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3.1 A Rejeição aos Axiomas Ortodoxos e o Conceito de Economia Monetária

Para Davidson, “desfazer-se de um axioma é rejeitar o que aqueles com fé acreditam ser verdades universais” (Davidson, 1989, p. 389). Essa foi a grande tarefa empreendida pela revolução keynesiana: rejeitar os axiomas básicos da ortodoxia que geravam essas “verdades universais” com o intuito de desenvolver, a partir daí, um modelo teórico capaz de lidar com a

25 Dentro da taxonomia proposta por King (2008), o modelo teórico elaborado por Paul Davidson representa uma das três vertentes de modelos macroeconômicos identificadas no pós-keynesianismo, juntamente com o modelo de duas classes de Michael Kalecki e a hipótese de instabilidade financeira de Hyman Minsky.

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teoria econômica de modo que suas principais características não estivessem sujeitas a simplificações grosseiras, mas próximas ao que a economia se apresenta no mundo real.

Para reconstruir o raciocínio de Davidson deve-se, primeiramente, identificar os axiomas que seriam responsáveis por essas “verdades universais” econômicas e procurar responder de que maneira a sua aceitação diverge das características do mundo real tais quais teorizadas por Keynes e seus seguidores pós-keynesianos.

Em linha com o que Keynes discutiu, Davidson (1984, p. 562) elencou três axiomas que se constituem como a base do pensamento econômico ortodoxo. O primeiro desses princípios é o “axioma da substitutibilidade”, o qual seria responsável por restaurar a lei de Say e assim garantir um equilíbrio sem a presença de desemprego involuntário. O próximo axioma da “neutralidade da moeda” demonstraria a incapacidade desta em afetar as decisões dos agentes econômicos e, para finalizar sua análise, Davidson aponta o “axioma da ergodicidade”, o qual enxerga o futuro como um modelo probabilístico baseado nos acontecimentos econômicos do passado27.

Davidson argumenta que o abandono desses axiomas é vital para a construção de um caminho que leve a uma economia pós-keynesiana consistente com o arcabouço analítico de Keynes. Uma vez liberto dos postulados citados será possível demonstrar que o princípio da demanda efetiva de Keynes é a base para toda a teoria macroeconômica em um mundo onde a lei de Say não se constitui como uma verdade universal (Davidson, 2005, p. 453). Sobre essa questão, Keynes afirma:

The postulates of the classical theory are applicable to a special case only and not to the general case… Moreover, the characteristics of the special case assumed by the classical theory happen not to be those of economic society in which we actually live, with the result that its teaching is misleading and disastrous if we attempt to apply it to the facts of experience (Keynes, 1936, apud Davidson 2005, p. 453).

Keynes e os pós-keynesianos baseiam sua análise econômica na proposição de que a economia moderna não possui qualquer mecanismo automático que assegure o retorno ao pleno

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Davidson (1991, p. 33) argumenta que todas as variantes da teoria econômica do mainstream estão fundamentadas nesses três postulados clássicos. O autor ainda compara as teorias neoclássicas a cereais matinais, os quais, embora possuam diferentes nomes e modelos, são constituídos basicamente pelos mesmos ingredientes.

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emprego dos recursos ao longo do tempo, o que, em outras palavras, significa dizer que existe a possibilidade de ocorrência de um “equilíbrio com desemprego”, algo que contraria os resultados econômicos previstos pela aceitação do axioma da substitutibilidade.

Entretanto, para que a Lei de Say fosse violada, os agentes não devem enxergar a moeda como um mero numerário existente entre a troca de bens, ou da mesma forma, somente como um meio de troca. Keynes e os pós-keynesianos propõem um contexto no qual a moeda, ao assumir um papel de transporte de poder de compra do presente para o futuro, passa a influir de maneira decisiva nas decisões econômicas28. Nas palavras de Davidson (1994, p. 94), o resultado dessa análise é a queda do segundo axioma clássico citado, que aponta para a neutralidade da moeda, uma vez que esta passa a ser alvo de desejo e não apenas um véu entre as transações na economia.

