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Como descrevem Lopes Jr. e Rosa, a audiência de custódia deve ser estruturada para ocorrer de acordo com os seguintes passos:

1) A prisão é legal, isto é, era hipótese de flagrante (CPP, art. 302,303)? 2) Se não, relaxa-se; 2.1) Relaxada a prisão o Ministério Público pode requerer a prisão preventiva ou a aplicação de medidas cautelares;

3) Sustentando-se as razões do flagrante; 3.1) O Ministério Público se manifesta pelo requerimento da prisão preventiva ou aplicação de cautelares ou acolhe as razões formuladas eventualmente pela autoridade policial; 3.2) A defesa se manifesta sobre os pedidos formulados pelo Ministério Público. Se não houve pedido por parte do Ministério Público, o juiz não pode decretá-lo de ofício, já que não existe processo (CPP, artigo 311, vale conferir a redação).

4) O magistrado decide – fundamentadamente – sobre a aplicação das medidas cautelares diversas ou, sendo elas insuficientes e inadequadas, pela excepcional decretação da prisão preventiva.77

Caio Paiva, outrossim, completa a estrutura procedimental da audiência com mais duas etapas prévias:

(1) Explicação para o conduzido do que se trata o ato, ressaltando para ele, e também para os demais presentes, MP e Defesa, que não serão

77 LOPES JUNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. O difícil caminho da Audiência de custódia. Empório do Direito, 9 mai. 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-dificil-caminho-da- audiencia-de-custodia-por-aury-lopes-jr-e-alexandre-morais-da-rosa/>. Acesso em: 05 maio 2017.

admitidas perguntas ou manifestações sobre o mérito do caso; e (2) início do ato com uma qualificação completa do conduzido, inclusive sobre questões que costumam condicionar o êxito de pleitos de liberdade, tais como se possui ocupação lícita, residência fixa etc.78

Contudo, vale acrescentar ainda a obrigação de o(a) magistrado(a) sempre consultar a pessoa detida acerca do tratamento recebido, desde o momento de sua prisão em flagrante até a sua condução para a audiência, visando a apurar a ocorrência de maus-tratos ou tortura, além de verificar se houve a realização de exame de corpo de delito.

Sobre a coibição da prática de tortura, o projeto original do CNJ que serviu de modelo aos demais estados, apresenta, dentre os resultados pretendidos, somente uma previsão genérica:

1. Impedir o prolongamento da prisão processual desnecessária, garantindo-se, no menor tempo possível:

- a não judicialização do conflito penal; - o imediato relaxamento de prisões ilegais;

- a concessão da liberdade provisória, com ou sem aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, em todos os casos em que não estiverem presentes, os requisitos que autorizem a conversão da prisão em flagrante em preventiva.

2. Efetividade do ‘princípio da presunção de inocência’, evitando a utilização da prisão provisória como mecanismo de cumprimento antecipado da pena; 3. Inibição da prática e tomada de providências para coibir e responsabilizar eventual constatação de tortura, tratamento cruel e degradante a que submetidos os autuados em flagrante delito;

4. Enfrentar a situação de superlotação dos Centros de Detenção Provisória, em particular os da Cidade de São Paulo;

5. Permitir e cultivar a ambiência de uma nova ‘cultura’, que dê visibilidade e enfoque restaurativo à solução de conflitos penais, decorrente do trabalho de mediação penal e a contemplação mais consistente de formas cautelares alternativas à prisão, evitando o desfazimento dos vínculos do autuado em flagrante com a comunidade.79

Ocorre que, o Provimento do TJSP80, que regulou o projeto piloto, abordou a questão da tortura de forma ainda mais precária, trazendo em seu artigo 7º a referência mais próxima feita ao tema, ainda que eufemisticamente, quando é prevista a possibilidade de o juiz, diante das informações colhidas em audiência, requisitar exame de corpo de delito caso entenda ser necessário para apurar

78 PAIVA, 2015, p. 91. 79

LEWANDOSKI, Enrique Ricardo; LANFREDI, Luis Geraldo Sant’Ana. Projeto Audiência de Custódia. Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Cumprimento de Medidas Socioeducativas – DMF. Conselho Nacional de Justiça. Brasília: [2014?], p. 7 (grifo nosso).

