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A questão da legitimação e da autorização

No documento Rascunho digital: diálogos com Felippe Serpa (páginas 162-164)

Diálogos Josemar (Pinzoh) 5 e Felippe Serpa

2. A questão da legitimação e da autorização

Na verdade A QUESTÃO ainda não é esta da Identidade e da Diferen-

ça. O que me preocupa mesmo é não saber qual é o sistema axiomático do

pensamento crítico que se estabelece nessas discussões que estamos ten- do. Não está claro para mim qual é a crítica possível; ou de quais instrumen- tos e maquinarias teórico-conceituais podemos dispor para estruturar um pensamento crítico razoável. É bom não esquecer que um curso de pós- graduação é um ritual de passagem específico da nossa sociedade. Mas é um sistema de passagem embutido num complexo sistema de formalidades que se estruturam e se expressam numa série de formalidades, incluindo a

formalidade do saber. Nesse sistema, não basta a auto-autorização. Isso é

ba-le-la! Na verdade, o que existe é um jogo que se joga, com regras que só no processo se vão tornando claras. Um jogo que é, sobretudo, de legitimação da possibilidade de expressar certos enunciados. A autoria, na academia, passa por essa legitimação.

É assim que, nesse jogo de legitimação, quando se declara que um

enunciado é verdadeiro, pressupõe-se, primeiro, que o sistema axiomático no qual ele foi formulado e é decidível e demonstrável, é conhecido dos interlocutores e aceito por eles como tão formalmente satisfatório quanto possível (ver A condição pós-moderna de LYOTARD, 2002: 79).

É assim – e é esse o jogo – que estrutura, por exemplo, os processos de seleção de alunos, de qualificação de projetos de pesquisa e de definição de orientadores das pesquisas num curso de pós-graduação, por exemplo,

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como o da FACED. E não só há entre-lugares. Há lugares, territórios. Há, por exemplo, processos de seleção cujos enunciados dos projetos concorrentes devem estar de acordo com os “interesses” dos orientadores. Afirmar isso não significa atribuir nenhum valor positivo ou negativo. Não significa adjetivar, ainda. Aqui há apenas uma constatação. E, da minha parte, eu não sofro com isso. Certamente não seria melhor na aldeia, tendo de ralar o corpo, antes da luta, com escova de dente de peixe, e ainda colocar sal e pimenta por cima... Se esse é o ritual, eu acato, desde que se diga: “o jogo é este”. O que me incomoda mesmo é um esforço para fazer passar uma imagem de que não é assim, e é exatamente isso que soa demagógico e desonesto. Seria mais honesto dizer: “olha, aqui é assim, tá?”.

É indisfarçável que há, na academia, esse jogo que controla os enunci- ados à distância e silenciosamente. Foucault diria: “(...) a instituição respon- de de modo irônico; pois que torna os começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e de silêncio, e lhes impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância”. Não só isso, mas “em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conju- rar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (A Ordem do Discurso, 1999, p 7-9).

A academia especializou-se nesse jogo. Eis aí todo um jogo de legitimação que regula e, pelo menos, relativiza aquilo que chamamos de autorização ou, de forma mais redundante, de auto-autorização. Não é rara a recusa explícita de certos termos. Há, então, uma gramática e uma semântica mais legítimas que outras; há uma ordem axiomática. Que se esclareça qual é ela. Sobretudo porque há uma orgia conceitual, e os termos já não nomeiam o que deveriam nomear. Já não conseguimos nomear, na política, esquerda e direita; no sexo, masculino e feminino; na estética, o feio e o belo. Então que se esclareça a ordem axiomática, porque há realmente uma censura indisfarçável de certos termos...

3. A educação

A outra coisa que me incomoda é a concepção de educação subjacente a algumas “falas”. Por exemplo, uma coisa é dizer que o Caos é auto- organizativo. Eu concordo que SIM. Mas isso não tem valor para a ação política, ou para a ação de governo. O caos só terá valor numa política de absoluto desgoverno. Não me parece que a educação, como ação sistemá- tica, teria qualquer importância numa política de absoluto desgoverno. Nem sei se estamos interessados em um regime de absoluto desgoverno. Se

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ainda acreditamos na importância da educação, é, sobretudo, porque cre- mos que ela é uma arma em um complexo campo de batalha, em que se luta para fazer preservar ou garantir certos valores, em detrimento de outros. Por mais que relutemos, não estamos de acordo que haja qualquer

governamentalidade, e que a educação sirva para dispô-la? Então, não

estamos de acordo com a sustentação do tratamento cordial, para opô-lo ao tratamento bárbaro? Não é essa nossa luta pela paz, que é também uma luta pela civilização? O que queremos? E o que queremos com a educação? Dizer apenas que o caos é auto-organizativo, ou apostar na sua positividade, não diz nada sobre, por exemplo, o esforço que a FACED faz atualmente para melhorar sua avaliação frente à CAPES e aos demais cur- sos de pós-graduação de outras Universidades.

Há uma economia da educação, que não tem nada a ver com o critério hegemônico da economia de mercado do liberalismo, mas está mais próxi- ma da economia da dádiva, que, a meu ver, é o que justifica nosso esforço de educadores. Não educamos apenas pelo dinheiro que nos pagam: tam- bém, de alguma forma, queremos devolver algo que recebemos. E estamos a fazer isto como uma nova dádiva. A retribuição certamente não será para mim; será para outrem... Não importa. Mas este esforço nunca é liberal. Pelo contrário, atém-se aos nossos anseios de humanidade e de fortaleci- mento dos laços de solidariedade entre as gerações – e por isso mesmo encerra todas as contradições.

Mas é por isso que queremos educação: numa sociedade em conflito, como educadores, assumimos nosso “lado”, e usamos nossas armas... Essa é nossa doação. Aprendi isso com Paulo Freire, quando ele atacou veemen- temente a pseudoneutralidade da educação: eis a força de suas idéias. Mesmo que as coisas aconteçam pela precipitação dos acontecimentos, o que nós queremos é precipitá-los primeiro e da melhor forma, para nos educarmos uns aos outros.

Há sempre algo de reprodutor na educação. Mesmo que queiramos mudar o mundo através dela, o fazemos a partir dos nossos princípios, tensionando-os em relação aos princípios dos outros. Mas a dialogicidade freireana não é a negação dos meus princípios em detrimento dos princípios do outros. É a negociação, entendida como tensionamento, para produzir um novo lugar, como sendo um novo saber, em mim e no outro.

No documento Rascunho digital: diálogos com Felippe Serpa (páginas 162-164)