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3 O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NO SISTEMA REPRESENTATIVO

3.4 A referência à lei complementar e a inelegibilidade

A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral cedo se firmou no sentido de que as hipóteses de inelegibilidade são as estabelecidas em lei complementar. Ainda na ordem constitucional anterior decidiu o TSE:

[...] os casos de inelegibilidade que visam a preservar a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, levando em consideração a vida pregressa do candidato, são os estabelecidos em lei complementar. Não cabe à justiça eleitoral, não ocorrendo qualquer dos casos previstos na LC 5/70, declarar inelegibilidade com fundamento em que a vida pregressa do candidato não o recomenda para o exercício do cargo83.

Na vigência da Constituição de 1988 não sofreu alteração essa postura do TSE. Desde a Emenda Constitucional nº 4, de 1994, que deu nova redação ao art. 14, § 9º, da Constituição, o tema voltou a ser agitado, mas o TSE manteve o entendimento cristalizado no enunciado 13 da Súmula de sua jurisprudência, segundo o qual “Não é auto-aplicável o § 9º, art. 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94”. Em diversas outras ocasiões, esse entendimento do TSE foi reiterado, como no Recurso Especial Eleitoral nº 13.031, de Minas Gerais, em que foi relator o Ministro Francisco Rezek:

RECURSO ESPECIAL. INELEGIBILIDADE. CONTAS REJEITADAS. PROPOSITURA DE AÇÃO ANULATÓRIA. VIDA PREGRESSA DO CANDIDATO. ART. 14 - § 9º CF.

Proposta ação para desconstituir a decisão que rejeitou as contas, anteriormente à impugnação, fica suspensa a inelegibilidade (Súmula nº 1 TSE).

A vida pregressa do candidato só pode ser considerada para efeito de inelegibilidade quando lei complementar assim o estabelecer84.

Recurso provido.

Essa decisão do TSE reformou julgado do TRE de Minas Gerais, que por sua vez confirmara sentença monocrática indeferindo o registro da candidatura de

83BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. RESP 4503, Acórdão 5902. Disponível em:

<http://www.tse.gov.br/sadJudSjur/pesquisa/actionBRSSearch.do?toc=true&docIndex=0&httpSession Name=brsstateSJUT23621282&sectionServer=TSE>. Acesso em: 23 de junho de 2012..

84 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 13.031, de Minas Gerais.

Relator Ministro Francisco Rezek. Disponível em:

<http://www.tse.gov.br/sadJudSjur/pesquisa/actionBRSSearch.do?toc=true&docIndex=0&httpSession Name=brsstateSJUT22030165&sectionServer=TSE > . Acesso em: 23 maio 2009

Edson Melgaço à prefeitura do Município de Três Marias. O acórdão do TRE foi assim ementado:

REGISTRO DE CANDIDATURA. INDEFERIMENTO. AÇÕES PENAIS E CIVIL PÚBLICA EM CURSO. CONTAS REJEITADAS. PROPOSITURA DE AÇÃO ANULATÓRIA. MANOBRA PARA FUGIR À INELEGIBILIDADE PREVISTA NO ART. 1º - I – g, DA LC 64/90 – INELEGIBILIDADE NÃO AFASTADA.

Precedente jurisprudencial do C. TSE.

Vida pregressa do candidato deve ser considerada. Recurso desprovido85.

Ao proferir o seu voto, o Min. Francisco Rezek ainda pontua que não há como afastar a aplicação do enunciado da Súmula nº 1 do TSE à espécie.

A referência que o § 9º do art. 14 faz à lei complementar, que “estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”, está na raiz do entendimento expresso na súmula 13 – “Não é auto-aplicável o § 9º, art. 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94” – e no acórdão relatado pelo Min. Rezek – “A vida pregressa do candidato só pode ser considerada para efeito de inelegibilidade quando lei complementar assim o estabelecer”.

Como se observa, a referência à lei complementar, e a ausência dessa lei, na prática, bastaram para obstar a aplicação do mandamento constitucional, que tem sido interpretado pelo Tribunal Superior Eleitoral, embora não o diga expressamente, como uma espécie de norma em branco, cuja completude deveria ser buscada em outra norma, hierarquicamente inferior.

A Emenda Constitucional de Revisão nº 4 foi publicada em 9 de junho de 1994 e o Congresso Nacional ainda não promoveu a ação concretizadora necessária à plena eficácia jurídica do mandamento constitucional, caracterizando evidente omissão abusiva no cumprimento da prestação legislativa que lhe foi constitucionalmente imposta. Tem-se uma típica situação de desrespeito à Constituição, imputável, em grande parte, mas não exclusivamente, à inércia do Congresso Nacional, que não cumpre o seu dever jurídico e político de editar uma nova lei complementar que contemple as novas hipóteses de inelegibilidade referidas no preceito constitucional.

