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Do folguedo destinado aos instantes de folga às políticas patrimonialistas

2 O ENSINO DA CAPOEIRA NO BRASIL

2.2 Do folguedo destinado aos instantes de folga às políticas patrimonialistas

A circunstância sócio-histórica vem contribuindo com a perpetuação e/ou desenvolvimento na abrangência da gestualidade, hábitos, costumes, valores e ideologias do jogo da capoeira. A representação dos papéis na capoeira é um misto de franqueza ou dissimulação, desafio e esperteza, cooperação e disputa, assim como todo jogo, palavra originária do latim jocus, que significa zombaria, gracejo. Para Rego (1968), a capoeira era um folguedo, uma brincadeira dos negros, não só para divertirem a si mesmos como também a expectadores, tornando-se eficaz forma de combate corporal, quando fosse necessário. Esse popular evento foi denominado como vadiação, instante de relaxamento e liberdade, acontecendo inicialmente nas praças e festas de largo. A partir dessa perspectiva é que o processo da disseminação e transformação da capoeira ocorreu nas cidades quando havia um número considerável de negros libertos, ou seja, desde o século XVIII.

Em teorias pedagógicas modernas e nas ciências esportivas é comum verificarmos a importância atribuída ao jogo como um momento de prazer e liberdade que antecede múltiplos

aprendizados. A postura da criança frente às inúmeras situações que se apresentam nos momentos lúdicos é um reflexo da própria personalidade, inteligência interpessoal, maturidade emocional e, no caso do jogo da capoeira, existe uma possibilidade de estender esse aprendizado em outras fases da vida, até mesmo na maturidade. Percebemos uma relação do jogo da capoeira com o jogo protagonizado, bastante comum na infância e caracterizado pela representação lúdica de papéis e habilidades necessárias à convivência em sociedade. Observamos que inúmeros sujeitos se tornam modelos de uma sociedade competitiva, consumista e individualizada, em que os laços de amizade se enfraquecem e os valores éticos, culturais e morais se esvanecem.

No caso do jogo da capoeira é possível que se encontre em determinadas comunidades valores mais altruístas, com perspectiva de pleno exercício de cooperação e solidariedade entre parceiros. Além dos benefícios que podem ser obtidos na constituição física de adeptos da capoeiragem, há aprendizados que envolvem a questão da autoafirmação cultural. Observamos que os recursos da oralidade, gestualidade e da musicalidade também inserem os adeptos num sistema de linguagem e comunicação diferenciada. Algumas terminologias, tais como malícia, negaça, malandragem e mandinga, que são costumeiramente e tradicionalmente utilizadas exemplificam essa afirmação7. Para o jogador de capoeira a compreensão desses termos possui uma conotação diferente, pois são vinculadas como símbolo de resistência cultural e de resistência às imposições e proibições do antigo governo político brasileiro.

Esses termos e inúmeras cantigas tradicionais, vinculados ao exercício da capoeiragem, evocam uma necessidade de vencer desafios, reconhecer as injustiças sociais e obter proteção divina. A movimentação humana vista como uma experiência existencial do fato é como uma linguagem que precisa ser interpretada, possuindo determinado significado na consciência. O fenômeno da incorporação, no sentido de sentir-se capoeirista, revela um comportamento internamente dirigido em favor de atender uma necessidade externa imposta. Entre o estímulo e a resposta há o significado, interior e subjetivo, que reflete a visão de mundo do sujeito e origina um comportamento que é produto de uma subjetividade incorporada. Diante dessa premissa, é importante que não sejamos generalistas na análise da prática capoerística e nem procuremos enumerar simples justificativas causais para perpetuação desse fenômeno. Procuramos alcançar um maior entendimento sobre esse fenômeno, através de uma imersão no

7 O termo vadiação também exemplifica o contexto de proibição do advento do Código Criminal do Império do Brasil de 1830, em que os chefes de polícia passaram a enquadrar praticantes de capoeira no capítulo desse código que tratava dos vadios e mendigos. O termo vadiação também é empregado ainda hoje para designar a participação nessa manifestação cultural.

universo educativo e que também está relacionado ao ponto de vista sociológico e antropológico da cultura brasileira e das relações entre ritual, jogo e performance:

[...] uma definição de performance pode ser: comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo. Rituais são uma forma de as pessoas lembrarem. Rituais são memórias em ação, codificadas em ações. Rituais também ajudam pessoas (e animais) a lidar com transições difíceis, relações ambivalentes, hierarquias e desejos que problematizam, excedem ou violam as normas da vida diária. Ambos, ritual e jogo, levam as pessoas “a uma segunda realidade”, separada da vida cotidiana [...], ritual e jogo transformam pessoas, permanente ou temporariamente. Estes são chamados “ritos de passagem”, e alguns exemplos são: iniciações, casamentos e funerais. No jogo, as transformações são temporárias, limitadas pelas regras do jogo. As artes do espetáculo, esportes e jogos são lúdicas, mas frequentemente se utilizam dos processos do ritual (LIGIÉRO, 2012, p.50).

No início do século XIX, surge uma corrente intelectual interessada no universo sociológico do folclore brasileiro. Apesar dos preconceitos intensamente catalogáveis relacionados à raça negra no início do período republicano brasileiro, vários elementos da cultura afro-brasileira ganharam admiração do povo e da intelectualidade, interesse que vem perpassando gerações e fortalecendo-se em meio à sociedade. Seguindo o raciocínio de que o imaginário da criminalidade atrelada à capoeira foi se desfazendo à medida que o biótipo do capoeira herói, trabalhador e atleta foi se solidificando na sociedade é que encontramos os fundamentos dos estudos sobre patrimônio cultural de natureza imaterial alicerçados no meio político. Na intelecção de Luís Sérgio Dias (2001), a mitificação de capoeiristas famosos, em períodos anteriores a 1950, já demonstrava um sentido diferenciado do capoeirista terrorista, malvado, temido pela sociedade e reportados em noticiários.

As civilizações e as culturas nascem da desordem e se desenvolvem como ordem, existem em razão de uma e de outra, trazem nelas as duas, ainda que seus aspectos particulares manifestem a importância muito desigual que lhes atribuem respectivamente- em geral e ao sabor das variações sujeitas às conjunturas e circunstâncias. Nas sociedades tradicionais, o mito dita a ordem, mas a partir do caos, da desordem que ele ajuda a ordenar e a dominar incessantemente. [...] uma força em constante ação contra os obstáculos; a luta se torna a própria essência da vida; sem ela, a existência pessoal é desprovida de sentido, e somente os valores mais comuns podem ser atingidos; o homem faustiano forma-se no confronto, e suas aspirações recusam os limites, são infinitas (BALANDIER, 1997, p. 249).

Uma análise inspirada nessas ideias de Balandier rememora aspectos da inserção do capoeirista como um importante elemento no cenário de lutas e reinvindicações do povo brasileiro. Conforme Damatta (1997), a malandragem remonta a uma posição no quadro social brasileiro que se encontra nos interstícios da ordem e da desordem, sobrevivendo em meio às intensas ambiguidades do cotidiano popular. Pelas cantigas populares, ladainhas e chulas, depreende-se a necessidade de um bom capoeirista possuir a qualidade da malandragem e da malícia. Apesar da criminalização da capoeira, a malandragem continua sendo retratada em

letras de vários sambas no início do século XX, tanto o samba do Rio de Janeiro como o de roda do Recôncavo Baiano, e em várias cantigas de domínio público, presentes em diferentes manifestações culturais, como o jongo e o coco. A luta pela liberdade também representou uma luta para manter vivos elementos da própria cultura, embutidos numa perspectiva de lazer e sentimento de coletividade. Valores culturais sempre constituíram motivos de reivindicação da população indígena e afro-brasileira.

De acordo com Azevedo (1964), o estudo da cultura é uma luz projetada sobre a natureza, força e grau de uma civilização. Indispensável à compreensão do fenômeno da cultura brasileira é situá-la no quadro social, geográfico e histórico, mostrando processos sociais e mecanismos que se formaram com o fim de transmiti-la, assegurando a continuidade no tempo de significados e símbolos. Para o autor citado, na vida coletiva é que se desenvolve a força expansiva e criadora, refletindo ideias dominantes em cada fase da evolução histórica e mergulhando na obscuridade em que se elabora a consciência nacional. Concluimos esse tópico nos atentando para o fato de que a capoeira, como manifestação cultural desenvolvida no Brasil, começou a ser permitida oficialmente no governo de Getúlio Vargas, embutida numa política nacionalista, e por vezes contraditória, implantada por esse presidente. A configuração do jogador de capoeira como um herói no imaginário popular é um tema que pode ser analisado a partir da oralidade dos mestres mais antigos, assunto a ser tratado no próximo subcapítulo.