80 SÃO PAULO. Presidência do Tribunal de Justiça e Corregedoria Geral da Justiça. Provimento Conjunto n. 03/2015. Diário da Justiça Eletrônico, Publicação Oficial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Caderno Administrativo, Ano VIII, ed. 1814, p 1-3. São Paulo, 27 de janeiro de 2015.

possível “abuso” cometido durante a prisão81.

Como destaca o relatório Tortura blindada82, o provimento não segue a

orientação do próprio CNJ, constante na Recomendação n. 49, de 201483, a qual prevê uma série de orientações de procedimentos a se adotar na apuração de notícias de ocorrência de tortura, bem como estabelece a necessidade de observância do Protocolo de Istambul, da ONU84, o qual orienta a investigação e documentação do crime de tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

A Resolução do TJCE, por outro lado, apresentou significativo avanço em relação ao Provimento que disciplinou as audiências em São Paulo, trazendo previsão expressa de perguntas acerca da ocorrência de tortura física, psíquica ou maus-tratos, orientando a comunicação da notícia das mesmas à autoridade policial e à Procuradoria-Geral de Justiça, bem como fazendo remissão a normativos nacionais e internacionais sobre a temática, confira-se:

[...] Art. 4º. Na abertura da audiência de custódia, o juiz competente informará o autuado sobre a possibilidade de não responder às perguntas que lhe forem feitas, e o entrevistará sobre sua qualificação, condições pessoais, tais como estado civil, grau de alfabetização, meios de vida ou profissão, local da residência, lugar onde exerce sua atividade, e, ainda, sobre as circunstâncias objetivas da sua prisão, indagando-o sobre eventual tortura física, psíquica ou maus-tratos que tenha sofrido do momento da detenção até o ato.

§ 1º Não serão feitas ou admitidas perguntas sobre o mérito da conduta ilícita, que antecipem instrução própria de eventual processo de conhecimento, destinando-se a oitiva a perscrutar, exclusivamente, elementos pessoais relacionados à legalidade, necessidade e adequação da continuidade da prisão ou para a concessão de liberdade, com ou sem imposição de outras medidas cautelares, além da constatação da ocorrência de tortura ou de maus-tratos, sem prejuízo de outras irregularidades.

[...] § 9º Se reunidos elementos indiciários bastantes acerca de

81 Idem, art. 7º.

82 CONECTAS DIREITOS HUMANOS (São Paulo). Tortura blindada

: Como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia. São Paulo: Conectas, 2017, p. 22-23. Disponível em: <http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Relatório completo_Tortura blindada_Conectas Direitos Humanos(1).pdf>. Acesso em: 05 maio 2017.

83 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 49, de 1 de abril de 2014. Dispõe sobre a necessidade de observância pelos magistrados brasileiros, das normas - princípios e regras - do chamado Protocolo de Istambul, da Organização das Nações Unidas (ONU), e, bem assim, do Protocolo Brasileiro de Perícia Forense, em casos de crime de tortura e dá outras providências. DJE/CNJ, n. 58, p. 4. Brasília, 3 abr. 2014.