85 MINAS GERAIS. Tribunal Regional Eleitoral. Disponível em: <http://www.tre-

mg.jus.br/portal/website/jurisprudencia/ementarios/> . Acesso em: 23 maio 2009

Enquanto sujeito de obrigações, o Poder Público pode incorrer em inconstitucionalidade por ação e por omissão. A primeira ocorre quando faz o que a Constituição proíbe; a segunda quando não faz o que ela determina que seja feito. Nesse sentido o acórdão lapidar da lavra do Ministro Celso de Mello, na ADI-MC 1458/DF, em que, ao censurar o gesto dos que, por ação ou omissão, transgridem a supremacia da Constituição, faz didática explanação sobre os dois tipos de inconstitucionalidade:

EMENTA: DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO – MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO. O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non prestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando nenhuma providência é adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. [...] A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. As situações configuradoras de omissão inconstitucional – ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política, de que é destinatário – refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário86.

A atuação do Estado tanto positivamente, quanto negativamente constituem uma verdadeira base para a necessidade de formalização da atividade legislativa que deve ir de acordo com os princípios consignados constitucionalmente.

Miranda87 registra que “a violação da Constituição por omissão legislativa

tanto pode decorrer da completa inércia do legislador, como de sua deficiente atividade”. Em qualquer das hipóteses, implica em desprestígio da Constituição e em recusa a sua supremacia, merecendo repulsa essa prática estatal grave que 86 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1458/DF. Disponível em:

<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp>. Acesso em: 21 jun. 2007.

87MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 213.

constitui impróprio processo informal de mudança da Constituição, como pontua Ferraz:

A inércia caracteriza-se pela não aplicação intencional, provisória mas prolongada, das disposições constitucionais pelos poderes incumbidos de lhes dar cumprimento e execução.

Configura-se inegável processo de mudança constitucional; embora não altere a letra constitucional, altera-lhe o alcance, na medida em que paralisa a aplicação constitucional. Tal paralisação, não desejada ou prevista pelo constituinte, é de ser tida como inconstitucional.

Afeta, também, o sentido da Constituição.

Destinada esta à aplicação efetiva, qualquer obstáculo que se lhe anteponha desvirtua sua finalidade, resultando numa inconstitucionalidade [...]. Por outro lado, indiretamente, a inércia dá causa à ocorrência de outros processos de mutação constitucional. O distanciamento, no tempo, entre a elaboração constitucional e a sua efetiva aplicação, sofre, inexoravelmente, a influência das transformações sociais diuturnas e constantes, de tal sorte que, após uma prolongada dilatação na aplicação do texto, é provável que esta, quando se efetivar, dê à Constituição sentido e significado diversos daqueles acolhidos no momento da formação da norma fundamental.

Como modalidade de mutação constitucional, a inércia é processo pernicioso, que acarreta consequências desastrosas à vida constitucional dos Estados.

De um lado, porque, ao contrário dos demais processos de mutação constitucional, raramente busca adaptar a Constituição à realidade. Na maioria das vezes, serve de instrumento exatamente para evitar tal adaptação.

De outro lado, porque a inércia arrasta consigo a descrença na Constituição88.

A inércia estatal em cumprir o preceito constitucional caracteriza desprezo pela autoridade da Constituição. É inconcebível elaborar uma norma constitucional sem a intenção de fazê-la cumprir. Percebe-se, nesse ponto, um embate constante entre os desígnios da classe política – governantes e parlamentares – e os interesses maiores dos cidadãos. Há um claro conflito de interesses, um largo fosso a separar os denominados representantes do povo e os cidadãos do país.

A redação da Emenda Constitucional nº 4 foi fruto da pressão popular sobre o Congresso Nacional, em face dos inumeráveis escândalos envolvendo políticos no exercício de mandatos eletivos em todas as esferas de governo e em todos os parlamentos. À classe política não interessa aumentar o elenco das hipóteses de inelegibilidade pelo temor de serem atingidos no futuro por essas disposições, e essa é a razão da inércia e omissão em adimplir a imposição constitucional. Aos cidadãos, inversamente, afigura-se imperioso alargar os

88FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. São

Paulo: Max Limonad, 1986, p. 230-232.

mecanismos de controle sobre os que exercem mandatos conquistados através do sufrágio universal.

É perceptível o conflito de interesses existente entre representantes e representados. Aos cidadãos interessa excluir do processo eleitoral os maus políticos, tornando-os inelegíveis. Aos políticos em geral não interessam regras que restrinjam a condição de elegibilidade.