Contudo é oportuno rememorar algumas passagens históricas em que foi utilizado as habilidades guerreiras do capoeirista. Um exemplo bem popular do heroismo do jogador de capoeira ocorreu por ocasião da Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870, em que mostrou-se evidente a eficácia dessa manifestação cultural enquanto luta. Podemos subentender a participação do negro, como sinônimo de força e coragem, em várias inquietações sociais do século XIX. A situação econômica, política e financeira do país foram conturbadas e sempre houve um temor de que houvesse uma revolta de negros e mestiços, a maior parte da população brasileira, contra o reino de Portugal ou contra o sistema latifundiário8. Essa foi uma das maiores preocupações da corte portuguesa, quando aportou no Brasil em 1808, e mesmo assim não conseguiu evitar o episódio da transformação da colônia em império, a renúncia do imperador, a aprovação da lei áurea e principalmente a passagem do império à república, quando maltas9 foram utilizadas como cabos eleitorais e houve violentos comícios na cidade do Rio de Janeiro. Em todos esses episódios tiveram a participação da capoeiragem.

8 Nas revoltas contra a hegemonia do poder latinfudiário, tais como Balaiada, Sabinada, Farroupilha, Praieira, Malês, e a Guerra do Paraguai em 1865 são alguns exemplos das inquietações político-sociais desse período. 9

Após a capoeira ter sido considerada uma Luta ou Ginástica Nacional Brasileira, pelo governo de Getúlio Vargas, houve uma tendência da capoeira ser conceitualizada também como um esporte. Nessa época era comum a prática da capoeira em quartéis militares, havendo inclusive manuais que procuravam facilitar e divulgar o aprendizado das técnicas dessa defesa pessoal. Com o estudo das políticas culturais também é possível acompanhar esse processo de valorização da capoeira através de alguns aparatos legislativos. Segundo Dias (2001) também temos exemplos de alguns políticos que foram praticantes da capoeira, tais como Barão do Rio Branco e Floriano Peixoto. Em todos setores da sociedade foi possível encontrar admiradores dessa arte.

Destacamos alguns momentos que foram importantes na valorização da cultura indígena e afro-brasileira. O primeiro deles foi a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública por Getúlio Vargas em 1936, após o golpe de 1930 e antes da implantação do Estado Novo em 1937. Houve um diálogo entre o ministro Gustavo Capanema e o idealizador da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade, sobre uma política de preservação do patrimônio cultural brasileiro e, nesse mesmo ano, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- SPHAN, para proteger bens móveis e imóveis de valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico vinculados a fatos memoráveis da História do Brasil. Em 1970, o SPHAN passou a ser denominado IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-, principal órgão de políticas públicas culturais do Brasil.

Após a Segunda Guerra Mundial houve a criação da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura- UNESCO, em 16 de novembro de 1945, para valorização da pluralidade étnica e cultural. Acatando as recomendações desse órgão, o Brasil criou em 1947 a Comissão Nacional do Folclore, ligada ao Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura – IBEEC – do Ministério das Relações Exteriores. Conforme a Carta do Folclore Brasileiro (1951) o termo folclore e cultura popular são considerados termos equivalentes e enumerados alguns fatores de identificação: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade, cujos estudos são integrantes das Ciências Humanas e Sociais. A relevância científica e política da valorização da cultura popular continuou ascender legalmente por meio dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, perpassando o conceito de patrimônio material e imaterial em substituição ao antigo e questionável termo folclore.

Posteriormente, houve o estabelecimento do Decreto nº 3551 que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial-PNPI-. Ainda na primeira década do século XXI, a capoeira foi considerada

Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, em 2008, e, em 2015, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Esse capítulo tem como objetivo situar a prática da capoeira na cultura popular brasileira através de uma breve inserção no contexto histórico e das circunstâncias que contribuíram para valorização dessa prática educativa, em meio às políticas públicas culturais e diversas instituições de ensino. A relação entre a capoeira como cultura popular e a cultura popular como prática educativa também representa uma oportunidade de compreender melhor o contexto da evolução das Ciências Humanas no Brasil, visto a interdisciplinaridade dos assuntos relacionados.

2.3 Cultura popular capoeirística como prática educativa brasileira: alguns dos grandes