84 Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Protocolo de Istambul. Manual para a Investigação e Documentação Efectiva da Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Submetido ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em 9 de agosto de 1999. Série de Formação Profissional n.º 8. Organização das Nações Unidas. Genebra: jun. 2001. Tradução do Gabinete de Documentação e Direito Comparado, Procuradoria-Geral da República, Lisboa, Portugal.

possível tortura ou maus-tratos, a autoridade judiciária providenciará a comunicação à autoridade policial e à Procuradoria-Geral da Justiça, para fins de apuração da eventual prática de crime e/ou ato de improbidade administrativa, sem prejuízo das medidas que se revelem adequadas para evitar que os suspeitos possam ser mantidos em posição de controle ou comando quanto ao preso, bem assim proteger a sua integridade, de testemunhas e seus familiares, observadas, neste tocante, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (art. 13); a Lei Federal nº 9.807, de 13 de julho de 1999; a Lei Estadual nº 13.193, de 10 de janeiro de 2002; e o Provimento nº 13, de 25 de outubro de 2013, da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Ceará.85

A regulamentação em caráter geral dada pelo CNJ no final de 2015, contudo, desponta como importante fonte de orientações e diretrizes para os magistrados ao disciplinar detalhadamente o procedimento da audiência em relação aos crimes de tortura.

Nesse sentido, segundo o art. 8º da Resolução n. 213/2015 do CNJ, na audiência de custódia, o(a) magistrado(a) precisa entrevistar a pessoa detida em flagrante, devendo:

I. esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade judicial;

II. assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcional idade ser justificada por escrito; III. dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio;

IV. questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares;

V. indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;

VI. perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis; VII. verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que:

a) não tiver sido realizado;

b) os registros se mostrarem insuficientes;

c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado;

d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial, observando- se a Recomendação CNJ 49/2014 quanto à formulação de quesitos ao perito;

VIII. abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;

IX. adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades; averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a

85 CEARÁ. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Resolução do Órgão Especial n. 14/2015, art. 4º (grifo nosso).

imposição de medida cautelar.86

A Resolução, portanto, atende às recomendações do Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT), que, em visita ao Brasil, constatou que:

De acordo com as informações coletadas, os juízes raramente faziam perguntas aos detentos sobre o tratamento que recebiam durante a investigação. Os juízes devem permanecer vigilantes aos sinais de tortura e de maus-tratos, bem como realizar os passos necessários para corrigir e pôr termo a essas situações.

[...] O SPT recomenda que os juízes sejam obrigados por lei a consultar todas as pessoas detidas acerca do tratamento recebido ao longo das investigações, a registrar por escrito quaisquer alegações de tortura ou maus-tratos, bem como a determinar a realização imediata de exames médicos forenses sempre que houver motivos para se acreditar que algum detido tenha sido submetido a tortura ou a maus-tratos.87

Sob essa perspectiva, destaca-se a adoção de Protocolo, anexo à Resolução n. 213/2015 do CNJ, prevendo procedimentos pormenorizados para oitiva, registro e encaminhamento de denúncias de tortura no curso da realização da audiência, no qual:

[...] recomenda-se à autoridade judicial atenção às condições de apresentação da pessoa mantida sob custódia a fim de averiguar a prática de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante considerando duas premissas:

I. a prática da tortura constitui grave violação ao direito da pessoa custodiada;

II. a pessoa custodiada deve ser informada que a tortura é ilegal e injustificada, independentemente da acusação ou da condição de culpada de algum delito a si.88

O documento apresenta o conceito de tortura e descreve as condições adequadas para a oitiva do custodiado na audiência, os procedimentos relativos à apuração de indícios da prática e as providências a serem adotadas em caso de identificação de sua ocorrência, tendo por objetivo orientar tribunais e magistrados e baseando-se em manuais e diretrizes como o já citado Protocolo de Istambul, dentre outros.

86 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas. DJE/CNJ, n. 1, p. 2-13. Brasília, 8 jan. 2016.

87 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo facultativo à convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Relatório sobre visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Genebra, 8 fev. 2012, p.7, §§ 28 e 29 (grifo nosso). Disponível em: <https://nacoesunidas.org/img/2012/07/relatorio_SPT_2012.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2017

88 Cf. Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015. Protocolo II: Procedimentos para oitiva, registro e encaminhamento de denúncias de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (anexo).

2.5 A importância do respeito ao prazo de apresentação da pessoa presa