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A questão (problemática) da autoria

1.2 Caracterizando as CSM

1.2.1 A questão (problemática) da autoria

Esta é como Santa Maria rogou a seu fillo pola alma do monge de San Pedro, por que rogaran todo-los

santos, e o non quis fazer senon por ela.

(título-ementa da CSM 14 – METTMANN, 1986, p. 91)

(1.3)

Esta é como a omagen de Santa Maria, que um mouro guardava em sa casa onrradamente, deitou leite das

tetas

(título-ementa da CSM 46 – METTMANN, 1986, p. 171)

Fechando este tópico, resta-nos dizer que, ao contrário das cantigas de milagre, é difícil encontrar modelos concretos para as cantigas de louvor, já que todos os temas, os epítetos, as imagens e comparações têm antecedentes ou paralelos com a literatura mariana anterior e contemporânea, nas quais o rei e os seus colaboradores se inspiraram (METTMANN, 1986, p. 14).

1.2.1 A questão (problemática) da autoria

A questão da autoria das CSM é muito discutida por diversos pesquisadores. Dedicamos, nesta Dissertação, uma subseção exclusiva a este assunto, devido à sua relevância. São duas as razões para tal abordagem: serve para dirimir dúvidas quanto à periodização do corpus, ou seja, localiza-o em termos de data, e comprova que o corpus considerado nesta Dissertação é um representante legítimo da variedade galego-portuguesa

medieval, apesar de ter sido o cancioneiro mariano compilado em terras que hoje são espanholas.

Teria Afonso X, um rei tão ocupado com questões políticas, tido tempo para compor todas as CSM sozinho? “Por um lado, é realmente difícil de acreditar, dada a vasta dimensão e a incomensurável qualidade artística (literária e musical) da coleção, que o Rei fosse pessoalmente o autor de todas as músicas e poemas das CSM” (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p. 61), mas veremos que é válido considerar Afonso X como o verdadeiro organizador, aquele que projetou as cantigas do modo como são: “Embora tivesse colaboradores, planejou e revisou pessoalmente toda a sua obra, além de haver composto, ele próprio, grande parte das cantigas e das músicas” (LEÃO, 2007, p. 38).

De acordo com Parkinson (1998a, p. 183), mesmo que a lógica indique que seja impossível o rei ter composto todas as 420 cantigas, é válido afirmar o empenho pessoal do rei na estruturação e composição dessa obra, podendo até admitir a composição de algumas cantigas por parte do monarca.

Mettmann (1986, p. 18) afirma a possibilidade de vários autores, mas não deixa dúvidas ao afirmar que a maioria das cantigas seja de autoria de uma única pessoa: “es sin

embargo probable que la mayoría de los poemas se deban a una sola persona y que el número de los autores no haya pasado de la media docena”.11 Para Mettman (1986, p. 20),

existe a possibilidade de que Airas Nunes tenha composto parte considerável da coletânea, uma vez que seu nome aparece grafado no códice E entre duas colunas da cantiga 223, além disso, há semelhanças entre as cantigas remanescentes desse conhecido trovador galego e certas cantigas presentes no cancioneiro mariano afonsino.

Filgueira Valverde (1985, p. 31) aponta outros prováveis trovadores que podem ter participado da elaboração das CSM, dentre eles o estudioso cita o frei franciscano Juan Gil de Zamora que era amigo e confessor do rei. De acordo com Filgueira Valverde (1985), Zamora escreveu um marial denominado Liber Mariae no qual são relatados 70 milagres da Virgem, dos quais 50 coincidem com milagres narrados na obra afonsina. Outro autor citado como possível colaborador é o clérigo Bernardo Brihuega, de quem Afonso X teria encomendado

11 Tradução nossa:

“No entanto, é provável que a maioria dos poemas seja de uma única pessoa e que o número de autores não passou de uma meia dúzia.”

alguns códices hagiográficos.12 Filgueira Valverde (1985, p. 32) também aponta para o envolvimento de Airas Nunes na elaboração da coletânea afonsina.