À omissão inconstitucional do Congresso Nacional em editar a lei complementar deve-se acrescentar a interpretação restritiva que o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal deram ao mandamento constitucional. Merece uma ligeira reflexão a postura conservadora do Poder Judiciário, que em vários momentos tem negado efetividade a dispositivos constitucionais, como quando, apenas para dar outro exemplo, esvaziou o instituto do mandado de injunção.

Essa postura do Judiciário é identificada por alguns doutrinadores como uma das responsáveis pela baixa efetividade da Constituição. Bercovici reprova a pretensão dos tribunais de ser o “cume da soberania”89. Besterelenca julgamentos amparados em “leitura retrospectiva do texto constitucional”.90Streck (2006, p. 306)

adverte sobre a denominada “hermenêutica de bloqueio”91.

Nesse diapasão, Rochasustenta que esse tipo de interpretação judicial “marcadamente restritiva, quando não francamente sabotadora” decorre do fato de o Judiciário constituir “um corpo separado da sociedade [...], distante das dinâmicas que a atravessam e das tensões que se geram no seu seio”92. Para o autor, o

Judiciário brasileiro vem funcionando a um só tempo como “instância última de garantia da efetividade do Direito, mas também como instância de ‘restrição’ das conquistas alcançadas”, atribuindo essa postura, dentre outros fatores, à dependência externa ao poder, que se traduz na submissão ao executivo 89BERCOVICI, Gilberto. O impasse da democracia representativa. In: MORAES, Filomeno; ROCHA,

Fernando Luiz Ximenes (Org.). Direito constitucional contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 281.

90BESTER, Gizela Maria. Dezesseis anos de Constituição Federal, STF e interpretação

retrospectiva: prejuízos aos direitos fundamentais pela falta de vontade de constituição. In:

MOARES, Filomeno; ROCHA, Fernando Luiz Ximenes, op. cit., 2005, p. 333-359.

91STRECK, Lenio. A hermenêutica filosófica e a teoria da argumentação na ambiência do debate

“positivismo (neo)constitucionalismo”. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA,

MartônioMont’alverne Barreto (Org.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 265 – 302, p.306.

92 ROCHA, José de Albuquerque. Judiciário e mudança social.Revista da Faculdade de Direito,

Fortaleza, v.30, n.2, p. 107-111, jul. - dez. 1989.

manifestada em especial na forma de recrutamento de seus membros, em boa medida dependente de “critérios políticos do Chefe do Executivo, o que explica a maior docilidade dos tribunais aos centros de decisões políticas”.

Essa dependência se torna ainda mais evidente na Justiça Eleitoral, que não possui quadro próprio de juízes, posto que seus membros são emprestados de outros tribunais e exercem mandatos de dois anos, permitida uma recondução.

Veja-se o caso do Tribunal Superior Eleitoral, com composição mínima de sete membros, assim escolhidos: três juízes dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal; dois juízes dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça; dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral indicados pelo STF93.

Atente-se para o fato de que os Ministros do STF e STJ já ascenderam a esses tribunais por nomeação do Presidente da República. A nomeação dos membros advindos da advocacia, tanto no Tribunal Superior Eleitoral quanto nos Tribunais Regionais Eleitorais, é prerrogativa do Presidente da República, escolhendo-os de listas tríplices, uma para cada vaga, elaboradas pelo Supremo Tribunal Federal e pelos Tribunais de Justiça Estaduais, respectivamente.

Note-se que não há participação da OAB ou de qualquer outra entidade representativa da sociedade civil nessas escolhas, nem qualquer forma de controle social sobre os escolhidos. É fácil perceber a enorme concentração de poder nesse órgão de cúpula da Justiça Eleitoral e última instância recursal, onde deságuam os processos eleitorais em grau de recurso e é dirimida a quase totalidade dos conflitos eleitorais do país, desde a disputa pelos cargos eletivos das mais humildes prefeituras e câmaras de vereadores, passando pelas eleições de congressistas, governadores de estados e até mesmo da Presidência da República.

Reproduz-se na espécie o embate, de que falava Ferdinand Lassalle94, “entre os fatores reais de poder – representados na hipótese pela classe política e pelos juízes do TSE - e a Constituição”. São perceptíveis os elementos de poder em conflito com a Constituição, referidos na aula inaugural da Universidade de Freiburg,

93 BRASIL. Constituições Brasileiras (1988). art. 119. Brasília: Senado Federal, 2011. v. IV. 94LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Disponível em:

<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html>. Acesso em: 28 jun. 2007. .

proferida pelo Professor Konrad Hesse95, em 1959, em que se contrapõe às ideias

de Lassalle.

