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A questão de gênero da capoeira no Ceará e no Brasil

4 PRÁTICAS EDUCATIVAS EM CELEBRAÇÃO: OS EVENTOS

4.3 O evento Tambores de Dandara

4.3.1 A questão de gênero da capoeira no Ceará e no Brasil

A dissertação de mestrado de minha autoria, Silva (2013), que tRattou do protagonismo dos primeiros mestres de capoeira do estado constatou algumas evidências sobre esse aspecto no decorrer das pesquisas de campo. Verificamos o reconhecimento local das seguintes mestras de capoeira: Vanda, Paulinha Zumba, Carla Mara e Janaína. Outro fator relevante constatado, no cenário capoeirístico atual, foi o elevado número de mulheres que praticam capoeira no estado e com distintas graduações, sugerindo uma boa perspectiva e facilidade de acesso a indícios que reconstrua o fato histórico da participação da mulher na prática cultural da capoeira no estado do Ceará, a partir da década de 197053.

Baseado em informações contidas no estudo de Scott (1992), Rago (1997) e Del Priore (2013), resguardaremos em nossos discursos o termo “relações de gênero” como uma organização social da diferença sexual, sem a rigidez das leis fixas e sexistas impostas pelas diferentes culturas. Empenhamo-nos numa busca pela compreensão crítica da história, enquanto lugar de produção de saber das relações de gênero e buscando evidenciar a diversidade de significados para as diferenças corporais. Assim como a capoeira, o estudo de gênero e a questão da mulher se constituem uma área de conhecimento interdisciplinar, passível de inúmeros estudos e perpassando, naturalmente, o universo histórico e educacional. Ressaltamos o entendimento que, entre todas as semelhanças e diferenças existentes entre os sexos, é interessante reconhecer a capacidade dos diferentes seres na luta pela causa da sobrevivência, poder e liberdade de expressar-se e sentir-se de diferentes formas. Segundo Simões (2002), p.1:

Ser mulher na capuera (sic) envolve questões referentes à discriminação, opressão, educação, musicalidade, maternidade, violência, religiosidade, força e condição feminina, história da mulher na capuera (sic). Mulheres lutando pela liberdade. Faço, 53Segundo Silva (2013), é impossível afirmar, com a devida certeza, o primeiro capoeirista do estado do Ceará, pois, em períodos remotos e por diferentes necessidades, por aqui passaram diversos adeptos dessa arte. No entanto, ficou constatado que, na década de 1970, mestre Zé Renato iniciou o ensino da capoeira em instituições formais de ensino da cidade de Fortaleza/Ceará. Foi relatado que, desde o início, mulheres que pertenciam ao grupo folclórico do CSU Presidente Médici tiveram contato com a capoeira. Entretanto, nesse estudo a condição feminina no universo capoeirístico do estado do Ceará não foi devidamente estudada pois o objetivo central desse estudo dissertativo foram as relações entre lazer, aprendizagem e formação profissional dos primeiros professores de capoeira do estado, onde não havia representantes do sexo feminino.

enfim, um convite à quebra de encadeamento de opressões na educação por meio de uma discussão sobre a mulher na capuera (sic).

Existem alguns poucos artigos científicos que abordam exclusivamente a questão de gênero na capoeira. Em nível de pós-graduação strictu-sensu, destacamos a dissertação de mestrado de Simões (1999) cujo título é “Capoeira: um convite ao jogo feminino”. Para Janja (2002) a luta feminina por um espaço no mundo capoeirístico vem se constituindo paulatinamente, havendo uma necessidade mais pesquisas nessa área. Em território cearense, conversamos previamente com três das quatro mestras de capoeira do Estado do Ceará. Consoante Dias (2014), mestra Vanda, primeira mulher a se tornar mestra de capoeira no estado, afirma que:

Eu acho que todo estudo tem importância, com relação às mulheres esse estudo tem um caráter de denúncia. Vamos falar de gênero né? [...] Porque houve discriminação [...] Sempre houve nessa primeira etapa toda aí, a mulher sempre foi discriminada, no sentido também de um capoeirista chegar mais rápido a graduações mais elevadas [...] Então a questão da forma, a questão do mérito, não que a gente faça por mérito, mas você que tá pesquisando deve saber que era difícil aparecer uma mestra. Hoje aparece, mas não aparecia não! [...] Tudo foi uma luta né, nesse sentido da mulher ter seu espaço, seu reconhecimento. A importância é isso, porque ela vem desvelando todo esse preconceito.

Sobre a relevância de se pesquisar a questão educacional das mulheres capoeiristas do Ceará Mara (2014), mestra Carla Mara, enfoca também a questão da emergência do registro histórico:

Acho importantíssimo, um tempo atrás estava conversando com a mestra Vanda em relação a isso... Porque a gente não tem registros! Eu vou conversar com ela, aí tenho ela falando, contado a história dela! Mas as minhas alunas, os alunos futuros, não vão ter essa pesquisa! E mulheres fizeram um papel muito importante, meninas antes de nós abriram o caminho pra gente está aqui, e não era fácil! Não é fácil como hoje, que eu pego um ônibus, boto minhas coisas numa bolsa e vou para o trabalho! Era o preconceito! E na capoeira era de não poder tocar, de não poder cantar, de mulher só servir para bater palma! E elas romperam isso pra gente, hoje a gente vai de igual pra igual num campo masculino, mas na capoeira sinto falta de mais mulheres [...] Eles se fecham dentro dum conceito e eu perco força pra defender o que acredito, e nem tudo aquilo que eu gostaria de passar é compreendido [...] O reconhecimento ainda é muito lento! Quantos grupos têm? E quantas mestras?