Para Parkinson (1998a, p. 185), embora o trabalho da elaboração das CSM tenha sido fruto de uma equipe extensa e bem estruturada, ele considera que cabe a Afonso X o título de autor dessa obra, uma vez que ele foi o grande idealizador, aquele que “mandou fazer” o cancioneiro mariano. Para a elaboração dessa coletânea o monarca teria encomendado o trabalho de tradutores, poetas ou versificadores, músicos, copistas, miniaturistas, etc.

Estamos reconstruindo a organización do scriptorium das Cantigas, no cal vemos um equipo extenso e estructurado, o mesmo que na composición dos tratados científicos e históricos. Habería así traductores de milagres franceses, casteláns, latino, portugueses; poetas ou versificadores encargados de versificar os milagres; músicos; copistas; miniaturistas. A enorme variación de cualidade estilística entre loores e algúns miragres bem adornados e dignos da lírica galaico-portuguesa, e outras cantigas máis rutineiras, tortas, demasiado extensas, suxíreme un equipo de clérigos (no seu sentido máis amplo) encargados de poñer en verso os milagres recollidos, como contrapartida do equipo de pintores encargados de convertelos en miniatura. Moitos trazos estilísticos individuais das versions iniciais de cantigas fabricadas pólo mesmo núcleo non resistirían o proceso de corrección e alteración central. (PARKINSON, 1998a, p. 185)

Sobre esse trabalho em equipe para a elaboração do scriptorium das CSM, Leão (2007, p. 20) afirma que se tratava de um trabalho cooperativo no qual estavam envolvidos, assim como disse Parkinson (1998a), poetas, desenhistas, miniaturistas, músicos, tradutores, mestres de diversas artes. Todo esse conjunto de colaboradores trabalhava como nas antigas corporações de ofício, em que a obra que se fazia estava sob a direção de um mestre, no caso, Afonso X:

Mas não só poetas ali se acolhiam. Também eram recebidos pelo Rei Afonso X desenhistas, miniaturistas, músicos e tradutores de várias origens, sem falar de mestres em todas as artes liberais e também de sábios de coisas do Oriente. Esse conjunto extraordinário de colaboradores, formados em três culturas diferentes – a muçulmana, a judaica e a cristã – passou à História com o nome de “escola de tradutores de Toledo”. Assim, muitas de suas obras Dom Afonso as escreveu ou traduziu pessoalmente. Algumas outras, porém, ele planejou, supervisionou e revisou, confiando o grosso da execução a seus colaboradores, numa espécie de processo medieval de trabalho cooperativo sob sua direção. Aliás, esse sistema adotado no

scriptorium real coincide com o que ocorria nas corporações de ofício, onde

12 Relativo a “hagiografia”, segundo Houaiss, Villar e Franco (2004, p. 1503), “biografia ou estudo sobre

biografia de santos”. A respeito dos “primitivos exemplos da hagiografia medieval de território português”, veja- se Nascimento (1993).

toda obra se fazia sob a direção de um “mestre”, cuja responsabilidade e autoridade lhe garantiam o direito de autoria sobre o trabalho realizado por “companheiros” e “aprendizes”. (LEÃO, 2007, p. 20)

A este respeito, Castro (2006, p. 44) afirma que Afonso X era um verdadeiro mestre de obras, ou, melhor dizendo um arquiteto: “Como um mestre de obras, um arquiteto medieval que cuidava de uma catedral, D. Afonso era o coordenador que supervisionava o trabalho de vários artífices para formar uma obra cuja grandiosidade espelharia a imensidão da fé e dos poderes divinos”.