A crítica pós-keynesiana de Davidson à economia mainstream completa-se com a rejeição ao axioma da ergodicidade. Em uma visão ergódica de mundo, a realidade é simplesmente imutável e não pode ser modificada, já que esta é concebida como um conjunto de processos que eternamente replicam condições passadas de eventos econômicos ou que tenham sua distribuição de probabilidade conhecida. Por outro lado, em um mundo não-ergódico, importantes aspectos do futuro ainda estão para serem criados e o resultado final dependerá, em grande parte, das ações humanas empreendidas no presente.

Em um contexto de realidade ergódica, na qual as relações básicas que governam a economia jamais se modificam, o futuro é meramente um reflexo do passado e, portanto, probabilístico (Davidson, 1994, p. 90). Esse resultado choca-se frontalmente com a visão de futuro do arcabouço teórico keynesiano, que prevê a inexistência de informações confiáveis para que os agentes tomem suas decisões acerca dos resultados vindouros. Desse modo, o futuro não é calculável, mesmo que os tomadores de decisão sejam competentes para realizar as operações matemáticas e, assim, calcular as probabilidades dos eventos dadas as informações necessárias. É essa falta de conhecimento sobre os resultados futuros que gera a incerteza no sentido de Keynes29 e dos pós-keynesianos, incerteza essa que permeará o comportamento dos agentes econômicos no mundo real.

28 A moeda pode ser vista como uma “máquina do tempo de liquidez”. 29

O sentido descrito por Keynes é o da frustração das expectativas, ou seja, a não convergência de opiniões sobre o futuro incerto. Essa incerteza, por sua vez, tem implicações na maneira dos agentes tomarem decisões, com reflexos para a esfera econômica. (Andrade, 2011, p. 175).

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A rejeição a esses axiomas é consistente com a definição de economia monetária de produção, a qual, segundo Keynes:

[…] an economy in which money plays a part of its own and affects motives and decisions, and is, in short, one of the operative factors in the situation, so that the course of events cannot be predicted either the long period or in the short, without a knowledge of the behavior of money between the first state and the last. (Keynes, 1973a, pp. 408-409).

Como mencionado no início da seção, Keynes tinha em mente a elaboração de uma teoria que estivesse mais próxima daquilo denominado pelo autor como “fatos da experiência”, o que, em outros termos, quer dizer estar em maior contato com as características econômicas do mundo real. Dentre essas características, Davidson (1989, p. 393; 2005, p. 454), elenca as seguintes:

1) A moeda importa no curto e também no longo prazo. Com isso ela influi nas decisões dos agentes fazendo com que a moeda jamais se torne neutra.

2) O sistema econômico se move através do tempo, de um passado irrevogável para um futuro incerto. Decisões importantes envolvendo produção, investimento e consumo são, portanto, tomadas em um ambiente incerto.

3) As características da moeda como se conhece estão ligadas a existência de contratos, ou como Keynes colocou na primeira página de sua obra Treatise on Money (1930), “a moeda vem junto com... os contratos”.

4) Contratos futuros em moeda são instituições humanas desenvolvidas para organizar a produção e os processos de troca de uma forma eficiente. Desse modo, as modernas economias de produção são organizadas em um sistema baseado em contratos, principalmente os contratos salariais.

5) O desemprego, mais do que o pleno emprego, é o resultado normal de uma economia orientada para o mercado e que utiliza o dinheiro para organizar a sua produção.

Dessa forma, encontram-se descritos os principais “fatos” que sustentam a base lógica por trás do arcabouço teórico keynesiano. Para Davidson (1978), Keynes procurou

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elaborar uma teoria na qual a moeda passa a ser um objeto de desejo, deixando, com isso, de ser apenas um elo neutro entre as transações, como seria o caso nos termos dos pressupostos clássicos. A seção seguinte buscará desenvolver esse raciocínio ao analisar as principais características da moeda que implicam em sua não-neutralidade, bem como a sua ligação com os contratos.

3.2 - A Natureza do Dinheiro e o Papel das Instituições em uma Economia