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A reconstrução da identidade socio-cultural num bairro social

CAPÍTULO IV Construção identitária e trajetórias nos bairros sociais

4.1 A reconstrução da identidade socio-cultural num bairro social

Quando falamos em bairros sociais, temos de ter em conta quais os grupos sociais que convivem neste espaço social – as suas origens, as suas características e os seus traços culturais. Importa pois perceber como se dá o processo de mudança para o bairro, por parte dos indivíduos, que transformações provocam na sua identidade socio-cultural e como, a partir desse novo contexto, reconstroem a sua identidade enquanto seres sociais pertencentes a determinado grupo socio-étnico.

No estudo deste caso empírico, constatamos dois grupos sociais distintos, mas que convivem diariamente: o grupo étnico cigano e o grupo maioritário composto por portugueses não ciganos. Os bairros sociais são uma resposta política à necessidade de reagrupar as populações mais pobres num mesmo espaço geográfico. Este reagrupamento traz consequências ao nível das relações interpessoais, na medida em que, como refere Isabel Guerra, “as pessoas não são coisas que se põem em gavetas” (1994:35). Importa assim perceber que preocupações sociais e culturais não são tidas em conta pelos poderes locais, mas que vão transformando o dia-a-dia dos indivíduos nos bairros de habitação social.

A questão das identidades socioculturais surge neste contexto no sentido em que se encontram em confronto diferentes grupos sociais. Gonçalves refere que identidade é um conceito “eminentemente relacional, já que resulta do relacionamento dos indivíduos em sociedade e de toda a multiplicidade de referências identitárias com que este se deparam e através dos quais se geram processos de identificação/integração” (1994:135), tendo em conta o grupo social ao qual os indivíduos pertencem e em relação ao qual interagem. Isto acontece bastante em bairros sociais, pois são um espaço de grande contraste social, cultural e étnico. Uma vez que pretendo perceber como se caracterizam as relações de vizinhança nos bairros sociais, sendo o bairro de Santa Tecla o selecionado, esta questão do confronto ou mesmo conflito de identidades ganha pertinência e relevo. Importa pois perceber todos os fatores económicos, sociais e

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culturais em análise, e como é que os mesmos se vão confrontando numa dado momento espacial e temporal.

A construção de identidades não é um processo uniforme, ela depende de várias transformações económicas, sociais, políticas e culturais que vão operando ao longo do tempo; depende também das referências culturais dos indivíduos e de momentos concretos da sua vida que marcaram esses mesmos indivíduos, enquanto sujeitos sociais de determinada sociedade e que co-estruturaram a sua identidade, transformando-os naquilo que então representam. Assim, neste estudo, para perceber quais os traços mais distintos que marcaram a identidade dos indivíduos, torna-se fulcral ouvi-los a contar a sua história, os seus trajetos até ao momento em que foram morar para o bairro, tanto a nível relacional e profissional, como espacial e temporal. A forma como caracterizam estes trajetos sociais vai influenciar, em larga medida, a maneira como apreendem o espaço residencial em que se encontram – o bairro. Gonçalves (1994) refere que, no seu estudo num bairro social em Vila Franca de Xira, foi necessário perceber “a heterogeneidade que caracteriza os meios populares, as características próprias de os processos de ‘contaminação’ e ‘oposição’ das culturas populares relativamente às culturas de ‘elite’ e de massa” (1994:137), um conjunto de valores que caracterizam estes grupos e os diferenciam, embora todos eles tenham características comuns que os unificam, acabando por criar uma identidade comum que os distingue em relação àqueles que não pertencem ao bairro. O relato que o próprio ator conta do seu trajeto de vida vai mostrar também quais as suas aspirações, o modo como vivem e já viveram e como é que representam e que expectativas têm em relação ao seu futuro.

O bairro de Santa Tecla é um local duma considerável heterogeneidade de trajetos sociais: por um lado, temos os indivíduos de etnia cigana, que foram realojados por antes se encontrarem espalhados pela cidade a viverem em barracas e sem quaisquer condições básicas habitacionais; e, por outro lado, os portugueses não ciganos que vivem no bairro, com inserções profissionais muito deficitárias, com baixo nível de escolaridade e condições de vida muito instáveis. No entanto, estas últimas caracterizações são transversais a ambos os grupos, sendo que, seguindo a condição da baixa escolaridade, esta é assumida de uma forma secundária no caso de grande parte das famílias da etnia cigana, sendo um ato continuado entre as gerações, tornando-se assim mais do que um handicap, mas também uma característica alegadamente cultural, o modo de organização económico da etnia cigana deixa para segundo plano a continuação dos estudos por parte dos mais jovens.

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A vinda para o bairro tornou-se, para a maioria dos seus habitantes, um acontecimento negativo nas suas vidas, devido às imagens negativas que o termo ‘bairro social’ transporta para o imaginário da cidade, segundo a autora, “para mais de metade da população, a vinda para o bairro significou alguma despromoção habitacional” (Gonçalves, 1994: 139-140), tendo em conta como serão julgados na sociedade envolvente e na própria avaliação que o indivíduo faz de si, considerando que agora têm piores condições de habitação, influenciando assim negativamente a representação que fazem deles próprios. Isto pode resultar que os indivíduos tenham constantemente uma imagem negativa da sua habitação, não sentindo-se satisfeitos e acharem que deveriam ter melhores condições de habitabilidade.

