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Reconhecimento do status de pessoa do embrião humano extracorporal

No documento kallinecarvalhogoncalveseler (páginas 59-63)

Um conceito ontológico de pessoa foi apresentado linhas atrás, sendo este o primeiro passo metodológico para abordar com seriedade a juridicidade da realidade pessoal.

Adotou-se o caminho inverso proposto por Gonçalves (2008) que não questiona o que é ser pessoa para o Direito, mas quais implicações traz, para o Direito, o fato de se ser pessoa. A questão nesse sentido não interroga o ordenamento jurídico, interroga a própria realidade. Coloca-se fora do Direito, enquanto sistema positivo, e lança-se no plano da ontologia, da reflexão metajurídica.

A partir do conceito de pessoa desenvolvido pelos autores substancialistas e do conceito fenomenológico de consciência de Husserl (2006), é possível defender a unidade entre homem e pessoa, sendo a natureza humana o único critério eticamente aceitável para definição de um ser como pessoa. No que diz respeito à consciência, sustentou-se sua interpretação pela ótica da fenomenologia que a enxerga na dimensão metafísica, considerando que o seu desenvolvimento, ainda que em potencial, é inerente à essência humana. Se a consciência, da forma como é compreendida por Husserl (2006), é o elemento que caracteriza tanto o homem quanto a pessoa, qualquer homem é pessoa, ainda que não haja uma racionalidade atual. Portanto, inexistem quaisquer requisitos extrínsecos a serem cumpridos pelo homem para merecer a qualificação de pessoa, bastando-lhe ser humano.

A realidade humana é ontologicamente imutável. Essa verdade traz, para o Direito, uma consequência inevitável: as implicações jurídicas inerentes ao fato de ser

humano são as mesmas, independente das circunstâncias ou do estado do sujeito. Uma vez que inexistem momentos ontológicos diversos na realidade humana, o único enquadramento possível para o embrião humano extracorporal é o reconhecimento do seu status de pessoa.

A ciência até hoje não se encontra em condições de contestar o fato de que não acontece nenhum fenômeno ulterior que torne humano quem já não o era e, assim, de acordo com as reflexões de Spaemann (2010), apresentadas anteriormente, a personalidade não é o resultado de um processo do qual do algo deriva o alguém, logo, o embrião humano extracorporal não pode ser tido como uma pessoa em potencial, mas tão somente como uma pessoa em uma fase determinada de seu desenvolvimento. Existe unidade e continuidade no ser humano e, por isso, ainda que em diferentes fases de desenvolvimento, é o mesmo ser que se manifesta.

Uma vez que o embrião humano extracorporal já reúne todas as características necessárias para o desenvolvimento do ser humano nascido, e que, como ele, transforma-se continuamente, até a morte, em razão da multiplicação e da mutação de suas células, não se logra fundamento válido para exclui-lo do conceito de pessoa, o que o faz merecedor, portanto, de reconhecimento e proteção jurídica.

De uma perspectiva substancialista da pessoa, o ser pessoal não depende do exercício de certas funções no ser vivo. Portanto, não basta observar no embrião pré- implantatório a presença de certas capacidades – que exigem forçosamente tempo para se desenvolverem – para negar sua personalidade.

A história da humanidade, tal como enfatiza Palazzani (2007), é repleta de exemplos de transformação do ser humano em objeto para fins de outras pessoas. O colonialismo, a escravidão, o racismo e o nazismo, como formas de discriminação, deixaram evidente a vulnerabilidade da condição humana. Hoje, no contexto das inovações tecnológicas, fica a interrogação se não se está presenciado um novo tipo de discriminação, mais sutil, que considera como pessoa apenas o ser humano com determinado grau de desenvolvimento, físico, psíquico e social.

A vulnerabilidade está ausente de nossa cultura, todavia é algo inevitável no existir humano, o que comporta uma chamada à responsabilidade no cuidado da própria existência e no cuidado da existência dos demais seres humanos. A vulnerabilidade que é evidente em todas as etapas da vida do ser humano é mais patente nos primeiros estágios do seu desenvolvimento (CASTRO, 2008, p.148).

Spaemann (2010) ao sustentar a unidade entre ser humano e pessoa sublinha que a aplicação do conceito de pessoa concede a qualquer ser humano o status de inviolabilidade e, pelo fato de corresponder a uma exigência, o conceito de pessoa é também um conceito normativo.

O autor, entretanto, ressalta que ser pessoa não é algo que se suponha e depois, quando a suspeita torna-se mais forte, reconhece-se juridicamente. O reconhecimento não é uma conclusão analógica ou uma certeza subjetiva de algo objetivamente provável, como é a certeza de que os animais estão determinados por instintos e sentem dor.

Pessoa significa ocupar um lugar único no espaço de relações constituídas por outras pessoas; é um ato de percepção do próprio eu e dos demais como possuidores de um lugar ímpar.

