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PUBLICAÇÃO , PAÍS DA INSTITUIÇÃO À

3. A PRÁTICA DA TRANSPARÊNCIA

3.2. A questão dos processos decisórios em curso

Da tabela referente às justificativas das denegações de acesso, também se vê que a característica "preparatória" dos documentos também foi frequentemente referida na tentativa de fundamentar o sigilo destes. Nesse sentido, o art. 7º, § 3º da Lei de Acesso à Informação foi fundamento da negativa de acesso utilizado tanto pela CNEN (decisão original), no caso de documentos relativos a processo administrativo de 2009 sobre projeto de criação de uma Agência Reguladora para o setor nuclear, quanto pelo MCTIC (decisões original e recursais), no caso de documentos sobre o mesmo tema, mas relativos a processo administrativo de 2011, até o momento ainda em curso. 156

Ocorre que a redação do referido art. 7º, § 3º / LAI tem dado margens a diferentes interpretações quanto ao seu escopo e à sua implementação, ilustrando bem a carência de estudos jurídicos e de decisões judiciais que possam contribuir para uma compreensão mais uniforme a respeito do sistema de transparência no Brasil. O referido dispositivo assim dispõe: "O direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo". Diante da literalidade do texto, cabem os questionamentos: trata- se de garantia de transparência, ou de modalidade especial de restrição de acesso? Em sendo hipótese de sigilo, deve haver classificação ou não? É o que se passa a discutir, a partir do debate jurídico que se apresentou a partir dos mencionados pedidos de acesso.

Em favor do entendimento segundo o qual o parágrafo 3º do art. 7º, ao contrário de restringir os direitos de acesso do cidadão, apenas estabelece mais uma garantia de transparência, existem os seguintes argumentos. Quando a norma estabelece que o acesso será assegurado com a edição do ato decisório, o intuito não é o de determinar que tais documentos poderão ser disponibilizados somente a partir da edição do ato decisório final, mas o de garantir que os documentos utilizados como fundamento da tomada de decisão deverão ser disponibilizados com a edição do ato decisório respectivo — de forma que o cidadão possa saber quais foram as bases da escolha administrativa. Ou seja, o que o referido

Pedido n. 01390001422201775 / CNEN, aberto em 14/12/2017. O recurso foi provido, e as cópias referentes

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ao processo de 2009 sobre a criação da Agência Reguladora foram disponibilizadas. E Pedido n. 01390000294201823 / MCTIC, aberto em 07/02/2018.

dispositivo estabelece não seria uma hipótese de restrição de acesso, mas mais um direito dos administrados: o de saber as verdadeiras razões do ato decisório do Poder Público. Se assim não fosse, a Lei de Acesso à Informação seria até mesmo mais restritiva ao direito de acesso do que, por exemplo, a Lei de Licitações, bem mais antiga. Segundo esta, a licitação (espécie do gênero “processo decisório em curso”) não é sigilosa, “sendo públicos e acessíveis os atos de seu procedimento", ressalvados apenas os conteúdos das propostas dos licitantes, até a data da abertura dessas propostas (art. 3º, §3º / Lei 8.666 / 1993).

Nesse passo, ainda que as informações solicitadas sejam objeto de deliberação ainda em curso, a denegação de acesso só seria autorizada nas hipóteses estabelecidas expressamente pela LAI (ex.: hipóteses de classificação, elencadas no art. 23, e demais hipóteses de segredo estabelecidas em lei, conforme assevera o art. 22). No caso, por 157 exemplo, de uma sindicância — cuja publicização antes de seu fim frustraria o processo administrativo em curso —, o sigilo poderia ser garantido não pelo art. 7º, §3º da LAI, mas pela classificação do art. 24, fulcrada na hipótese do inciso VIII do art. 23 da lei:

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: [...]

VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Por outro lado, mesmo admitindo que “A LAI não proíbe a entrega de tais documentos, mas garante o seu acesso após a edição do ato relativo à tomada de decisão que os usou como fundamento”, a Corregedoria-Geral da União afirma em sua publicação sobre a aplicação da lei que há “relativa discricionariedade da Administração ao conceder acesso a tais documentos antes que o processo de tomada de decisão seja concluído”. Para tanto, 158 segundo a Corregedoria, a justificativa da denegação de acesso deve referir-se a risco à sociedade ou ao processo:

A respeito das demais hipóteses de denegação de acesso, ver quadro na seção 2.2.1 deste trabalho.

