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Discurso direto e discurso indireto livre

No documento Carl Winter: um alemão em Santa Fé (páginas 104-110)

Como já mencionamos, o texto é o único dado concreto capaz de mostrar os elementos utilizados pelo escritor para atribuir consistência às suas personagens e estimular as reações do leitor. Desse modo, é possível analisar em uma narrativa as formas encontradas pelo escritor para caracterizar as personagens, sejam elas inspiradas em figuras reais ou totalmente imaginárias, como explica Beth Brait (1999, p.52):

Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e sensíveis seus movimentos.

Assim, a narração em primeira ou terceira pessoa, a descrição minuciosa ou sintética de traços, o discurso direto, indireto ou indireto livre, os diálogos e os monólogos são técnicas escolhidas e combinadas pelo escritor a fim de possibilitar a existência de suas criaturas de papel, constituindo recursos narrativos relevantes para a análise da obra literária.

Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possíveis de caracterização de personagens, segundo Beth Brait (1999, p.52), esbarra necessariamente na questão do narrador, esta instância narrativa que conduz o leitor por um mundo que parece estar se

criando à sua frente. De acordo com a postura do narrador, ou seja, do lugar em que ele se posiciona para contar a história, teremos um ponto de vista capaz de caracterizar as personagens.

No enredo de O Continente, o narrador em terceira pessoa, apresenta-se como um elemento não envolvido na história, como uma câmera, para utilizar a definição de Beth Brait, que tudo vê e tudo sabe sobre suas personagens, até mesmo seus pensamentos mais íntimos. O leitor, por sua vez, guiado por essa câmera, vive a curiosa experiência de conhecer uma personagem, o espaço habitado por ela e as relações que estabelece com esse espaço e com os demais seres que nele habitam.

No entanto, essa câmera não é neutra. Há alguém por trás dela, selecionando e combinando as imagens a serem mostradas, controlando os registros. O narrador domina todo um saber sobre a vida da personagem e seu destino. Sabe de onde parte e para onde se dirige, o que pensa, faz ou diz, como uma espécie de Deus que lhe tolhe a liberdade.

Dessa forma, a personagem vai surgindo do desconhecido graças aos recursos de um narrador privilegiado, onisciente, que na sua posição de observador não personificado, pode não apenas mostrar os movimentos que a delineiam, mas também revelar seus sentimentos e pensamentos.

De acordo com Beth Brait (1999, p.55), a apresentação da personagem por um narrador em terceira pessoa é um recurso muito antigo e eficaz, dependendo da habilidade do escritor que o utiliza, constituindo uma tentativa de criar uma história capaz de ganhar a credibilidade do leitor: “No Antigo Testamento, assim como nas epopéias clássicas ou nos contos de fada, a personagem não é posta em cena por ela mesma, mas por suas aventuras, pelo relato de suas ações. E nem por isso deixa de ter consistência e ganhar credibilidade”.

Em O Continente, o narrador em terceira pessoa simula um registro contínuo, focalizando as personagens nos momentos precisos que interessam ao andamento da história e à materialização dos seres que as vivem. Ele vai construindo por meio de pistas fornecidas pela narração, pela descrição e pelo diálogo o perfil das personagens que transitam pela intriga e constituem o mundo a ser representado. Beth Brait (1999, p.58) afirma que:

A descrição, a narração e o diálogo funcionam como os movimentos de uma câmera capaz de acumular signos e combiná-los de maneira a focalizar os traços que, construindo essas instâncias narrativas, concretizando essa existência com palavras, remetem a um extratexto, a um mundo referencial e, portanto, reconhecido pelo leitor.

Nesse sentido, a caracterização física da personagem, a utilização do discurso direto para mostrar sua relação com as demais personagens, e discurso indireto livre para expressar seus pensamentos e emoções, a composição do espaço e o desenho do ambiente devem combinar-se de forma harmônica para construir progressivamente o saber da personagem e do leitor, constituindo um recurso que aponta para a verossimilhança interna da obra.

Embora participando de todo o enredo de O Continente, a personagem Carl Winter aparece com maior freqüência no capítulo intitulado A Teiniaguá, no qual ocorre sua caracterização por parte do narrador, e onde está localizada a maioria dos diálogos e discursos envolvendo a personagem.

O discurso direto é empregado nos momentos em que o Dr. Winter interage com outras personagens através de diálogos. Pode-se perceber a utilização desse tipo de discurso na seguinte passagem em que Carl Winter conversa com Aguinaldo Silva e sua filha Luzia, no dia do noivado da moça com Bolívar, filho de Bibiana. A conversa transcorre no Sobrado, de onde os convidados da festa dentro de pouco observariam, na praça em frente, o enforcamento do negro Severino, acusado de duplo homicídio:

Winter cruzou as pernas e disse ao dono da casa:

- Mas o senhor parece que não teve nenhuma piedade do negro. Me diga então uma coisa: quando vê um branco batendo num escravo, vosmecê não fica também revoltado?

