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2.2 A NARRATIVA INFANTIL

2.2.4 A QUALIDADE DA NARRATIVA

Conforme mencionamos, a narrativa é um tipo de texto cuja estrutura é de fácil acessibilidade às crianças já em idade pré-escolar, quando estas demonstram a habilidade de diferenciar certos tipos de textos. Contudo, o fato de os aprendizes saberem tal diferenciação ou produzirem narrativas respeitando as características básicas deste modo discursivo não implica na qualidade das mesmas.

De acordo com Tolchinsky [Landsmann] (1995), existem certas características que enriquecem a narração e quando a criança não consegue reproduzi-las em seu relato, a qualidade da narrativa fica comprometida. Para uma melhor caracterização do que seriam essas “qualidades”, Tolchinsky [Landsmann] (op. cit) realizou um estudo com 30 crianças na cidade de Barcelona, com idades entre cinco e sete anos, e que teve como objetivo descobrir se crianças no início da escolaridade eram capazes de produzir formas linguísticas capazes de diferenciar uma narração de uma descrição. Para isso, solicitou às crianças que escrevessem a história de João e Maria e, em seguida, que descrevessem a casa da bruxa. É interessante ressaltar que no relato original desta história apenas duas linhas são destinadas à descrição da casinha da bruxa. Se ainda assim as crianças fossem capazes de produzir um relato e uma descrição, ficaria evidenciado um bom nível de diferenciação destes tipos de textos pelos sujeitos.

Na análise dos textos produzidos, ficou evidente que, desde os cinco anos de idade, narrações e descrições são nitidamente diferenciadas, sendo a primeira reconhecida pelas crianças como relato de tempo enquanto a segunda é

reconhecida como ordem para nomear e qualificar, fora de tempo. Além disso, a diferença manifestou-se na extensão dos textos, na organização sintática, nas relações temporais e no sistema de referência nominal. Os dados analisados revelaram, ainda, que não parece ser necessário dominar a escrita para identificar as diferenças entre uma carta, um poema, um texto jornalístico (gêneros textuais), ou entre uma narração e uma descrição e que as restrições próprias a cada gênero ou tipo de texto parecem fazer parte da bagagem que a criança traz consigo para a escola.

Contudo, apesar da evidente diferenciação entre os textos propostos em tal estudo, Tolchinsky [Landsmann] (op. cit) julgou as produções das crianças “pobres”, uma vez que a grande maioria (21 entre as 30 que integravam a amostra) manifestou grande preocupação em reproduzir o começo, o miolo e o desenlace do relato, mas não conseguiu ir além deste esquema básico, demonstrando maiores dificuldades com as “qualidades” que enriquecem a narrativa. A primeira dessas qualidades é a relação especial que existe entre o dizer e o dito; a segunda, a contraposição entre a presença e a ausência do narrador; a terceira refere-se à possibilidade de explicitar as motivações das ações das personagens; a quarta, e não menos importante, está relacionada com a interpretação dos acontecimentos da narrativa.

Explicaremos a seguir cada uma destas categorias, as quais, de acordo com Tolchinsky [Landsmann] (op. cit), são responsáveis pela qualidade da narrativa.

2.2.4.1A RELAÇÃO ENTRE O DIZER E O DITO

Quando apresentamos os acontecimentos de uma narração, podemos enunciá-los na ordem em que ocorreram (neste caso, a ordem do dizer corresponde à ordem do dito) ou podemos alterar a correspondência, fazendo uso de retrocessos ou antecipações. No primeiro caso, quando a ordem dos acontecimentos corresponde à da enunciação, os fatos são mencionados na medida em que são lembrados e, nesse caso, tem-se um indicativo de que houve pouco planejamento na produção de um texto.