Fidelis (2014), mestra Paulinha Zumba, fala do momento atual de crescente inserção da mulher na capoeira, que atingiu uma maior proporção somente a partir da primeira década do século XXI, com a iminência de alguns movimentos. Ratifica também a relevância de ilustrar esse aspecto em mais pesquisas acadêmicas pelo fato de se registrar e repassar o conhecimento acerca da trajetória de vida de mulheres que lutaram pelo reconhecimento no universo capoeirístico. Nas palavras de mestra Paulinha Zumba (2014): “... Tá faltando esse

outro lado né? De pesquisar mesmo as mulheres! Nós estamos aqui também! E somos referência!”.

[...] e mesmo com faculdade e filho era sempre treinando! Meu treino é constante [...] Fui formando alunos, viajando bastante! Viajei levando a capoeira praticamente pelo Brasil todo. Viagem lá fora também. Vários países. Fui representar em 2010 as mulheres do Brasil na Califórnia [...] Fui a única representante do Brasil e do Ceará nesse evento só de mulheres (FIDELIS, P. A. Z., 2014).

Sobre a presença da mulher capoeirista no Brasil, Leitão (2004) constata que essa participação foi evidenciada ainda no início do século XIX. Essa afirmação é sustentada a partir da análise de um documento pertencente ao Arquivo Nacional Brasileiro de 1817 e 1819, em que Joaquina Angola de João dos Fatos foi presa e condenada a levar 300 açoites por estar com um “estoque” na mão e jogando capoeira. O mesmo autor reconhece que somente a partir do século XX houve uma maior participação de mulheres capoeiristas na sociedade brasileira, citando nomes contemporâneos à década de 1940 e 1950, tais como “Nega Didi”, “Maria Homem”, “Satanás”, “Maria para o bonde”, “Calça Rala” e a tenista campeã brasileira Lucy Maia, treinada pelo Mestre Artur Emídio de Oliveira na década de 1950. Material jornalístico, fotografias, vídeos e discos gravados ainda na década de 1950, comprovam a participação de mulheres no canto das rodas de capoeira, especialmente no samba de roda.

Ainda sob a ótica da repressão, Soares (2002) aponta uma notícia que menciona o nome de mulheres que passavam a vida a brigar e a desafiar quem lhes desagradassem. Essas mulheres atendiam pelo nome de “Isabel” e “Ana”, mostrando-se peritas na arte da capoeiragem, em meio às lutas travadas por elas, nas ruas do Rio de Janeiro. Conforme as pesquisas de Barbosa (2005), existem sete nomes de capoeiristas que ficaram famosas no século XX: Maria Homem, Júlia Fogareira, Maria Cachoeira, Maria Pernambucana, Maria pé no Mato, Odília e Palmeirona. A autora afirma que a documentação escrita relacionada a essas mulheres é escassa e geralmente se refere ao “comportamento masculino” adotado por elas.

A partir das inúmeras cantigas de domínio público da capoeira, depreende-se o caráter proximal das mulheres às práticas da capoeiragem. Percebemos isso de fato quando essas cantigas se referem às Quitandeiras do Largo da Sé, no Rio de Janeiro, e às Baianas do Acarajé, das ruas de Salvador. De acordo com a lenda N`Golo, amplamente difundida pela tradição oral, a origem da capoeira também é contada de um modo que a mulher apresenta um caráter passivo na ritualística. Conforme Bola Sete (2001), a capoeira decorre de uma luta africana que era uma espécie de ritual de passagem da mulher para fase adulta, a efêndula. Nesse ritual os homens disputavam a pontapés e cabeçadas, similarmente às lutas que ocorriam entre as zebras, o direito de desposar as mulheres da tribo. No decorrer do consagrado estudo

etnográfico de Rego (1968), mulheres não são citadas como as maiores detentoras e executoras dos conhecimentos dessa prática, restando às mesmas um papel secundário: “[...] usavam

pouco a navalha. Geralmente entregavam às mulheres de saia, como eram chamadas as negras africanas ou descendentes, para esconderem na cabeça entre o cabelo e o torso, tomando-a no momento preciso”. (REGO, W. 1968 p. 297).

Feitas as reflexões necessárias sobre aspectos históricos de cursos e eventos voltados para aprendizagem e sustentabilidade da capoeira, encerramos esse capítulo destinando essa atenção ao histórico da participação da mulher nessa prática cultural e registrando as reivindicações de algumas mestras de capoeira do Estado do Ceará. Portanto averiguamos que a questão de gênero é um aspecto importante numa perspectiva de se debater o universo educativo da Capoeira e contribuir com posteriores reflexões sobre algumas abordagens relacionadas a essa temática no sistema formal de ensino. Constatamos também que a relevância desse assunto é acentuada pelo paradoxo que há entre a escassez de registros históricos da inserção da mulher na capoeira no século passado e o excesso de registros que se pode encontrar atualmente. Estar atento para a participação feminina em qualquer setor da sociedade numa pesquisa contemporânea significa que devemos ter um cuidado necessário no manejo de interpretação das fontes históricas e numa perspectiva de se analisar criticamente um modelo socioeducacional que pretenda ser realmente justo e igualitário.