Aguinaldo coçou a pêra e estava para responder quando ouviu a voz de Luzia.

- Negro não é gente – disse ela. [...]

O Dr. Winter tirou os óculos e começou a limpá-los lentamente com o lenço.

- Mein liebes Fräulein – exclamou ele, com sua voz aflautada. – O que vosmecê acaba de dizer é uma inverdade científica. (VERISSIMO, 2002, p.65).

Nesse diálogo, as falas das personagens são reproduzidas integral e literalmente. Notam-se as marcas do discurso direto pelo emprego dos verbos de elocução (dicendi) como “disse” e “exclamou”, que identificam a maneira como a fala foi exprimida. Além disso, os sinais de pontuação: dois pontos e travessão, também são indicativos de deste tipo de discurso.

A presença do narrador, também se faz sentir, porém não interferindo no diálogo, apenas conduzindo o leitor, preparando-o para as falas das personagens. Para Aguiar e Silva

(2002, p.759), todo o texto narrativo implica a mediação de um narrador. A voz do narrador fala sempre no texto narrativo, apresentando características diferenciadas em conformidade com o estatuto da persona responsável pela enunciação narrativa, e é ela quem produz as outras vozes existentes no texto literário.

A voz da personagem, de acordo com esse autor, faz-se ouvir tanto no discurso direto, nos diálogos e nos monólogos, como no discurso indireto. Em todos esses casos, essa voz diferencia-se claramente da voz do narrador, quer pela sua introdução com verbos dicendi, quer pela sua caracterização com traços idioletais, socioletais e dialetais que não podem ser atribuídos ao narrador. (AGUIAR E SILVA, 2002, p.764).

No diálogo transcrito anteriormente, percebe-se uma marca da linguagem característica da personagem Carl Winter: as sentenças na língua alemã, como “Mein liebes Fräulein”7. Esse recurso utilizado pelo escritor, contribui para a caracterização da personagem e freqüentemente é empregado em seu discurso ao longo da narrativa.

Durante o discurso direto, conforme Wolfgang Kayser (1985, p.228-229), o narrador já não tem o privilégio de impor o seu “tempo”, mas é obrigado a seguir uma ordem temporal mais objetiva. O discurso direto dá mais vivacidade e tensão à narrativa, pois o leitor pode ouvir, ocasionalmente, a voz de uma outra personagem diferente da do narrador, residindo nisso uma variedade que agrada e que impede toda a monotonia.

O autor salienta ainda, que na vida quotidiana, por mais pormenorizados que sejam os relatos dos nossos melhores amigos sobre determinada pessoa, nos vale mais um encontro pessoal com ela para chegar a uma idéia clara sobre seu caráter. O mesmo ocorre na narrativa, quando determinada personagem fala diretamente aos leitores, proporcionando-lhes assim a possibilidade de a conhecer, aparentemente, melhor do que pelas descrições das outras personagens e do narrador. O leitor, apesar de ter consciência do caráter fictício da narrativa, ainda exige a credibilidade do que lhe é contado. Dessa forma, o discurso direto satisfaz tais exigências, pois se existem palavras que não são do narrador, mas sim de um outro, então não há dúvida de que este de fato existe e que está confirmado na sua existência.

Seguindo essa mesma perspectiva, Cunha e Cintra (1985, p.73) também afirmam que a força da narração em discurso direto provém essencialmente de sua capacidade de atualizar o episódio, fazendo emergir da situação as personagens, tornando-as vivas para o leitor. As falas, na reprodução direta, ganham naturalidade e vivacidade, enriquecidas por elementos lingüísticos tais como as exclamações, interrogações, interjeições, vocativos e imperativos, que impregnam de emotividade a expressão oral transcrita.

O discurso indireto livre, por sua vez, caracteriza-se por ser um discurso misto, em que se associam as características do discurso direto e do discurso indireto. Nesse caso, o narrador insere a fala da personagem em seu discurso sem as marcas do discurso direto: verbos de elocução e sinais de pontuação, mas com toda a sua vivacidade. Seu uso ressalta o pensamento, a essência significativa do enunciado reproduzido, deixando em segundo plano as circunstâncias e os detalhes acessórios que o envolvem.