No estudo realizado por Tolchinsky [Landsmann] (1995), no qual foi proposto às crianças que relatassem a história de João e Maria, muitos dos sujeitos

inverteram a ordem do input narrativo para que a ordem do dizer correspondesse à do dito: enquanto o texto-fonte anunciava que os irmãos “começam a regressar para casa pelo caminho no qual Joãozinho jogara as pedras que brilham” (isto é, primeiro anuncia que as crianças regressam para casa e depois que jogam as pedrinhas), muitos sujeitos apresentavam divergências do texto-fonte em suas produções, alterando a ordem do enunciado e afirmando que “Joãozinho jogou as pedras e regressaram para casa” (op. cit, p. 79). Esta superexplicitação da sequência do dizer e do dito é uma das características que contribui para a pobreza dos relatos e dá mostras do baixo índice de planejamento discursivo da criança, que ainda demonstra controle sequencial no nível da sentença ou, conforme Van Djik (2002), microestruturalmente6, sem controle global.

Em contrapartida, quando fazemos usos de antecipações ou retrocessos na ordem dos acontecimentos, certo planejamento discursivo é realizado. Dessa forma, a criança apresenta controle global de sua produção, contribuindo para um texto de qualidade.

2.2.4.2PRESENÇA E AUSÊNCIA DO NARRADOR

Esta segunda categoria discursiva proposta por Tolchinsky [Landsmann] (1995) refere-se à dualidade entre a presença e a ausência do narrador. Podemos reconhecer a presença do narrador através da utilização de agregados linguísticos, como a introdução da narrativa, bem como as frases ou construções que cumprem a função de avaliação e os modificadores verbais. É nestas partes agregadas ao corpo do relato que o autor (aquele que relata os fatos da história) e o leitor (aquele que realiza a leitura da narração) reconhecem-se mutuamente.

Assim, o leitor percebe a mão do escritor quando este se preocupa em dar-lhe detalhes esclarecedores que vão além da mera enunciação dos fatos, expondo descrições, apresentações, opiniões e comentários. Segundo Tolchinsky [Landsmann] (1995, p.80),

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Van Djik (2002) propõe uma estrutura hierárquica de organização textual. Segundo o autor, os textos, de modo geral, são constituídos por três estruturas básicas: a microestrutura, a macroestrutura e a superestrutura. A microestrutura é a estrutura a nível local, ou da sentença; a macroestrutura é uma estrutura semântica global, enquanto a superestrutura é a estrutura esquemática global, que caracteriza o tipo específico de texto.

esses esclarecimentos são importantes porque indicam um reconhecimento do leitor em potencial e uma presença mais ativa do narrador sobre os fatos. Uma lista de construções verbais ‘nuas’, sem nenhum modificador verbal, seria suficiente para o racconto dos acontecimentos, mas a utilização desses modificadores justifica, explica, aprofunda os fatos.

Desta forma, podemos dizer que a presença do narrador é evidenciada em um texto quando a criança, na condição de narradora, aprofunda a apresentação dos fatos de um relato, enriquecendo-o com detalhes particulares sobre as personagens, suas características físicas ou psicológicas, ou preocupa-se com a descrição dos lugares onde os fatos acontecem. Textos que apresentam tais características podem ser considerados enriquecidos ou de melhor qualidade.

2.2.4.3AS AÇÕES DAS PERSONAGENS E SUAS MOTIVAÇÕES

A terceira categoria proposta por Tolchinsky [Landsmann] (1995) para aferir a qualidade de um texto narrativo consiste em ir além da mera enunciação das ações das personagens envolvidas no enredo. Para a autora, é necessário que o narrador apresente as motivações que ocasionaram as ações das personagens, e isso exige certo grau de subjetividade.

Os estados mentais atribuídos às personagens de um relato podem desenvolver-se simultaneamente em dois planos: o da ação e o da subjetividade. No plano da ação ocorre a gramática do relato, ou seja, a história é narrada a partir do esquema básico da narrativa. Em contrapartida, no plano da subjetividade os pensamentos ou sentimentos que motivam ou intervêm nas ações das personagens – ao que Tolchinsky [Landsmann] (op. cit) chama de “panorama da consciência” – são apresentados, enriquecendo a narrativa e revelando aspectos que contribuem para uma melhor compreensão do relato.

