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3 A ÉTICA DO CUIDADO

3.1 APRESENTAÇÃO DO CUIDADO

O termo Cuidado, apresentado algumas vezes na filosofia, seja de forma ontológica, como em Heidegger (Sorge) ou através do retorno, defendido por Foucault na sua ética do cuidado de si, não se assemelha ao cuidado pensando por Gilligan, Nel Noddings, Joan Tronto e outras teóricas. A ética do cuidado ascende na contemporaneidade ao promover um comportamento moral pouco explorado, do qual é sustentado por meio da narrativa e dos sentimentos envolvidos, e é, em muitas vezes, classificada como uma ética feminina ou até mesmo feminista. O aporte teórico escolhido para desenvolver o sistema ético do cuidado será realizado através da filósofa norte-americana Nel Noddings com o seu livro “O cuidado: uma abordagem feminina à ética e à educação moral”, obra lançada em meados da década de oitenta e que representa um dos primeiros ensaios sobre tema, além de ser um dos livros mais conhecidos. Noddings, professora emérita na Universidade de Stanford (Califórnia-EUA), constrói seu sistema ético a partir da visão feminina, assim, ela aproxima ainda mais a relação da mulher com o cuidado, além de recusar, sempre que possível, o uso dos princípios. No entanto, a autora frisa, desde o início, que os homens podem aderir ao comportamento do cuidado, e por sua vez, as mulheres podem até rejeitá-lo, mas, a ética do cuidado continua sendo mais frequente no sexo feminino: “Isso não quer dizer que todas as mulheres irão aceitá-la ou que os homens irão rejeitá-la; na verdade, não há razão para que os homens não a abracem” (NODDINGS, 2003, p. 12).

Seu livro é composto por oito capítulos que abordam os seguintes assuntos; ética, tipos do cuidado, a emoção e a educação moral. Devo me ater a quatro capítulos e focar apenas no cuidado ético, isto porque a autora também disserta sobre o cuidado em relação aos animais, plantas e ideias, entretanto, essas espécies do cuidado serão abandonadas: “O que ela chamou de ‘cuidado estético’ (2003, p. 21) é o tipo de cuidado que temos com coisas (animais, plantas) e ideias e não com seres humanos que é composto por sentimentos, comprometimentos etc. Não há ser humano ou pessoa que está sendo cuidado no caso estético” (DALL`AGNOL, 2010, p. 31). Entendendo sua teoria como ética prática, a autora salienta a dependência que temos pelo outrem como uma característica fundamental para o exercício das virtudes, logo, a vulnerabilidade constitutiva do humano exerce um papel essencial para o desenvolvimento da ética do cuidado: “Vou afirmar que somos

dependentes um do outro, mesmo na busca da bondade pessoal. Até que ponto eu posso ser bom faz parte de como você- o outro- me recebe e reage a mim. Qualquer virtude que eu exerça é completada, preenchida, em você” (NODDINGS, 2003, p. 17). A vulnerabilidade citada não é a do fator socioeconômico, pois corresponde mais como uma característica biológica, visto que necessitamos de cuidados para o nosso desenvolvimento, como também defende outra autora do cuidado, a francesa Joan Tronto:

Primeiro, embora algumas pessoas sejam mais vulneráveis e dependentes que outras, precisamos admitir que todos nós somos vulneráveis. Não digo apenas que o ser humano comece sua vida como um ser altamente dependente que necessite de cuidados de muitas pessoas, ou que muitos de nós nos tornaremos novamente frágeis e vulneráveis, mas que cada dia precisamos de cuidados para continuarmos vivendo (TRONTO, 2007, p. 299).

Enquanto os liberais exaltam a autonomia33, como um meio para superar a vulnerabilidade do indivíduo, ainda que não completamente: “Se, em contraposição, reconhecemos que indivíduos – incluindo indivíduos autônomos – são muito mais vulneráveis e carentes do que como o modelo liberal tradicionalmente os representou, surge uma concepção bastante distinta das exigências da justiça social” (ANDERSON, HONNETH, 2011, p. 84, grifo do autor). As autoras do cuidado partem dessa fragilidade para criar suas teorias, assim é com Nel Noddings e Joan Tronto: “Essas mudanças exigem também que haja o reconhecimento da vulnerabilidade de todos (todos precisam de algum tipo de cuidado durante toda a vida)” (MOTA, 2015, p. 324). A vulnerabilidade é um tema frequente nas pesquisas sociais, filosóficas e também nas de saúde, e para enfatizar a fraqueza constitutiva do humano, cito uma referência nos estudos da bioética no Brasil, e que em sua trajetória foi médico e também professor, William Saad Hossne:

Todos somos mortais; todos somos vulneráveis. Em sentido comum, de acordo com os dicionaristas, vulnerabilidade é “a qualidade ou estado de vulnerável”; vulnerável é “que pode ser vulnerado” e vulnerar é “ferir, ofender, melindrar”. Neste sentido, todos nós somos vulneráveis, pois todos estamos sujeitos, de alguma maneira, a sermos feridos (em qualquer sentido), ofendidos e/ou melindrados, intencionalmente ou não, por agentes de qualquer natureza (por pessoas, animais intempéries da natureza etc.) e até mesmo por acidentes (HOSSNE, 2009, p. 42)

33 Conforme o liberal John Rawls, em seu livro “Uma teoria da Justiça”, a autonomia é um aspecto prioritário para o

seu argumento da posição inicial, logo, agir de forma autônoma é: “agir segundo princípios que aceitaríamos na qualidade de seres racionais livres e iguais, e que devemos entender desse modo” (RAWLS, 2000, p.575).

Desta forma, reconhecer que cuidamos e somos cuidados para manter-se vivos representa a necessidade do cuidar, logo, a próxima etapa de abordagem é transformar esse cuidado vital em ético. Contudo, realço que essa transformação, do vital para o ético não é defendida apenas pela ética do cuidado, mas também por alguns autores da bioética. Permita-me abrir uns parênteses e expor a aproximação entre o cuidado e a bioética, aproximação defendida nos estudos do professor Darlei Dall” Agnol, como no seu artigo intitulado “Cuidar e respeitar: atitudes fundamentais na bioética”, pelo qual demonstra essa conexão:

O presente trabalho pretende fazer uma modesta contribuição para a discussão sobre os fundamentos da Bioética desenvolvendo um novo conceito, a saber, o de cuidado respeitoso. Para muitos eticistas e filósofos morais contemporâneos, tanto cuidar quanto respeitar são atitudes que expressam formas de valorar intrinsecamente um indivíduo vulnerável (por exemplo, um sujeito de uma pesquisa científica experimental que é, ao mesmo tempo, um paciente) ou uma pessoa (DALL’ AGNOL, 2012, p. 133).

A grosso modo, a bioética nasce a partir dos estudos Van Rensselaer Potter e partilha uma juventude igual a ética do cuidado, pois os primeiros ensaios sobre o tema também aconteceram na segunda metade do século XX, por volta da década de 1970. A preocupação dos avanços científicos e a percepção que a vida humana sofre influência do meio ambiente, incluindo a dos outros animais, fez com que a bioética surgisse como um novo conhecimento, que instiga pensamentos éticos envolvendo os seres vivos. Isto é, pesquisas com os animais, interferências no meio ambiente e experimentos com pessoas são temas recorrentes no debate da bioética, visto que: “Nesse sentido, o pano-de-fundo que permite pensar a Bioética toto genere é, certamente, a da valoração intrínseca de todo e qualquer ser vivo”(DALL’ AGNOL, 2012, p. 143, grifo do autor). Em consonância com esses debates, princípios norteadores da bioética foram estipulados:

Mais explicitamente: a bioética hoje, principalmente em contexto norte- americano, fundamenta-se nos quatro princípios básicos (...) São eles: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. Representam a culminância de uma busca de normatização dos procedimentos médicos e de pesquisa biomédica diante de seu histórico altamente desumanizador, no processo de avanço tecnológico na área às custas de cobaias humanas, instrumentalização da relação de cura, bem como a dilapidação dos saberes tradicionais e limites e reveses da intervenção tecnológica na natureza (humana) (FONSÊCA, 2007, p.18).

Entre as diversas teorias referentes à bioética, encontram-se estudos mais normativos, como os de origem norte-americana exposto na citação acima, porém, também é possível identificar estudos alternativos, os quais divergem do padrão, representado por Dall’ Agnol:

Por um lado, a teoria normativa predominante, a saber, o enfoque baseado nos quatro princípios (i) do respeito pela autonomia, (ii) da beneficência, (iii) da não maleficência e (iv) da justiça – representado sobretudo pelos trabalhos de Beauchamp e Childress – foi objeto de uma série de críticas e reformulações. As alternativas sugeridas, todavia, encontram-se ainda em fase de elaboração e nenhuma delas parece ser capaz de dar conta suficientemente da complexidade dos problemas bióticos (DALL’ AGNOL, 2012, p. 133).

E como dito, é através dos estudos, dos quais traçam um novo conceito para a bioética, que surgem aproximações com outras teorias, exemplo: a afinidade do cuidado pensada por Dall`Agnol. Assim, a partir da vulnerabilidade que envolve o ser humano, o cuidado é apresentado como um elemento vital, que pode vir a ser ético, argumento defendido não apenas pela própria ética do cuidado, mas também na bioética, como demonstrado. Desta maneira, ao mostrar que a participação do cuidado na moralidade não é um caso defendido apenas pela ética do cuidado, vislumbra-se que a inserção do conceito nesse meio é uma hipótese provável, por isso o próximo tópico indica algumas características desse cuidado vital, ou seja, o genuíno, para que depois ocorra a análise do cuidado ético.