Segundo Beth Brait (1999, p.56), a utilização do discurso indireto livre é um artifício lingüístico que dissipa a separação rígida entre a câmera e a personagem, uma vez que lhe confere autonomia para revelar uma interioridade que não poderia ser captada pela observação externa. Vejamos o seguinte trecho em que o narrador fala sobre a personagem Carl Winter:

Adquirira o hábito de falar consigo mesmo em voz alta. Fazia-o em alemão, em geral quando caminhava pelas ruas da vila ou saía em seus passeios solitários pelos arredores. [...] Ouvira um dia uma das velhotas da vila dizer: “O alemão é louco da cabeça”. Mein Gott! Louco da cabeça. Lúcido demais, isso sim. E era essa lucidez que às vezes o impedia de gozar melhor a vida. (VERÍSSIMO, 2002, p.46).

Nesse parágrafo percebe-se que discurso direto e discurso indireto livre se intercalam com a voz do narrador. Na sentença: “Ouvira um dia uma das velhotas da vila dizer: ‘O alemão é louco da cabeça’”, temos o discurso direto introduzido, como lhe é característico, pelo verbo de elocução “dizer”, seguido dos dois pontos. A fala da “velhota” transcrita literalmente aparece entre aspas, já que ocorreu num tempo anterior ao do momento narrado, e faz parte da memória do doutor Winter, revelada pelo narrador em terceira pessoa. No entanto, logo a seguir aparece o discurso indireto livre, no qual, sem nenhum anúncio prévio, surge uma exclamação da própria personagem em sua língua materna, seguida por outras considerações: “Mein Gott8! Louco da cabeça. Lúcido demais, isso sim.” E finalizando,

volta a manifestar-se a voz do narrador, transmitindo um juízo de valor sobre a personagem, a qual conhece inteiramente, como narrador onisciente que é: “E era essa lucidez que às vezes o impedia de gozar melhor a vida.”.

Em outras ocasiões, o discurso indireto livre aparece entre parênteses, expressando as recordações ou pensamentos da personagem, como no exemplo a seguir:

Infelizmente em Santa Fé Winter tinha de contentar-se com as peças que Luzia dedilhava na cítara ou então com a música que ele próprio produzia. Na Alemanha fizera parte de um quarteto de cordas de amadores, como violonista. (Hans, Hugo, Joseph, onde estais a estas horas?) Reuniam-se nas noites de sábado para tocar Mozart, Beethoven e Schubert, beber cerveja e fumar cachimbo nos intervalos entre um e outro quarteto. (VERISSIMO, 2002, p.49).

O discurso indireto livre, empregado por Erico Verissimo na narrativa de O Continente, torna-se um recurso eficiente para revelar ao leitor os pensamentos e indagações de Carl Winter, que analisa minuciosamente as demais personagens com quem convive, tentando desvendar-lhes a personalidade. Citamos um último trecho para exemplificar, no qual o leitor entra em contato com as reflexões de Carl Winter ao mesmo tempo em que compartilha suas indagações sobre a personagem Luzia Silva Cambará:

Winter voltara para sua cadeira e agora observava Luzia. Que haveria naquela alma? Ele ainda não sabia, mas começava a adivinhar, através duma névoa, e o que entrevia lhe dava um aperto no coração, um frio horror. Como era que naquele fim de mundo, naquele lugarejo perdido nos confins do continente americano, entre gente rude e primária, existia uma mulher assim? Podia estar numa tragédia de Sófocles ou de Schiller, num conto de Hoffmann ou num ... Mein Gott! Contanto ninguém acreditaria. E por um instante se imaginou num Biergarten de Berlim, dali a muitos anos, sentado ao redor duma mesa a tomar cerveja com amigos e a falar-lhes de seu passado de Santa Fé. (VERISSIMO, 2002, p.67).

Nota-se, nesse parágrafo, que as indagações de Carl Winter a respeito de Luzia se realizam através de sua própria voz, misturada à voz do narrador onisciente: “Que haveria naquela alma?” “Como era que naquele fim de mundo, naquele lugarejo perdido nos confins do continente americano, entre gente rude e primária, existia uma mulher assim?” “Mein Gott!”. Nesse caso, os pensamentos são reproduzidos a partir da perspectiva da própria personagem, mas a manutenção da terceira pessoa e do pretérito imperfeito “finge” o relato impessoal do narrador.

Por meio da narração e pela recorrência ao discurso direto e ao discurso indireto livre, que permitem recuperar a fala, a linguagem, enfim, a dicção da personagem, a construção vai se operando gradativamente, até circunscrever a totalidade pretendida pelo escritor.

No documento Carl Winter: um alemão em Santa Fé (páginas 104-110)

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