Mas, mesmo tratando-se de um trabalho com a participação de diversos colaboradores, Leão (2007, p. 38) atesta a grande participação de Afonso X, tanto no planejamento e revisão do marial, como na elaboração de algumas cantigas. De acordo com Leão (2007, p. 38), a autoria de Afonso X fica comprovada “pelos inúmeros poemas em primeira pessoa, muitos deles auto-referentes” em que o monarca trata de assuntos como sua devoção pela Virgem, de sua família, de seu reino, de suas viagens, de suas doenças, de seu livro de cantigas, de seu prazer em trovar, etc.

Assim como Leão (2007), Snow (1999) também ressalta a grande equipe que trabalhou na confecção das CSM, afirmando que era composta por colaboradores muito talentosos, representantes das três culturas: muçulmana, cristã e judaica. Snow (1999, p. 158) concede a Afonso X o título de “fazedor” de livros, porém em um sentido especial, no qual reconhece a participação pessoal do rei, mas, ao mesmo tempo, a intervenção de muitos colaboradores.

Logo, podemos afirmar que é consenso unânime entre os estudiosos expostos aqui que cabe a Afonso X o título de autor das cantigas devido ao seu grande empenho na supervisão e até mesmo participação na elaboração de sua coletânea mariana. Também verificamos que todos consideram o caráter colaboratório da confecção do cancioneiro afonsino.

Outro ponto em comum entre os autores revisitados diz respeito à grandiosidade da obra. Segundo Fidalgo (2002), as CSM foram feitas para ser “exibidas”, pois o tamanho do marial não é apropriado para fins de leitura pessoal. A autora ainda afirma que o cancioneiro não serviria para ostentar o poder do monarca, mas para ressaltar a boa relação do rei com a Virgem que o protegia nas suas empreitadas, e velaria assim por sua propaganda política.

Uma comprovação desse gosto do monarca pelos estudos e pelo fazer poético vem pelo escritório e pela biblioteca que ele matinha em seu castelo; esses lugares foram testemunhas de toda criação que ali se deu. Podemos afirmar que Afonso X possuiu em seu

escritório uma verdadeira oficina de arte formada por poetas, desenhistas, músicos, tradutores e miniaturistas de origens distintas (LEÃO, 2007, p. 20).

Mas não só poetas ali se acolhiam. Também eram recebidos pelo Rei Afonso X desenhistas, miniaturistas, músicos e tradutores de várias origens, sem falar de mestres em todas as artes liberais e também sábios de coisas do Oriente. Esse conjunto extraordinário de colaboradores, formados em três culturas diferentes - a mulçumana, a judaica e a cristã - passou à História com o nome de “escola de tradutores de Toledo”. (LEÃO, 2007, p. 20)

É importante salientar que D. Afonso X escolheu o galego-português para a elaboração de suas cantigas, apesar de o idioma que se falava em seu reino ter sido o castelhano. Tal escolha é justificada como o fruto da educação recebida pelo monarca, que teve contato direto com a língua de Galiza. O rei sábio, assim como afirma Filgueira Valverde (1985, p.11), passou parte de sua infância na Galiza, portanto, podemos considerá-lo um falante nativo da língua que lá se falava, já que, de acordo com o mesmo autor, Afonso X passou nove anos de sua infância, dos 2 aos 11 anos, em terras onde se falava o galego-português.13 Não devemos desconsiderar o fato de que é justamente nesta fase que se dá a aquisição da língua materna.

A respeito da educação recebida, Leão (2007, p. 18) afirma:

[...] foi confiado a um casal de nobres de Burgos, de quem recebeu educação compatível com seu estado. Sua educação escolar, supõe-se, não excluiu contatos com Santiago de Compostela, portanto com a lígua galaico- portuguesa. Essa é, pelo menos, uma das hipóteses aceitas.

Além disso, Afonso X “reconhecia na Galiza a pátria tradicional do lirismo e, na sua língua, o instrumento ideal da poesia” (LEÃO, 2007, p. 38).

