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CAPÍTULO IV Subjetividade e formação cultural

1. A Razão e a “Coisa mesma”

1.1. A razão observadora

A consciência, que se tornou razão, retoma o “visar” e o perceber a fim de encontrar a certeza de si mesmo no outro. Faz as suas observações e experiências sobre o mundo. “Por isso a razão – afirma Hegel – tem um interesse universal pelo

mundo, já que ela é a certeza de Ter no mundo a presença, ou seja, a certeza de que a presença é racional. Procura a razão seu “Outro”, sabendo que não possuíra nada de Outro a não ser ela mesma; busca apenas sua própria infinitude” 8. Todavia a razão, mesmo revolvendo as entranhas das coisas, não encontrará na observação e na experiência, a certeza de ser toda a realidade, pois conhece as coisas e transforma o ser sensível em conceito. Mesmo assim, a razão observadora procurará a si mesma como algo efetivo na observação que faz da natureza, do espírito e da relação entre 6 G. W. F. HEGEL Fenomenologia do Espírito, p. 158.

7 Cf. J. HYPPOLITE. Génesis y estructura de la Fenomenologia del espírito de Hegel. P. 207. 8 G. W. F. HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Vol. I. p. 159.

ambos.

A razão observa a natureza e constrói as ciências da natureza. Estas conhecem as coisas por meio da: descrição, classificação, formulação das leis e experimentação. Na descrição, acolhe o sensível sem universalizá-lo. Na classificação, distingue o essencial do inessencial e elabora um sistema classificatório. Com base na distinção, nos sinais e características essenciais de cada ser, a razão formula leis que expressam os diferentes momentos de cada ser. Mas a consciência observadora descobre a oposição entre a lei e a realidade que ela expressa. Nem sempre a lei adequa-se à realidade. Por isso, a razão com o fim de: “purificar, (...), a lei e seus momentos

organiza experimentos e respeito da lei” 9. Tais experimentos têm em vista encontrar as

condições puras da lei.

A razão observadora descreve, classifica, formula leis e experimentos com seres inorgânicos e com seres orgânicos. A natureza inorgânica contém os seres que se determinam reciprocamente, se dissolvem e se separam. A lei rege-os, determinando a relação que cada ser tem para com outro ser. Falta-lhes uma unidade, o que leva à dissolução e à separação dessas determinações.

A natureza orgânica experimenta um processo diferente; nela há uma unidade interna que a mantém idêntica a si mesma na relação que tem com o meio que está a sua volta. Ademais, o ser vivo é dotado de uma finalidade imanente. “O orgânico –

afirma Hegel – não produz algo, mas somente se conserva; ou seja, o que é produzido, tanto (já) está presente, como está sendo produzido” 10.

Como a razão observadora não capta o movimento circular que caracteriza o desenvolvimento orgânico, ela substitui esse movimento pela relação estática interior e exterior, que é dotada de uma unidade orgânica. O interior e o exterior não são realidades opostas. Isso permite à razão afirmar a seguinte lei: “o exterior é somente a

expressão do interior” 11. Aplicando esta lei ao corpo humano obtemos o seguinte: o que se encontra do lado de fora do corpo (os sistemas: nervoso, muscular e genital) parece ser fixo e permanente; o que está do lado de dentro (as funções vitais;

9 G. W. F. HEGEL Fenomenologia do Espírito, Vol. I, p. 165. 10Ibidem, p. 169.

sensibilidade, irritabilidade e reprodução) é a realidade íntima deste ser vivo 12.

O indivíduo vivo aparece como um sistema fechado e em permanente reprodução. Nele não há mudança, mas só a conservação do mesmo. Com efeito, realiza essa lei do interior e do exterior. Por isso Hegel afirma que: “(...) a natureza

orgânica não tem história; de seu universal – a vida – precipita-se imediatamente na singularidade do ser - aí, e os momentos unificados nessa efetividade – a determinidade simples e a vitalidade singular – produzem o vir-a-ser apenas como o movimento contingente, no qual cada um desses momentos é ativo em sua parte, e no qual o todo é conservado. Porém essa modalidade é, para si mesma, limitada somente a seu próprio ponto, porque nele o todo não está presente, e não está presente porque aqui não está como todo para-si” 13.

Na circularidade do desenvolvimento biológico do ser vivo não há progresso e nem história. A razão, ao observar o desenvolvimento na natureza orgânica, só pode intuir a si mesma como vida universal em geral. Seja na natureza orgânica (onde encontra o conceito como vida), seja na natureza inorgânica, a razão não encontra a si mesma, isto é, o conceito como conceito.

