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4 UMA CRÍTICA À FEMINILIDADE NA ÉTICA DO CUIDADO

4.1 A NORMATIVIDADE DO CUIDADO

4.1.2 A reciprocidade

Um dos requisitos para que a relação do cuidado se mantenha é que ocorra a reciprocidade no objeto do cuidado, ou seja, que ele responda às intenções da cuidadora, ainda que seja livre para responder ao seu modo. Pede-se reciprocidade, pois só assim a cuidadora poderá avaliar suas ações e perceber se está a caminho do ideal ético. E ser recíproco não indica que o cuidado acontecerá mutuamente. Como expliquei alhures, em situações de mesmo nível, o cuidado mútuo acontece e é saudável, mas em relações desiguais, como pai e filho, a transformação daquele que recebe em agente provedor não é recomendada, logo, em relações deste caráter não é possível afirmar que há cuidado. Contudo, considerando a existência de uma clássica relação, espera-se que o objeto do cuidado receba e responda as atenções da cuidadora, enquanto ela o absorve e se desloca para a realidade alheia, demonstrando a interdependência entre as partes: “Em tudo o que discutimos aqui, devemos ser lembrados da nossa conexão fundamental, da nossa dependência um do outro. Somos ao mesmo tempo livres- aquilo que eu faço eu faço – e ligados; posso fazer o bem melhor se você me ajudar e muito, muito pior, se você abusar de mim, insultar-me ou me ignorar” (NODDINGS, 2003. p. 70, grifo do autor).

Dito isso, a reciprocidade pode apontar para alguns problemas, entre eles: como o objeto do cuidado pode responder se está em uma relação efêmera? E, ao exigir a proximidade física para que a reciprocidade aconteça, seria a ética do cuidado de Noddings narcisista, já que só acontece entre pares? A primeira indagação surge a partir da observação feita por outra autora do cuidado, a saber, Joan Tronto. Em breve, trabalharei com mais afinco a teoria de Tronto, mas neste momento, friso sua crítica à Noddings. Dessa forma, em relação a reciprocidade, Tronto afirma que existem relações que são tão momentâneas e que, por isso, não há tempo para ser recíproco, no entanto, o cuidado acontece. E, nesses casos, esperar pelo reconhecimento pode levar algum tempo; por exemplo, a reciprocidade da relação de mãe/filho acontece, contudo, o que ocorre com as relações de menor duração, como o do professor/aluno?

Em relação à mãe, uma criança pode desenvolver o que Noddings consideraria a sensibilidade adequada em relação aos cuidados que dela recebe durante um longo período; mas outros, como professores (as) e enfermeiros (as), que proporcionam

cuidados durante menos tempo, não podem esperar que seu empenho seja reconhecido e recompensado da mesma forma (TRONTO, 1997, p. 193).

Tronto observa que, nas relações de menor duração, o cuidado acontece, mas a reciprocidade pode não ocorrer e que, mesmo assim, podemos considerar que houve uma relação de cuidado, isto é, a autora concebe o cuidado sem exigência de resposta, diferente de Noddings, que a impõe. De forma semelhante, o professor Dall’Agnol também observa que o cuidado é possível, ainda que o objeto do cuidado não responda: “Há vários contraexemplos que mostram que o cuidado existe mesmo que ele não seja reconhecido (o caso de Terri Schiavo pode ser invocado aqui como ilustração) ” (DALLAGNOL, 2010, p. 31). O exemplo citado pelo professor é um caso real de uma americana que viveu mais de uma década em estado vegetativo, sendo cuidada pelos familiares. E, com esse exemplo, o professor defende a possibilidade de existir o cuidado sem a reciprocidade e, por isso, acredita que a teoria de Noddings deveria exigir apenas o recebimento e não a reciprocidade do objeto do cuidado: “Se Noddings tivesse apenas apresentado a necessidade de recebimento do cuidado, a análise seria mais adequada. Por conseguinte, o reconhecimento não é condição para o cuidado” (DALLAGNOL, 2010, p. 31).

Ainda nesta crítica, Tronto observa que solicitar a resposta do objeto do cuidado representa um conforto para a cuidadora, já que suas ações serão reconhecidas, mas geram, no entanto, outra crítica, pois como objeto do cuidado necessita responder às investidas da cuidadora, logo, a relação só é possível com os mais próximos: “O argumento de Noddings é sedutor, ao sugerir que somos sempre reconhecidos(as) por nossos sacrifícios, mas é também perigoso, ao nos encorajar a restringir os cuidados apenas àqueles próximos de nós numa base contínua” (TRONTO, 1997, p. 193). Daí, provoco o questionamento sobre a possibilidade de a ética do cuidado ser narcisista, uma vez que tende a acontecer somente com os pares. Quanto a essa crítica, sabemos que o mito de Narciso pode fornecer ideias de autoerotismo ou egoísmo a depender da abordagem, mas que sempre restringe as atenções a si ou ao seu semelhante:

Narciso, foste caluniado pelos homens,

por teres deixado cair, uma tarde, na água incolor, a desfeita grinalda do teu sorriso.

