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A questão do acesso às tecnologias reprodutivas

No documento kallinecarvalhogoncalveseler (páginas 77-80)

4 ASPECTOS MÉDICOS GERAIS DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO

4.5 A questão do acesso às tecnologias reprodutivas

As técnicas de reprodução assistida, tal como previsto na Resolução nº 2.013 do Conselho Federal de Medicina (BRASIL, 2013), podem ser empregadas por pessoas solteiras ou casais de homossexuais através da doação anônima de gametas51. Assim, para além da fecundação homóloga (células reprodutivas são colhidas dos respectivos cônjuges ou companheiros), há também a fecundação heteróloga que implica no emprego de um gameta, masculino ou feminino, de um terceiro doador, sendo possível, na hipótese de infertilidade do casal, a doação de ambos os gametas por terceiros. Registra-se ainda a possibilidade de fecundação post-mortem, desde que haja autorização prévia do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado.

Tendo em vista que a simples disponibilidade de uma tecnologia não legitima todas as suas formas de utilização, Diniz e Costa (2006) discutem a questão do acesso às novas tecnologias conceptivas considerando que esse foi um debate esquecido

51 II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA

2 - É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico.

na América Latina. As autoras questionam qual seria o critério a tornar uma mulher, um homem ou um casal elegível: a infecundidade, a infertilidade ou o desejo por filhos?

Os conceitos de infecundidade e infertilidade, apesar de serem empregados como sinônimos, não são exatamente. A infecundidade é a ausência de filhos, podendo ser voluntária ou involuntária. Sendo voluntária, a infecundidade é a expressão de um projeto pessoal ou conjugal e não um problema biomédico. Por outro lado, a infecundidade involuntária é traduzida em termos biomédicos como infertilidade ou esterilidade cuja solução é apresentada por meio das tecnologias reprodutivas (DINIZ, COSTA, 2006, p. 49).

Autores como Santos (2010, p. 291) e Ballester (2011, p. 25) distinguem a esterilidade, como incapacidade para conceber, da infertilidade, como incapacidade de levar adiante a gravidez ainda que tenha ocorrido a concepção. A infertilidade é primária quando não se pode confirmar a existência prévia de alguma gestação e secundária quando há registro confiável de pelo menos uma gravidez no passado.

A esterilidade ou infertilidade conjugal, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1975, 2001), define-se como a incapacidade de um casal engravidar após o período de dois anos de relações sexuais regulares sem proteção contraceptiva. A Federação Internacional de Ginecologia (FIGO) e a Sociedade Europeia de Embriologia e Reprodução Humana (ESHRE) consideram igualmente infértil a união que não resulta em gravidez após dois anos sem uso de método contraceptivo e prática de vida sexual ativa (ROSENFIELD, FATHALLA, 1990; ESHRE, 2000).

Homens e mulheres sozinhos, independente de orientação sexual, e casais homossexuais, não se encaixam na definição de infertilidade adotada pelas sociedades científicas e, a princípio, não poderiam utilizar a procriação medicamente assistida como um procedimento alternativo à reprodução natural. Sendo infecundos e não inférteis, não haveria razão médica para recorrer ao tratamento de uma infertilidade que inexiste.

Essa discussão extrapola o objeto de estudo dessa pesquisa. Menciona-se, contudo, a importância de se colocar em pauta a questão do acesso às tecnologias reprodutivas e suas implicações ético-jurídicas. Deixa-se em aberto a indagação acerca de qual seria o critério válido para legitimar o acesso a essas tecnologias: a infecundidade ou a infertilidade?

A título de exemplo, Neves (2009, p. 139) destaca que a lei portuguesa nº 32, promulgada em julho de 2006, no que se refere a finalidade da procriação medicamente assistida, enuncia o §1º do art.4º que se trata de um método subsidiário e não alternativo, o que denota a perspectiva das tecnologias reprodutivas exclusivamente como meio de intervenção médica. Entretanto, o parágrafo seguinte contradiz essa primeira interpretação, ao dispor que a utilização das técnicas além de verificar-se mediante diagnóstico de infertilidade, é também possível para tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doenças graves de origem genética, infecciosa ou outras.

Percebe-se, assim, que a legislação portuguesa coloca a procriação medicamente assistida não apenas como uma técnica de superação de infertilidade, mas também como uma técnica de tratamento, o que leva Ascensão (2009) a indagar que tratamento seria esse se, em verdade, não há a superação de uma situação de doença, mas uma substituição de protagonistas com recurso a reprodução heteróloga e a maternidade substitutiva.

No capítulo dos Princípios Gerais da Resolução nº 2.013 do Conselho Federal de Medicina (BRASIL, 2013) é afirmado que “as técnicas de reprodução assistida têm o papel de auxiliar a resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação”. Na parte introdutória, a Resolução considera a infertilidade humana um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, sendo legítimo o anseio de superá-la. Essa abordagem que considera a infertilidade como doença52, todavia, é equivocada, pois como ressalta Corrêa (2001, p. 72), a ausência de filhos não pode ser caracterizada como sendo propriamente uma doença, que causa danos físicos ou riscos à saúde e à vida, embora muito sofrimento possa estar implicado neste problema.

Ballester (2011, p. 26), no mesmo sentido, assinala que uma pessoa pode ser estéril e nunca se dar conta disso, pois a esterilidade apenas se manifesta quando há a busca por uma descendência. Para o autor, não se pode usar as mesmas categorias (saúde e enfermidade), que se empregam para classificar as disfunções de qualquer

52A infertilidade encontra-se registrada na Classificação Internacional de Doenças (CID 10) da

Organização Mundial da Saúde (OMS). Há, assim, a infertilidade masculina (N46); infertilidade feminina associada à anovulação (N970); infertilidade feminina de origem tubária (N971); infertilidade feminina de origem uterina (N972); infertilidade feminina de origem cervical (N973); infertilidade feminina associada a fatores do parceiro (N974); infertilidade feminina de outra origem (N978); infertilidade feminina não especificada (N979). Disponível em: <http://www.cid10.com.br/buscadescr?query =infertilidade>. Acesso em: 13 nov. 2014.

órgão, aos transtornos derivados do mau funcionamento da função reprodutora. Em matéria de reprodução, não é possível estabelecer nenhuma fonte real entre indicação médica e indicação de conveniência. A infertilidade será sempre uma consequência, um sintoma de outro transtorno e não uma enfermidade em si.

No documento kallinecarvalhogoncalveseler (páginas 77-80)