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A questão da verossimilhança

No documento Carl Winter: um alemão em Santa Fé (páginas 110-116)

Embora sabendo que a personagem Carl Winter é puramente imaginária, a temos em nossa mente como se fosse um ser real. Acreditamos na verdade de sua existência. A verdade da ficção ou da Literatura, na visão de Flávio Loureiro Chaves (2004, p.9), reside na sua possibilidade de convicção, ou seja, se uma obra nos convence, passa a ser verdadeira e participa de nossa visão do mundo como se fosse real; se não nos convence, a abandonamos assim como a suas personagens, relegando-as ao esquecimento.

Nesse sentido, não é o fato de uma personagem representar uma pessoa real que a dota de credibilidade, mas sim a verossimilhança que preside a sua criação, responsável pela elaboração de seu aspecto físico, de seus gestos, palavras e pensamentos de forma lógica e coerente. E é essa característica que determina também a ficcionalidade de uma obra literária.

O conceito de verossimilhança surge com Aristóteles, definido como o critério fundamental que preside a mimesis, no sentido de que na obra literária a ação se organiza como se organizaria na realidade, isto é, segundo uma coerência relativa, semelhante à que preside os eventos da vida diária. Na concepção de Aristóteles (1996, p.78), “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” O campo da mimesis, assim, não se circunscreve ao da verdade, mas ao do possível, não se restringindo a uma única visão possível do objeto a ser representado.

De acordo com Lígia Militz da Costa (1998, p.12), desvinculando a arte literária da verdade (tomada aqui no sentido de realidade), Aristóteles concedeu-lhe autonomia ao relacioná-la ao princípio da verossimilhança, que significa, em primeiro lugar, que a obra artística tem como objeto de representação o possível e não o historicamente verdadeiro, constituindo a verossimilhança externa; e, em segundo lugar e com maior importância, o

verossímil significa o princípio interno ordenador da construção mimética, baseado nas relações de causa, lógica e necessidade, o qual faz da obra um todo coeso, uno e exclusivo, constituindo a verossimilhança interna.9

Verossímil, portanto, não é necessariamente o verdadeiro, mas o que parece sê-lo, graças à coerência da representação fictícia. E nem sempre o verdadeiro, na ficção é verossímil. Um enredo e personagens podem ser verdadeiros, contudo podem não convencer o leitor, exatamente porque sua construção desrespeitou as convenções necessárias ao conjunto autônomo da obra.

O Dr. Carl Winter, natural de Eberbach, Alemanha, formado na Universidade de Heidelberg, não possui nenhum registro na História que comprove sua existência real. Trata- se, portanto, de uma criatura inventada, de uma personagem de ficção, um ser de linguagem. Carl Winter é construído por palavras e só existe na mente de seu criador e na dos leitores que o imaginam cada um a sua maneira, guiados pelos dados fornecidos pelo texto. No entanto, o fato de ser verossímil, isto é, de dar a impressão de ter existido, garante seu poder de convicção perante o leitor, que passa a acreditar na sua participação na trama da narrativa.

O teórico Tzvetan Todorov (2003, p.113), recuperando o conceito de verossimilhança de Aristóteles, acredita que é através do uso da linguagem que um autor atribuirá verossimilhança a uma obra literária: “não se trata mais de estabelecer uma verdade (o que é impossível), mas de se aproximar dela, de dar uma impressão de verdade; e essa impressão será tanto mais forte quanto mais hábil for o relato.”.

Ao introduzir a personagem Carl Winter na vida de Santa Fé, o escritor atribuiu-lhe um passado e características capazes de justificar seu comportamento, atitudes e pensamentos posteriores, tudo isso relacionado, principalmente, à função destinada à personagem na narrativa de O Continente. Assim, a decepção amorosa motiva a saída de Carl Winter da Alemanha, trazendo-o ao Brasil e, conseqüentemente, ao Rio Grande do Sul; a profissão de médico o coloca em convivência íntima com a família protagonista, os Terra-Cambará; sua sabedoria permite-lhe aconselhar os membros dessa família, tornando-o uma espécie de confessor; sua sensibilidade torna-se indispensável para as reflexões que elabora sobre a sociedade que observa na condição de estrangeiro; e seu envolvimento com a trama da história o distancia cada vez mais de sua terra natal e de sua cultura, impedindo-o de voltar às suas origens.

