki/Anton_Ehrenzweig>. O texto na Wikipedia apresenta a seguinte referência para a citação: Read, Herbert (13 December 1966). "Dr. Anton Ehrenzweig". The Times. The Times Digital Archive. p.12. Solicitamos acesso à plataforma digital do “The Times digital archives”, porém não obtivemos resposta à solicitação. No entanto, nos pareceu uma análise bem consistente da obra de Ehrenzweig e optamos por inseri-la no texto mesmo sem o acesso ao documento original. Ao sondarmos mais informações sobre sua veracidade, localizamos também o site <https://www.archinform.net/arch/60107.htm>.

para várias reflexões estéticas. Mesmo não demonstrando afinidades com a psicanálise e chegando, por vezes, a criticar seus métodos, Pedrosa reconhecia, na obra de Ehrenzweig, um enfoque singular para a compreensão do ato criativo. Pedrosa não chegou a adotar inteiramente a tese do psicanalista, e “tentará conciliar os impulsos inconscientes ou de afirmação e os de ordenação formal”42

(ARANTES, 1996, p.33) e não chegará a negar totalmente a validade da ordenação gestáltica.

Um exemplo da crítica de Pedrosa nos evidencia esta assimilação:

Hoje, já se sabe que a percepção visual não é apenas um processo sensorial e mental de superfície; é também um processo que vem do inconsciente para chegar à tona na região sensorial consciente, onde enfim se cristaliza, e só o consegue depois de uma luta entre várias camadas perceptivas, como nos mostrou A. Ehrenzweig. (ARANTES, 1996, p.306)

A referência direta ao autor testemunha a desenvoltura com que o crítico trabalha o tema. Embora não estivesse em total acordo com as proposições de Ehrenzweig, Pedrosa é permeável ao seu conceito de percepção inconsciente. Ainda que o crítico mantivesse suas convicções na validação da estruturação gestáltica, ele demonstra versatilidade em migrar de um conceito a outro, sem reservas.

A grande preocupação de Pedrosa era compor uma crítica de arte que comunicasse uma interpretação sobre a obra de arte, que dialogasse com a percepção do espectador e, ao mesmo tempo, animasse sua imaginação. Neste intento, o crítico investigou informações nos diferentes domínios de conhecimento, a fim de compreender cada vez mais a fundo o fenômeno da obra de arte. Neste empreendimento, Pedrosa passou por várias ciências e desenvolveu um texto hábil e coeso, abordando diversas vertentes, sem perder a coerência e a fluência da escrita. Muito embora sua erudição resultasse, por vezes, em uma escrita densa e complexa, seu texto traz uma rica possibilidade de descobertas. Seu texto exige, de seus leitores, a mesma pluralidade de processos intuitivos, imaginativos e cognitivos da arte sobre a qual ele dissertava.

42

Nesta discussão, Pedrosa parece manter certa neutralidade sobre as críticas de Ehrenzweig à gestalt. Nosso crítico concorda com a ação da percepção inconsciente e seus substratos, porém preserva suas convicções da estruturação da forma.