Na narrativa, a realidade é “subjuntivizada” (BRUNER, 1988, apud TOLCHINSKY, [LANDSMANN] 1995), ou seja, o emprego do modo subjuntivo marca gramaticalmente a atitude da personagem, de modo que “fatos ou instruções são expressos em termos de desejos, possibilidades ou obrigações” (op.cit., p.80). Alguns autores falam diretamente das suas personagens, apresentando ao leitor seus desejos, aspirações ou frustrações de modo explícito. Outros, porém, pouco ou quase nada nos falam das personagens, limitando-se a apresentar ao leitor diálogos ou atos que possibilitem inferir características delas.

Muitos processos podem contribuir para mostrar o plano da subjetividade das personagens ao leitor ou ouvinte. Além da verbalização explícita do estado mental ou emocional das personagens ou dos processos discursivos de diálogos e das palavras do autor sobre elas, recursos gramaticais como a utilização de certos tipos ou modos verbais, acréscimos de frases verbais ou modificadores ou, ainda, o discurso direto ou indireto também podem ser usados.

Apesar da grande importância da subjetividade para esta categoria, Tolchinsky [Landsmann] (op. cit) afirma que nem sempre as crianças pequenas estão dotadas de recursos de subjetividade suficientes para melhor explicar os motivos que desencadearam as ações de suas personagens. Tal fato pode ser facilmente percebido em situações onde a criança recorre a formas mediadoras, colocando na “boca” das personagens suas intenções e reflexões através da citação. Segundo a autora, “é provável que, com a idade e uma maior experiência leitora e/ou atividades específicas a esse respeito, possamos observar uma diminuição no uso da citação e um aumento de outros recursos de subjetivismo” (op. cit., p.87).

2.2.4.4OS ACONTECIMENTOS E SUA INTERPRETAÇÃO

Nos acontecimentos relatados em uma narrativa, sempre se superpõe o plano e a organização do que o relator ou o ouvinte sabe e viveu. O conhecimento do ouvinte filtra o texto, e isso fica evidente tanto naquilo que o leitor ou reprodutor esquecem como naquilo que acrescentam ou transformam com relação ao texto- fonte. Essas modificações podem ser realizadas tanto ao processar como ao reproduzir qualquer elemento do discurso.

Esta última categoria proposta por Tolchinsky [Landsmann] (1995) trata da maneira como a criança interpreta os acontecimentos de uma narrativa lida ou ouvida por ela. Segundo a autora, as crianças, ao reproduzirem relatos, muitas vezes modificam informações relacionadas ao texto de origem. Tais modificações vão desde inferências razoáveis até tergiversações do sentido geral do relato, as quais atribuem, muitas vezes, outro sentido ao texto.

As inferências referem-se às deduções feitas pelas crianças a partir da informação textual, as quais são completadas por informações extratextuais,

normalmente originadas da experiência de vida ou do conhecimento de mundo da criança. Não importa se é uma informação de boa-fé, o importante é que é uma inferência possível, combinação evidente entre informação textual e conhecimento extratextual, que não modifica o sentido do relato.

As tergiversações, ocasionadas muitas vezes pela falta de interpretação por parte da criança, dos acontecimentos lidos ou ouvidos, referem-se às modificações do sentido do relato. Elas podem manifestar-se sob duas formas: a primeira, do tipo local, afeta localmente o sentido do texto sem, no entanto, modificar seu sentido global. No segundo caso, o das tergiversações generalizadas, mudanças mais profundas no relato são realizadas, interferindo profundamente na narrativa e alterando completamente o sentido do texto. Tal situação ocorre quando o processo de produção de textos é controlado localmente. “A falta de controle central não permite que a criança perceba a onda expansiva às vezes produzida pela mudança de uma expansão, no sentido total do texto” (op. cit, p. 89).

Deste modo, quando a criança realiza mudanças profundas na estrutura de uma narrativa, alterando o sentido geral de uma história por ela narrada, podemos considerá-la empobrecida.

2.3 A CONSTITUIÇÃO LEXICAL E A VARIEDADE DE VOCABULÁRIO NA PRODUÇÃO DA