9 O desdobramento do critério da verossimilhança em externa e interna, não está explícito na Poética, sendo,

entretanto uma forma operatória adequada para avaliar a teoria mimético-estrutural que Aristóteles propõe para a arte literária. Segundo a autora, essa distinção é referida por Luiz Costa Lima no ensaio intitulado A estética aristotélica da suspensão do juízo. In: Estruturalismo e teoria da literatura. Petrópolis: Vozes, 1973.

Nesse sentido, o encadeamento causal que estrutura todas essas ações, segundo o critério do verossímil (possível) e do necessário (lógico), opera para uma finalidade específica: permitir à personagem ser porta voz de uma análise crítica da sociedade rio- grandense, realizada mediante uma ótica externa. Todos os elementos que o romancista escolhe para apresentar a personagem, física e psicologicamente funcionam como índices. Cada elemento adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo na verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos.

De acordo com Antonio Candido (1998, p.20), graças ao vigor dos detalhes, à “veracidade” de dados insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à causalidade dos eventos, tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário. No entanto, a aparência da realidade não renega o seu caráter de aparência. Cabe ao escritor convidar o leitor a permanecer na camada imaginária que se sobrepõe e encobre a realidade histórica, a entrar no jogo e participar do mundo do “faz-de-conta” criado pelo texto.

A personagem, segundo esse teórico, é o elemento do texto literário que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e cristaliza. Um romance pode iniciar com a descrição de um ambiente ou paisagem, mas é geralmente com o surgimento de um ser humano que se declara o caráter fictício ou não-fictício do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária. Vejamos a seguinte passagem do capítulo A Teiniaguá:

Naquele mesmo instante o Dr. Carl Winter – que atravessava a praça com suas passadas lentas e largas – olhava para a casa de Aguinaldo Silva e também pensava em Luzia. Tinha-a na mente tal como a vira no Sobrado na festa de seu aniversário, toda vestida de preto, junto duma mesa, a tocar cítara com seus dedos finos e brancos. Nessa noite ficara fascinado a observá-la, e houve um minuto em que uma voz – a sua própria a sussurrar- lhe em pensamento – ficara a repetir: Melpômene, Melpômene... Sim, Luzia lhe evocava a musa da tragédia. (VERISSIMO, 2002, p.36).

Notamos nesse trecho, talvez sem reconhecer as causas, que o “Dr. Carl Winter” não é uma pessoa e sim uma personagem. Certas palavras e frases sem importância aparente nos colocam dentro da consciência de Carl Winter, fazem-nos participar de sua intimidade:

“tinha-a na mente”; “ficara fascinado a observá-la”; “sussurrar-lhe em pensamento”; “Luzia lhe evocava”. Tais orações indicam que se verificou uma espécie de identificação com a personagem, de modo que o leitor é levado, sutilmente, a viver a experiência dela, a sentir juntamente com ela suas sensações, a penetrar em seus pensamentos. Ou seja, somente com o surgir da personagem tornam-se possíveis esses tipos de orações categoricamente diversas de qualquer enunciado em situações reais ou em textos não-fictícios.

Nesse sentido, pode-se dizer que a verdade ficcional é construída pela linguagem e depende muito, segundo Antonio Candido (1998), da escolha da palavra certa, insubstituível, da sonoridade específica dos fonemas, das conotações das palavras, da carga semântica, do jogo metafórico, do estilo, ou seja, da organização dos contextos de unidades significativas, e outros elementos de caráter estético. “A criação de um vigoroso mundo imaginário, de personagens ‘vivas’ e de situações ‘verdadeiras’ exige em geral a mobilização de todos os recursos da língua, assim como de muitos outros elementos da composição literária.” (CANDIDO, 1998, p.36-37).

Na ficção, ainda de acordo com esse teórico, o raio de intenção se dirige à camada imaginária sem passar diretamente às realidades empíricas possivelmente representadas, detendo-se, assim, no plano das personagens, situações ou estados, fazendo o leitor viver imaginariamente os destinos e aventuras das personagens. A maioria dos leitores, porém, põe o mundo imaginário quase imediatamente em referência com a realidade exterior à obra, já que as objectualidades puramente intencionais, embora tendam a prender a intenção, são tomadas na sua função mimética, como reflexo do mundo empírico.