A razão que não encontrou a si mesma na observação, procura a si mesma, como efetividade. Observa, então, a consciência-de-si. Encontra primeiro as leis do pensar. Essas leis não têm realidade, por isso não são a verdade total, mas a verdade formal. São ente-de-razão, abstração vazia. Não são a verdade do pensamento, nem são leis fixas e permanentes, porque: “ como momentos evanescentes na unidade do

pensar, deveriam ser tomadas como saber, ou como movimento pensante, mas não como leis do saber”14. Assim, as leis do pensar são momentos que se perdem na unidade da consciência-de-si.

Depois de observar as leis do pensar, a razão toma como objeto de observação as leis da psicologia que expressam os diferentes modos da consciência-de-si se adaptar ao mundo (hábitos e costumes) e de se retirar para-si dessa efetividade (as 11 G. W. F. HEGEL Fenomenologia do Espírito , Vol. I, p. 169.

12 Ibidem, p. 173. 13 Ibidem, p. 190. 14 Ibidem, p. 193.

inclinações e paixões). A razão observadora maravilha-se ao encontrar numerosas faculdades, inclinações e paixões juntas na consciência-de-si. Estas não são como coisas mortas, mas como movimentos irriquietos. 15

A razão, ao enumerar essas múltiplas capacidades, descobre que a unidade delas se encontra no indivíduo concreto. Ela se põe a procurar a lei da individualidade e chega à conclusão de que a necessidade de ordem psicológica é vazia. Chega a esse resultado, segundo Hegel, porque: “(...) o mundo do indivíduo tem de ser concebido a

partir do indivíduo mesmo. A influência da efetividade, (...), sob o indivíduo, recebe através desse indivíduo o sentido absolutamente oposto; o indivíduo, ou deixa correr imperturbado o fluxo da efetividade que o influência, ou então o interrompe e o inverte”16. Por conseguinte, se a individualidade é o seu mundo e o círculo do seu agir,

desaparecem a necessidade e o conteúdo da lei psicológica.

A razão observa, finalmente, a individualidade como um todo que engloba a consciência-de-si e o corpo. Considera que a relação entre essas partes segue a lei de que o “exterior expressa o interior”. Nesse sentido, o corpo expressa o interior do indivíduo. A relação entre corpo e interior (a consciência-de-si) foi objeto de estudo de duas ciências importantes na época de Hegel: a fisiognomia e a frenologia. A primeira procurava uma lei que revelasse plenamente a relação exterior e interior de um mesmo indivíduo. Apresentou, então, a suposição de que havia uma linguagem que expressava o interior, pois este se manifesta por meio de traços fisionômicos, tais como: as linhas da mão, o timbre e o volume da voz, a escrita, etc... Hegel criticou a fisiognomia, porque ela enunciava apenas leis contingentes e subjetivas. Por exemplo: “se alguém dissesse:

“ages na verdade como um homem honesto, mas vejo por teu aspecto que te forças, e que és um canalha no teu coração”, não há dúvida de que até a consumação dos séculos um qualquer sujeito de brios responderia com um soco na cara” 17.

A frenologia considerava o exterior como uma coisa: o crânio, e o interior como um órgão: o sistema nervoso (órgão da consciência-de-si considerada em-si e para-si).

15 Cf. G. W. F. HEGEL. op cit. Vol. I, P. 194. 16 Ibidem, p. 196.

Desse modo o ser do indivíduo seria a sua caixa craniana. Hegel, com certa ironia, afirma que: “(...) quem reflete sobre a localização própria do ser-aí do espírito, não o

coloca nas costas, mas somente na cabeça” 18. O crânio não é um signo, mas uma

coisa (um osso), que a razão observadora toma como e exterioridade da consciência- de-si. “Assim, - afirma Hegel – quando se diz a um homem: “tu (teu interior) és isto

porque teu osso é assim constituído, isso não significa outra coisa que: “eu tomo um

osso por tua efetividade” 19. Considerar um osso como a efetividade da consciência-de-

si, nada mais é do que afirmar que ela é uma coisa. Quem julga assim, segundo Hegel deveria ter o próprio crânio quebrado, a fim de que se descubra desta maneira tão grossa, que um osso não é para o homem nada em si, e muito menos sua verdadeira efetividade 20.

A razão, após a observação que fez sobre o inorgânico, o ser-vivo, as leis do pensamento, as leis da psicologia, a fisiognomia e a frenologia, chegou à conclusão de que não encontrou a si mesma como efetividade. Em compensação, essas observações revelaram-lhe que a consciência-de-si não existe como coisa. Ela é produzida pela atividade comum do sujeito e do mundo. Mostraram-lhe também, que a identidade entre o ser e o pensamento não é uma identidade já dada, mas está em processo e entregue à liberdade do homem de realizá-la ou não 21. Isso quer dizer, segundo Hegel que “ (...) a categoria, que tinha percorrido a forma do ser no observar,

é posta agora na forma do ser -para- si; a consciência já não quer encontrar se

imediatamente, mas produzir-se a si mesma mediante sua atividade. É ela mesma

para-si o fim do seu agir – como antes no observar só lidara com as coisas” 22.