Aos homens chamamos pessoas porque são o que são de forma distinta dos demais seres que existem. O que são se compõe de qualidades que, na maioria dos casos, compartilham com os outros. A combinação individual destas qualidades será, todavia, sempre singular. Mas o que faz com que a pessoa seja pessoa não é sua singularidade, mas o ser único. Ser único não é uma mera consequência da singularidade, mas algo que só se define indexicalmente pelo lugar espaço-tempo que ocupa. As pessoas são os pontos arquimédicos dos quais é possível identificar os lugares espaço-temporais, posto que só através delas são definíveis o ‘aqui’ e o ‘agora’33 (SPAEMANN, 2010, p.163, tradução livre).

Perceber o ser humano, independentemente da sua fase de desenvolvimento, como pessoa significa perceber o espaço de relações a priori constituído pela personalidade. Somente percebendo este espaço de relações, o ser humano descobre-se a si mesmo como uma entidade pessoal (SPAEMANN, 2010, p.181). O verdadeiro reconhecimento, entretanto, como ressalta Spaemann (2010, p.185) consiste em assegurar independência de forma que o ser reconhecido não fique subjugado ao capricho daquele que o reconhece, ou seja, de forma que o reconhecimento não seja obrigatório para se atribuir o status de pessoa.

Todos os deveres para com as pessoas se reduzem ao dever de percebê-las como pessoas. Em verdade, não é adequado formular esta

33 A los homnres los llamamos personas porque son lo que son de forma distincta que los demás seres que

existen. Lo que son se compone de cualidades que, em la mayoria de los casos, comparten com los otros. La combinación individual de estas cualidades será probablemente simpre singular. Pero lo que hace que la persona sea persona no es su singularidade, sino el ser única. Ser único no es uma mera consecuencia de la singularidade, sino algo que sólo se define indexicalmente por el lugar espacio-temporal que ocupa. Las personas son los puntos arquimédicos desde los que es posible identificar los lugares espacio- temporales, puesto que sólo a través de ella son definibles el ‘aquí’ y el ‘ahora’.

percepção como dever, pois os deveres necessitam de fundamentação, enquanto, a percepção das pessoas é a fundamentação última de todos os deveres34 (SPAEMANN, 2010, p.180, tradução livre).

Quando se admite a identidade entre ser humano e pessoa, compreende-se que a dignidade é um valor que está indissoluvelmente ligado ao próprio ser da pessoa, não admitindo gradações. Neste sentido, todo ser humano é um ser digno e, portanto, não pode, por nenhuma circunstância, ser submetido a tratamentos degradantes.

A dignidade humana, na formulação kantiana, é imperativo categórico porque é um valor intrínseco, incondicional, universal, válido para toda e qualquer ação moral que assegura ao homem seu tratamento como um fim em si mesmo, e não como um meio a ser usado de forma arbitrária pela vontade dos outros. A dignidade é pressuposto da condição humana, sendo contrário ao humano, ou “des-humano”, toda e qualquer situação que viole a natureza humana.

Portanto, atenta contra a dignidade humana tudo o que reduz o ser humano à condição de objeto. As coisas tem preço; as pessoas, dignidade, daí essa exigência de jamais instrumentalizar o homem para se alcançar quaisquer fins. Por conseguinte, as leis, que são fruto da razão prática, devem, necessariamente, preocupar-se com a realização da dignidade humana.

A partir do pensamento dos autores substancialistas apresentados, defende- se o reconhecimento do status pessoal do embrião humano extracorporal, sendo que isso implica no reconhecimento dos seus direitos no reino dos fins. Reconhecer o estatuto pessoal ao ser humano equivale a reconhecê-lo como digno de respeito, como sujeito moral e sujeito de direito.

A possibilidade de atualização inscrita no programa genético do embrião pré-implantatório desde o momento da concepção é suficiente para justificar, no plano moral, a impossibilidade da ciência de intervir na vida humana conforme modalidades não-finalísticas ao projeto humano (PALAZZANI, 1992, p.460).

Se o embrião extracorporal tem um valor em si mesmo, unicamente pelo fato de pertencer à espécie humana, não poderá em nenhuma circunstância ser utilizado como meio. Não instrumentalizar o embrião significa não manipulá-lo, não selecioná-lo, não mutilá-lo, não utilizá-lo ainda que seja com um fim tão altruístico como possível doador de tecidos a um irmão, não destruí-lo para obtenção de células mãe-

34 Todos los deberes para com las personas se reducen al deber de percibirlas como personas. Sin

embargo, no es adecuado formular esta percepción como deber, pues los deberes necesitan fundamentación, mientras que la percepción de las personas es la fundamentación última de los deberes.

embrionárias, não ser objeto de investigação. Apenas aquelas ações que forem encaminhadas à terapia do embrião serão consideradas como ações que o utilizam como fim em si mesmo e não como meio.

4 ASPECTOS MÉDICOS GERAIS DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO

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