Narciso, eu sei que não sorrias para o teu vulto, dentro da onda: sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhava gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso,

a estátua de cristal que, sobre a tarde, a contemplava,

Muito discutido na psicanálise, recorro ao pensamento freudiano para desenvolver esta reflexão, pois, em “Introdução ao Narcisismo”, ao admitir a libido no Eu, Freud lista uma espécie de fases narcisistas que acometem o sujeito em alguns momentos de sua vida. Entre essas fases, destaco o narcisismo primário por acontecer na relação entre pais e filhos. E, segundo o psicanalista, os pais revivem nos filhos seus privilégios e seus momentos narcisistas, já abandonados:

Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. O indicador digno de confiança constituído pela supervalorização, que já reconhecemos como um estigma narcisista no caso da escolha objetal, domina, como todos nós sabemos, sua atitude emocional. Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho - o que uma observação sóbria não permitiria - e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele. (Incidentalmente, a negação da sexualidade nas crianças está relacionada a isso.) (FREUD, 2010, p. 57)

Portanto, o filho seria a renovação dos sonhos dos pais, assim, por meio dele, os progenitores obteriam uma segunda chance, por isso, o concebe sem defeitos e sem restrições, formando um soberano: “Sua Majestade o Bebê”. E mais, segundo Freud, o amor dos pais, tão incondicional e para alguns tão natural, indica o renascimento do narcisismo: “O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (FREUD, 2010, p. 57).A possibilidade de uma ética narcisista ganha mais força quando lembramos que o cuidado de Noddings acontece com os mais próximos e tem raízes no cuidado natural, exemplificado na relação entre mãe e filho. No entanto, em minha exposição sobre a ética do cuidado, apresentada no segundo capítulo, Noddings reconhece que a cuidadora torce para não se deparar com um estranho, mas que, caso isso aconteça, ela irá cuidar:

Na ética do cuidado, conforme concebida por Noddings, só há obrigação de cuidar dos que estão próximos. Embora a autora admita que a ética do cuidado não nega a possibilidade de cuidar de estranhos, podendo a cuidadora ser receptiva em relação ao estranho que não integra sua cadeia de cuidados, isso pode ser insuficiente para garantir o cuidado para com todos os que precisam dele e não têm alguém próximo que lhes assegure esse cuidado (KUHNEN, 2010, p. 161). A insuficiência citada por Kuhnen deriva da disposição da cuidadora com os estranhos, pois ela pode agir guiada por princípios, logo, não haverá deslocamento motivacional e absorção, funções autênticas da cuidadora:

Posso passar a me basear quase inteiramente nas regras externas e, se assim me comporto, acabo me desligando do próprio cerne da moralidade: a sensibilidade que inspira o cuidado. Em um sentido importante, o estranho tem um enorme apelo sobre mim, porque não sei onde ele se encaixa, quais solicitações ele tem o direito formal de fazer ou que necessidades pessoais ele vai passar para mim (NODDINGS, 2003, p. 68).

Além disso, é impossível afirmar que cada pessoa se encontra em uma cadeia de cuidado, conectado a uma cuidadora; daí é fácil supor que haverá sempre alguém carente de atenção e, ao alimentar uma ética que se constitui a partir dos seus próximos corre o risco de ser entendida como narcisista e estar favorecendo o distanciamento daquilo que é diferente. Entretanto, Noddings recomenda o acolhimento do desconhecido; assim, a cuidadora deve acatar o seu impulso em cuidar e recebê-lo de modo afetivo, encarando-o como ser um ser concreto, mas isso não rompe os limites do cuidado, pois, ainda assim, a autora afirma que não podemos cuidar de todos:

Além disso, como vimos em nossa discussão da cuidadora, há um medo legítimo do estranho que está próximo-daquela pessoa que pode solicitar mais do que nos sentimos capazes de dar. Vimos que não podemos cuidar de todos. Quando tentamos fazê-lo, o próprio cuidado é reduzido a uma mera conversa sobre o cuidado. Devemos reconhecer, então, que uma ética do cuidado implica um limite em nossa obrigação (NODDINGS, 2003, p.113).

Podemos aprofundar a questão do narcisismo, se consideramos o outro como uma projeção do eu, sendo assim, a cuidadora exerceria sua atenção e zelo ao outrem, não por um sentimento genuíno, mas porque o objeto do cuidado é seu reflexo, um exemplo disto seria os cuidados familiares, como já citado. Contudo, essa crítica da ética do cuidado ser narcisista gera um longo debate que não é foco desse trabalho, desse modo, deixo a questão em aberto, mas friso que Noddings não escapa de outros limites de sua própria teoria, como a restrição do cuidado, assim, ele não atingiria a todos e falha em uma pretensão universal, ocasionando pessoas sem cuidados, o que gera uma contradição. Observa-se que tal restrição atinge outras camadas, como a de gênero, mesmo a autora incentivando a participação masculina, pois ela cria uma hierarquia na qual as mulheres estariam mais aptas para o cuidar. Dito isso, o que quero indicar é que a mulher está mais próxima da ética do cuidado, mas que essa proximidade deve ser questionada e reavaliada, enquanto devemos encorajar a participação masculina, portanto, essa será a análise do tópico seguinte e representa a problemática desta pesquisa.