Para Lassalle:

A Constituição real de um país é a soma dos fatores reais de poder que regem esse país. A Constituição escrita – jurídica -, quando não representa os fatores reais de poder é apenas uma folha de papel. De nada servirá o escrito em uma folha de papel se contrário aos fatores reais e efetivos de poder. Quando reflete esses fatores reais de poder peculiares a cada país, a Constituição escrita é respeitada, invulnerável. Se, ao revés, há um divórcio com a Constituição real, não existe força capaz de salvá-la. Para o autor, questões constitucionais não são propriamente jurídicas, são sobretudo políticas, de poder, na medida em que a verdadeira Constituição expressa as relações de poder dominantes no país. As constituições escritas só têm valor e são duráveis se exprimirem fielmente os fatores reais de poder que imperam na realidade social96.

O significado das leis constitucionais de um país são as matrizes da sociedade, do povo e da política de uma nação, ressalta-se que sem a formalização de uma constituição não há de se se falar em representatividade do povo.

A tese de Lassalle foi assim resumida por Hesse:

[...] as relações fáticas resultantes da conjugação desses fatores constituem a força ativa determinante das leis e das instituições da sociedade, fazendo com que estas expressem, tão-somente, a correlação de forças que resulta dos fatores reais de poder. Esses fatores reais do poder formam a Constituição real do país. Esse documento chamado Constituição – a Constituição jurídica – não passa, nas palavras de Lassalle, de um pedaço de papel (einStückPapier). Sua capacidade de regular e de motivar está limitada à sua compatibilidade com a Constituição real. Do contrário, torna-se inevitável o conflito, cujo desfecho há de se verificar contra a Constituição escrita, esse pedaço de papel que terá de sucumbir diante dos fatores reais de poder dominantes no país.

Questões constitucionais não são, originariamente, questões jurídicas, mas sim questões políticas. [...] A concepção sustentada inicialmente por Lassalle parece ainda mais fascinante se se considera a sua aparente simplicidade e evidência, a sua base calcada na realidade – o que torna imperioso o abandono de qualquer ilusão – bem como a sua aparente confirmação pela experiência histórica. É que a história constitucional parece, efetivamente, ensinar que, tanto na práxis política cotidiana quanto nas questões fundamentais do Estado, o poder da força afigura-se sempre superior à força das normas jurídicas, que a normatividade submete-se à realidade fática. [...].

Considerada em suas conseqüências, a concepção da força determinante das relações fáticas significa o seguinte: a condição de eficácia da Constituição jurídica, isto é, a coincidência de realidade e norma, constitui apenas um limite hipotético extremo. É que, entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. Para essa concepção do Direito Constitucional, está configurada permanentemente uma situação de conflito: a Constituição jurídica, no que tem de

95 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes Ferreira. Porto Alegre:

Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.

96 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Disponível em:

<http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/constituicaol.html>. 2001, p. 187.

fundamental, isto é, nas disposições não propriamente de índole técnica, sucumbe cotidianamente em face da Constituição real97.

Hesse opõe-se às ideias de Lassalle e sustenta que o embate entre os fatores reais de poder e a Constituição não deve resultar, necessariamente, na prevalência daqueles. Ao contrário de Lassalle, Hesse não considera a Constituição a parte mais fraca, significando muito mais que um pedaço de papel. Na apresentação do opúsculo de Hesse, anotou Gilmar Mendes Ferreira:

Sem desprezar o significado dos fatores históricos, políticos e sociais para a força normativa da Constituição, confere Hesse peculiar realce à chamada vontade de Constituição (WillezurVerfassung). A Constituição, ensina Hesse, transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (WillezurMacht), mas também a vontade de Constituição (WillezurVerfassung)98.

A Constituição somente atuará como força ativa, capaz de influenciar de forma eficiente os rumos do país, quando houver uma consciência geral dessa vontade de constituição; quando tornar-se assente que a ordem constitucional é mais que uma norma legitimada pelos fatos e só se tornará eficaz com o engajamento da vontade humana. A Constituição contém uma força normativa que estimula e coordena as relações sociais. São três as condições previstas por Hesse para que atue a força normativa da Constituição:

a) [...], constitui requisito essencial da força normativa da Constituição que ela leve em conta não só os elementos sociais, políticos e econômicos dominantes, mas também que, principalmente, incorpore o estado de espírito (geistigSituation) de seu tempo. Isso lhe há de assegurar, enquanto ordem adequada e justa, o apoio e a defesa da consciência geral. [...]. b) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas de seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar dessa concepção [...] denominada vontade de Constituição (WillezurVerfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente. [...] Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático. Aquele que, ao contrário, não se dispõe ao sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado’.