Na medida em que se acentua o valor estético da obra ficcional, o mundo imaginário se enriquece e aprofunda, perdendo o raio de intenção dentro da obra e tornando-se por sua vez, transparente a planos mais profundos, imanente à própria obra. Dessa forma, a riqueza e profundidade da camada imaginária e dos planos por ela revelados pressupõe imaginação, capacidade de observação, intuição psicológica por parte do escritor. No entanto, conforme Antonio Candido (1998, p.43):

Tudo isso adquire relevância estética somente na medida em que o autor consegue projetar este mundo imaginário à base de orações, isto é, através da precisão da palavra, do ritmo e do estilo, dos aspectos esquemáticos especialmente preparados, sobretudo no que se refere ao comportamento e à vida íntima das personagens; aspectos estes cujo preparo, por sua vez, se relaciona intimamente à composição estilística e à camada sonora dos fonemas.

A respeito da composição da personagem Carl Winter, Erico Verissimo declara em seu livro de memórias Solo de Clarineta (1994, p.300), que esta não se parece psicologicamente com ninguém que ele tenha conhecido, ou seja, a personagem não foi inspirada em nenhum modelo real. No entanto, isso não descarta a possibilidade de que sua composição tenha se formado a partir de um mosaico de características de pessoas reais com as quais tenha convivido, já que a construção de uma narrativa ficcional muitas vezes se processa com resquícios de experiências vividas pelo escritor, ou até mesmo, com a recuperação, realizada de forma inconsciente, de fragmentos de pessoas conhecidas. Nesse mesmo livro, Erico Verissimo fala da importância do inconsciente para a criação literária, comparando-o com um “computador”, cuja memória vai sendo programada com imagens, conhecimentos, idéias, impressões de leitura, dados que ficam armazenados e, às vezes, esquecidos por muitos anos. Mas, quando o escritor se prepara para escrever um romance e pensa nas personagens,

o “computador”, sensível sempre às nossas necessidades, rompe a mandar- nos “mensagens”, algumas boas – “pedaços” físicos ou psicológicos de pessoas que conhecemos – outras traiçoeiras – recordações de livros lidos e “esquecidos” que nos podem levar ao plágio. Cabe ao consciente fazer a seleção, repelir ou aceitar as mensagens do “computador”. Nada do que nos vem à mente é gratuito. Não é possível nem creio que seja aconselhável tentar criar do nada, esquecer as nossas vivências, obliterar a memória. (VERISSIMO, 1994, p.293).

Segundo o romancista, a construção da personagem foi elaborada a partir da leitura de uma monografia sobre a cidade e o município de Cruz Alta, na qual descobriu que no ano de 1852, um médico natural da Alemanha havia apresentado suas credenciais à Câmara Municipal, e isso magicamente conjurou em sua mente a figura do Dr. Carl Winter.

Mesmo quando toma um modelo da vida real, na perspectiva de Antonio Candido (1998, p.65), o escritor sempre acrescenta a ele, no plano psicológico, a sua incógnita pessoal, graças à qual procura revelar a incógnita da pessoa copiada. Assim, o escritor é obrigado a construir uma explicação que não corresponde ao mistério da pessoa viva, mas que é uma interpretação desse mistério. E essa interpretação ele elabora com sua capacidade de clarividência e com a onisciência do criador, soberanamente exercida.

Dessa maneira, a impressão de verdade que envolve a personagem Carl Winter na narrativa de O Continente é devida a fatores diferentes da mera adesão ao real, embora este possa ser, e efetivamente é, um dos seus elementos. A personagem nos parece real quando “o romancista sabe tudo a seu respeito”, ou dá esta impressão, mesmo que não o diga. É como se a personagem fosse inteiramente explicável; e isto lhe dá uma originalidade maior que a da vida, onde todo conhecimento do outro é fragmentário e relativo. Como afirma Antonio Candido (1998, p.66):

Enquanto na existência quotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os motivos profundos da ação dos seres, no romance estes nos são desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente, estabelecer e ilustrar o jogo das causas, descendo a profundidades reveladoras do espírito.

Sendo a personagem, portanto, uma composição verbal, uma síntese de palavras que sugere certo tipo de realidade, ela está sujeita, antes de qualquer coisa, às leis de composição das palavras, à sua expansão em imagens, à sua articulação em sistemas expressivos coerentes, que permitem estabelecer uma estrutura narrativa. A verossimilhança propriamente dita, que depende em princípio da possibilidade de comparar o mundo do romance com o mundo real, acaba dependendo da organização estética do material, que apenas graças a ela se torna verossímil. Dessa forma, acredita-se que o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo. Mesmo que a personagem seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que obedecer a um critério estético de organização interna.

No documento Carl Winter: um alemão em Santa Fé (páginas 110-116)

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