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BRASIL. Controladoria-Geral da União. Aplicação da Lei de Acesso à Informação na Administração Pú

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O primeiro critério é a finalidade do processo: quando a disponibilização de uma informação em um processo cuja decisão ainda não foi adotada possa frustrar a sua própria finalidade, é recomendável que esta informação somente seja disponibilizada quando da conclusão do procedimento.

Já o segundo critério relevante tem a ver com as expectativas dos administrados: sabemos que muitas vezes uma informação incorreta ou incompleta pode causar grandes transtornos, ao disseminar na sociedade expectativas que não necessariamente se cumprirão. Trata-se, portanto, de uma cautela necessária para zelar pela segurança jurídica e pela confiança dos administrados. 159

Esse entendimento, segundo o qual o art. 7º, §3º da LAI estabelece verdadeira hipótese especial de sigilo, serviu de parâmetro para as negativas do MCTIC de acesso ao processo administrativo iniciado em 2011, e até hoje em curso, sobre a criação de uma Agência Reguladora para o setor nuclear brasileiro. Segundo, aliás, o Parecer da Consultoria Jurídica do Ministério, que orientou a decisão do recurso em segunda instância, o processo administrativo em curso sequer precisaria de classificação para ficar protegido do acesso público. O embasamento para tal entendimento se encontraria no art. 20 do Dec. 7.724, que, ao falar em classificação apenas para determinados documentos do Ministério da Fazenda e do Banco Central, estaria autorizando a desnecessidade de classificação para todos os outros documentos da Administração Federal que se constituam como “documentos preparatórios":

9. [...] o Decreto no 7.724, de 2012, em seu art. 20, prevê que: 


Art. 20. O acesso a documento preparatório ou informação nele contida, utilizados como fundamento de tomada de decisão ou de ato administrativo, será assegurado a partir da edição do ato ou decisão. 


Parágrafo único. O Ministério da Fazenda e o Banco Central do Brasil classificarão os documentos que embasarem decisões de política econômica, tais como fiscal, tributária, monetária e regulatória. [...]

12. Decerto, excepcionalmente, a legislação previu a possibilidade de um documento ou informação ter seu acesso restrito sem ser classificada como sigilosa. Para tanto, o documento ou informação deve ser preparatório de tomada de decisão ou ato administrativo. Tal ilação decorre, inclusive, da obrigatoriedade de o Ministério da Fazenda e o Banco Central do Brasil classificar como sigilosos mesmo os documentos preparatórios de decisões de política econômica.

Idem, p. 77. Na publicação anterior (2015, p. 77), a CGU sequer considerava a possibilidade de risco à socie

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dade como uma hipótese de sigilo resguardada pelo art. 7º, §3º: "A negativa de acesso é discricionária quando se tratar de processo administrativo em andamento e deverá ser acompanhada da justificativa sobre o prejuízo que a publicidade da informação solicitada poderá causar à efetividade da decisão futura".

13. Ora, se o Decreto Regulamentar impôs tão somente a classificação de sigilo de documentos preparatórios para tomadas de decisões de política econômica, pode-se deduzir que os demais documentos preparatórios, não associados às políticas econômicas, podem ter seu acesso restrito independentemente de classificação, até que haja a edição do ato administrativo do qual é preparatório. Frise-se que se trata de exceção à classificação.160

Há que se considerar, no entanto, que tanto as afirmações da CGU quanto as do MCTIC baseiam-se em ilações decorrentes de interpretação da LAI, mas não em texto positivado. Cabe indagar, portanto, se a CGU e outros órgãos do Poder Executivo não estariam fazendo as vezes de legislador, estabelecendo modalidade de restrição do direito de acesso a informação não autorizada expressamente por lei. Neste caso, a ilegalidade administrativa estaria comprometendo, indevidamente, não apenas um direito individual, mas o direito social de participação democrática em relação às tomadas de decisão da Administração Pública. Ora, na democracia contemporânea, como sabemos, não basta que o administrado tenha apenas “ciência” das decisões já tomadas. É preciso que ele possa conhecer as ideias e pretensões da Administração enquanto elas ainda estão sendo discutidas, de modo a poder participar e influir nesse processo deliberativo. Especialmente em se tratando de um processo decisório tão importante e, ao mesmo tempo, tão longo quanto tem sido o da criação de Agência Reguladora para o setor nuclear, não faz sentido que o cidadão brasileiro não possa ter qualquer notícia a respeito do conteúdo do projeto ou das discussões que lhe digam respeito.