13 Massini-Cagliari (2007), em um artigo, discute a pertinência de se considerar as CSM como corpus da diacronia do português, a partir da análise de alguns aspectos prosódicos da língua nelas registrada, comparando as cantigas profanas, escritas em Portugal e Galiza, e as religiosas, escritas em Castela. Com este artigo a autora esclarece o questionamento de muitos estudiosos a respeito da possibilidade de Afonso X ter sido falante nativo ou não do galego-português. Massini-Cagliari (2007) relata que Filgueira Valverde (1985) e Beltrán (1997 apud Massini-Cagliari, 2007) consideram esta não uma possibilidade, mas uma certeza, já Leão (2002) afirma que existe interferência do castelhano no galego-português das CSM, uma vez que esta era a língua materna do rei sábio. Através deste estudo, Massini-Cagliari (2007) concluiu que não existe distinção linguística entre as duas vertentes (galego das cantigas profanas e o galego das cantigas religiosas), portanto podemos considerar Afonso X um falante nativo do galego-português.

O que mostra a comparação entre os corpora de cantigas profanas e religiosas é que a distinção lingüística entre essas duas vertentes, quanto aos fenômenos prosódicos observados, não são de tipologia dos fenômenos, mas de freqüência. Não havendo distinções tipológicas, não há diferença de sistema; em outras palavras, trata-se de uma e a mesma língua. (MASSINI-CAGLIARI, 2007, p. 122)

Ainda a respeito da escolha do galego-português, não podemos deixar de considerar essa opção devido ao prestígio que o monarca teria com a escolha dessa língua; trata-se da utilização de uma língua de cultura em um país estrangeiro.

[...] o galego-português é usado como língua de cultura em um país estrangeiro, Castela, a mando do Rei, para poder melhor louvar a Virgem, na língua mais apropriada para esta finalidade. Trata-se, portanto, de uma especialização de uso, em território alienígena. (MASSINI-CAGLIARI, 2005, p. 20)

Na opinião de Leão (2007, p. 21), o galego utilizado na elaboração da coleção é o culto e erudito, e não o falado pelo povo da Galiza; era um verdadeiro idioma literário que tanto Afonso X quanto outros poetas souberam utilizar magnificamente. Além disso, podemos afimar, em relação à escolha do galego-português, que as razões transcendem os domínios ibéricos, sendo um fenômeno geral da Europa:

Parece que o motivo não estaria nem numa excentricidade do Artista, nem numa leviandade política do Monarca, mas no fascínio exercido por uma língua que se afirmava como apta, ou até como ideal, para a poesia. Aliás, esse fato não era único na Europa Medieval, onde três línguas vernáculas gozavam da preferência dos poetas: o galego-português, no mundo ibero- românico; o provençal no domínio galo-românico; e o toscano no âmbito ítalo-românico. O seu prestígio era tão amplamente reconhecido, que muitos trovadores, no ato de trovar, deixavam de lado as suas respectivas línguas maternas e adotavam uma das três grandes línguas poéticas de então. Foi o que ocorreu com D. Afonso X. Compôs suas próprias cantigas e dirigiu ou supervisionou a composição de outras pelos seus colaboradores, utilizando o galego-português. (LEÃO, 2002, p. 2)

Finalizamos esse tópico sobre a autoria das CSM com uma afirmação de Snow (1999, p. 169) sobre a legitimidade de Afonso-trovador na compilação de seu cancioneiro mariano:

[...] creo legítimo hablar de Alfonso-trovador, es decir su presencia literária

e iconográfica en las Cantigas, como factor esencial em mi consideración de esta compilación como uma narrativa orgânica, com su núcleo visible en las relaciones que quiere establecer el poeta-entendedor con María y todos los

sucesos que se narran al respecto.14

14 Tradução nossa:

“Acredito ser legítimo falar de Afonso-trovador, ou seja, sua presença literária e iconográfica nas Cantigas são um fator essencial, na minha opinião, a respeito desta compilação como uma narrativa orgânica, com seu núcleo visível nas relações que quer estabelecer o poeta-entendedor com Maria y todos os sucessos que se narram a respeito.”

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