Como já foi referido, o contexto espacial em que os atores se encontram tem uma grande importância na forma como estes constroem a sua identidade, mas também pela forma como vão construindo e reconstruindo os seus laços relacionais, “assim, o espaço, enquanto agente ativo de inscrição das práticas sociais, é uma realidade complexa cuja análise deve incluir, para além das características do próprio espaço físico, uma imensidão de variáveis sociais e culturais” (Gonçalves, 1994: 40), que vão engendrar representações que dependem da forma como o indivíduo pensa e atua sobre o seu espaço.

Gonçalves refere que, no seu estudo, as imagens que os indivíduos têm sobre o bairro são bastante negativas, “quase metade dos moradores afirmam não gostar de viver no mesmo” (1994: 141), o que pode ser resultado da grande heterogeneidade cultural e social do bairro, influenciando as representações que os indivíduos fazem dele e também nas suas práticas diárias. Ele é resultado também da imagem negativa que o bairro tem no exterior e da degradação urbanística que as moradias vêm sofrendo. O facto de o bairro ter má imagem no exterior, muitas vezes divulgada também pelos jornais, que descrevem os bairros sociais como focos de violência e marginalidade, vai influenciar a imagem negativa que os moradores paralelamente vão construindo. Disto resulta também uma dificuldade acrescida para que os moradores do bairro se integrem na sociedade envolvente, pois vão sendo catalogados por imagens socialmente destrutivas, como o facto de serem pobres, desempregados e, em alguns casos, marginais - são catalogados devido ao percurso descendente que os levou ao bairro. As famílias que se mudam para o bairro têm já uma fraca integração no espaço urbano, tal como no mercado de trabalho, piorando ainda mais as condições de vida, deixando-os submersos na condição social que os transportou ao bairro, numa situação de exclusão

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social, da qual não conseguem libertar-se. Os bairros são, assim, um elo que, em vez de integrar os indivíduos na sociedade, falha na tentativa de melhorar as condições reais de integração dos indivíduos. As entidades públicas tendem a conceber os bairros apenas como espaços físicos, faltando o elemento cultural e social, de ligação à cidade envolvente.

O facto de na maioria das vezes o bairro ser estereotipado pela questão étnica, ou seja, pelo facto de lá viverem na maioria indivíduos da etnia cigana, vai levar a que se crie uma demarcação interior no bairro. Os moradores portugueses não ciganos vão adotar estratégias de demarcação e afastamento em relação aos seus vizinhos da etnia cigana, sendo frequente e até normal que estes dois grupos não socializem ou interajam entre si de forma voluntária.

Existe também muitas vezes, por parte dos moradores, uma estratégia de recusa e negação das imagens negativas que o bairro transporta consigo, sendo, segundo a autora, uma forma de os moradores “preservarem as suas próprias imagens” (Gonçalves, 1994: 142), tendo em conta que não existem grandes possibilidades de estes se mudarem para outros espaços fora do bairro.

Há também aqueles que gostam de viver no bairro, embora sendo em menor número. Isto acontece porque a mudança para o bairro resultou numa melhoria de vida, apesar de esta se situar apenas nas condições de habitabilidade. Esta apreensão positiva do bairro não resulta contudo numa maior integração no mesmo, quer seja em relações sociais, quer seja na apreensão positiva do espaço físico do bairro, enquanto local de habitação.

Os conflitos existentes no bairro derivam, sobretudo, das más relações de vizinhança, entre outros problemas referidos por Gonçalves (1994), como o racismo, a gestão dos condomínios, a ofensa e a intriga, gerados devido às diferenças culturais entre os moradores do bairro. Por outro lado, existem os problemas de criminalidade, como roubos e tráfico de droga, que leva a que os moradores do bairro optem por resguardar-se mais no espaço da casa, ficando assim descuradas as relações de vizinhança.

Esta questão das identidades socioculturais é bastante complexa: um indivíduo encerra em si várias referências identitárias, uma vez que estas “são de grande permeabilidade à mudança” (Gonçalves, 1994: 145), devido às várias transformações que vão ocorrendo na vida dos indivíduos. Os sujeitos sociais acabam por interiorizar um conjunto de normas e vivências do sistema cultural em que se inserem, sem

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abandonar as suas próprias crenças e valores, permitindo assim uma melhor integração no bairro. Isto vai trazer conflitos interiores ao indivíduo, na medida em que tem de lidar com disputas ocorrentes no bairro, resultantes das diferenças étnicas e culturais que surgem da convivência diária. Estes conflitos vão levar a que o indivíduo crie uma imagem negativa de si mesmo, da sua cultura, e assim adote sistemas de demarcação em relação aos que não são do seu grupo. O espaço social ganha assim importância, na medida em que “o bairro proporciona de forma bastante marcante a inferiorização social e cultural das minorias étnicas” (Gonçalves, 1994: 147), criando representações sociais negativas que o indivíduo vai criar de si, marcando a reestruturação da sua identidade.