Com efeito, no caso da solicitação feita ao MCTIC, a nota técnica que orientou a decisão administrativa na primeira instância recursal admitiu essa necessidade de participação democrática, mas a considerou suprida pela possibilidade de realização de consultas públicas. Estas, entretanto, segundo a Lei dos Processos Administrativos da Administração Pública Federal (Lei 9.784 / 1999), não são mandatórias: “Art. 31. Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada”. Assim, os mecanismos de transparência

Pedido n. 01390000294201823 / MCTIC, aberto em 07/02/2018, Parecer n. 00398/2018/CONJUR-MCTIC/

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oferecidos pela LAI são peças-chave da participação pública nos processos de tomada de decisão da Administração.

De qualquer forma, ainda que se admita, no caso de documentos preparatórios, a possibilidade de imposição de sigilo sem classificação, há de se reconhecer a necessidade da devida fundamentação, conforme afirmou a própria CGU. Isso porque, se todos os documentos passíveis de serem utilizados como fundamento de tomada de decisão puderem ser objeto de sigilo até a decisão final, a bel prazer da Administração, viveremos em uma situação de completa opacidade. Ora, já que qualquer documento pode ser utilizado como fundamento de ato administrativo, a Administração poderia produzir e coletar todos os tipos de informação imagináveis e não os disponibilizar ao público, ao argumento de que tais informações serão usadas para decisão futura. Um trivial relatório anual de prestação de contas, por exemplo, poderia ficar restrito ao órgão administrativo que o produziu, sob a justificativa de que as informações nele contidas serviriam de base para um processo decisório em curso sobre criação de uma nova diretoria financeira.

No caso, por exemplo, do pedido ao MCTIC, é de se prever que, mais do que a proposta de criação de uma Agência Reguladora, o processo requerido traga informações sobre as necessidades institucionais atuais do setor nuclear e sobre os desafios para suplantá- las. São dados que diriam respeito tanto a situações passadas já consolidadas quanto a situações presentes e que em nada poderão frustrar os objetivos de eventual criação de Agência Reguladora. No entanto, embora a nota técnica que orientou a decisão em sede recursal afirmasse que, no caso, o sigilo recaía sobre documentos específicos, nenhum documento do processo foi disponibilizado, e a motivação apresentada deu-se em termos genéricos: “a abertura prematura dos autos ao acesso público poderá, além de causar falsas expectativas nos segmentos interessados, provocar tumulto desnecessário à condução do processo” (grifo meu). Note-se que a justificativa cabe perfeitamente a qualquer processo decisório que esteja em curso.

Enfim, fica patente que o modo como se interpreta a redação do art.7, §3º da LAI tem expressivas implicações sobre o direito individual de acesso a informação e sobre as capacidades democráticas de monitoramento da Administração Pública. Espera-se, por conseguinte, que a interpretação da CGU seja superada e que que se consolide o entendimento

de que o mencionado dispositivo nada mais é do que mais uma garantia de acesso para o cidadão. Dessa forma, qualquer documento que faça parte de processo decisório em curso só deverá ficar protegido pelo sigilo se for devidamente classificado, de acordo com as hipóteses do art. 23 / LAI, ou se se enquadrar em alguma outra hipótese legal de segredo, nos termos do art. 22 / LAI. Isto é, a mera natureza preparatória não poderá ser fundamento da denegação de pedido de acesso. Caso prevaleça, porém, o entendimento segundo o qual o sigilo de documento preparatório não depende de classificação, que ao menos a motivação da negativa de acesso não seja genérica. Com efeito, cabe o teste: a justificativa dada serviria para qualquer processo decisório em curso? Se sim, ela é insuficiente para se constituir como motivação adequada.