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2. O MULTICULTURALISMO: UM DEBATE EM TORNO DO

2.1 A questão do muçulmano e a sua compreensão pelo

Os jovens muçulmanos imigrantes na Europa, sobretudo aqueles a partir da segunda geração (1970), possuem frequentemente poucos laços culturais e étnicos em relação aos seus países de nascimento, ao mesmo tempo sentindo pouco orgulho das sociedades contemporâneas muçulmanas, e como consequência dessa situação voltam-se para o Islã como uma identidade de refúgio, que se revela a única base de seu orgulho. A religião passa a ser o elemento a partir do qual o jovem muçulmano se identifica.76

Para o multiculturalismo defendido por Modood, por exemplo, a religião como elemento de reconhecimento de identidade é tão importante quanto todas as outras classificações. A demanda dos muçulmanos não apenas pela tolerância e liberdade religiosa, mas também pelo seu reconhecimento público, é de fato tida como filosoficamente diferente das demandas feitas pelos negros, mulheres e gays. Ela é vista como um ataque ao princípio da laicidade, segundo o qual a religião é uma característica de identidade privada e não pública.77 No entanto, essa visão é problemática, pelo menos para uma vertente do multiculturalismo, defendida por Modood.

Segundo o autor, para muitos, mas não para ele, ser muçulmano é uma questão de escolha, o que, portanto, não legitimaria a mesma exigência de proteção legal feita pelas mulheres, pelos gays ou negros,

76 Essa é uma leitura compartilhada pela a maioria dos autores que estudam a questão do jovem muçulmano na Europa.

para quem suas características constituem identidades involuntárias. Modood defende que a posição dos muçulmanos hoje em países como a Grã-Bretanha é absolutamente semelhante aos grupos acima. Ninguém escolhe ser muçulmano ou ter nascido em uma família muçulmana, da mesma maneira que ninguém escolhe ter nascido em uma sociedade em que ser muçulmano cria certa hostilidade, desconfiança e desprezo. O compromisso com um secularismo amplo ou um princípio da laicidade exclui alargar a igualdade multicultural aos muçulmanos e outros grupos religiosos, e por isso para o multiculturalismo é tão importante rever os princípios e as disposições institucionais e jurídicas do secularismo.78

No entanto, o multiculturalismo não se tem revelado uma vertente uníssona no que diz respeito à religião. Embora Parekh pareça estar de acordo com Modood sobre vários aspectos relacionados à questão muçulmana na Europa, e sobretudo sobre a interpretação que os liberais fazem da sociedade europeia ou sobre o seu sistema secular79, ainda assim, parece que ele está muito preocupado em mostrar os próprios limites de um multiculturalismo que abriria excessivamente as portas para a entrada da religião na esfera público-política, principalmente com um linguajar religioso que feriria alguns princípios inalienáveis para as sociedades liberais.

Para Parekh, os muçulmanos não representam qualquer problema grave para os Estados liberais europeus, e estes devem encontrar formas de acomodar suas demandas sem ter que alterar radicalmente a estrutura existente. Basicamente, as demandas dos muçulmanos giram em torno de financiamento para escolas muçulmanas, construções de mesquitas, alimentação apropriada para seus filhos nas escolas segundo as regras de

78 Idem.

79 Para Parekh, “embora os liberais estejam certos em se preocupar com o perigo representado pelo islamismo militante, sua ansiedade no contexto europeu é exagerada e em grande parte resulta de um mal-entendido sobre a forma como as sociedades europeias são, na verdade, constituídas e conduzem seus negócios. Nenhuma sociedade europeia ou sistema político é secular no sentido em que os liberais usam o termo. A sua herança cristã moldou e continua moldando seu vocabulário, sua autocompreensão, instituições, ideais e práticas. (...) O fato de que suas raízes históricas são muitas vezes esquecidas e a religião sobrevive como cultura não significa que sua base ou conotação religiosa passe despercebida pelos não-cristãos. Os muçulmanos não introduzem um elemento estranho em uma sociedade que se diz secular. Em vez disso, fala alto na mesma língua o que o resto da sociedade fala em sussurros” (PARECK. European Liberalism and the Muslim question. Amsterdam University Press, Amsterdam: 2008, p. 2)

sua religião, o uso de seus símbolos religiosos no espaço público. A Grã-Bretanha tem financiado escolas anglicanas, católicas e judaicas, e informalmente consulta regularmente as entidades religiosas em assuntos que lhes dizem respeito. Na França, as escolas religiosas, a maioria delas católicas, recebem subvenções públicas. Na Alemanha, a comunidade judaica, as dioceses católicas e as igrejas protestantes gozam do status de corporações publicamente reconhecidas. O Estado cobra impostos de membros da igreja em seu nome e repassa uma parte às igrejas. Quase 80% das escolas maternais religiosas possuem financiamento público, bem como muitos hospitais e outras instituições de bem-estar. Diante de um quadro em que os Estados já fazem concessões às religiões de uma forma geral, não há efetivamente motivos para não incluir os muçulmanos.80

Segundo Parekh, as sociedades europeias em geral têm acomodado de certa maneira as demandas dos muçulmanos, sem comprometer sua índole secular, e a sociedade muçulmana tem aceitado, em grande parte, o seu apoio. Não obstante, nem sempre os valores liberais são respeitados, e uma minoria militante desafia o que eles chamam de “terra dos infiéis sem Deus” Nesta briga em que cada uma das partes parece querer destruir o outro é necessário um compromisso muito mais forte de ambas as partes. Os liberais não devem ter como objetivo convencer os muçulmanos de que o seu modo de vida é o melhor, mas levá-los a ver que esta pode ser uma boa maneira de viver, sem, no entanto, afirmar que esta é a única maneira aceitável de ser humano. O objetivo deve ser limitado à defesa de uma determinada sociedade, em vez de prescrever um modelo universal, afirmando que nenhum homem racional pode deixar de ser convencido por ela. Uma vez que a cultura é explicitamente reconhecida e levada para o discurso político como uma fonte de exigência, então uma forma adicional de raciocínio está disponível tanto para os liberais quanto para os muçulmanos. Nesse sentido, os muçulmanos poderiam argumentar que quando eles oferecem boas razões para suas crenças e práticas culturais, elas devem ser respeitadas e devidamente acomodadas, assim como a sociedade liberal pode exigir igual respeito de sua cultura. Esse apelo ao respeito mútuo tem várias vantagens: primeiramente, na medida em que ele tranquiliza os muçulmanos ao lhes mostrar que sua cultura está sendo valorizada pela sociedade em geral, e que eles não precisam afastar-se da sociedade e voltar-se para suas comunidades como refugiados. Em segundo lugar, ele tranquiliza a sociedade em geral, que

80 Cf. PAREKH, 2008, p. 3-4.

pode continuar a defender seus valores culturais sem se sentir ameaçada por possíveis demandas irresponsáveis e inviáveis pela parte dos muçulmanos. Nesse sentido, as diferenças entre os dois podem ser resolvidas por meio de um diálogo racional, conduzida por um espírito de mútuo compromisso com uma vida comum.81