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A relação das prerrogativas públicas com os contratos

CAPÍTULO II. O PAPEL DAS CLÁUSULAS CARACTERÍSTICAS DE DIREITO

2. A relação das prerrogativas públicas com os contratos

Negar, de maneira genérica e geral, a possibilidade de o Poder Público possuir determinadas prerrogativas previstas em lei e exercíveis de maneira motivada é ignorar a natureza jurídica peculiar da Administração Pública, bem como o fato de ser mandatária da população para defender o interesse público.

Carlos Ari Sundfeld, embora falando especificamente sobre contratos administrativos, aponta que a inserção de cláusulas exorbitantes em um acordo da Administração Pública não retira a natureza contratual do instrumento, até porque a elas corresponde a estabilizaçào da equação econômico-financeira, contrapartida significativa:

“Porém, o vínculo obrigacional em si não é instável, porquanto à definição (ou redefinição) exata do objeto, procedida pela Administração no curso da execução, corresponde uma definição (ou redefinição) do montante da remuneração do particular, nos termos da equação econômico-financeira consensualmente estabelecida, e que é intangível. Em outras palavras: no contrato administrativoem sentido estrito, a Administração tem o poder de, por variados atos posteriores à sua celebração, determinar exatamente o objeto do vínculo, mas não tem a faculdade de escapar dele mesmo (nem mesmo quando dão por findo o contrato antes do prazo, porque também nesse caso há reflexos patrimoniais determinados pela equação econômico-financeira).”163

Assim, utilizar a existência de limites ao exercício de prerrogativas públicas para propor o fim das cláusulas exorbitantes164 (e, com isso, o fim dos contratos

163SUNDFELD, Carlos Ari. op. cit., p. 212-213.

164Maria Paula Dallari Bucci apresenta uma análise bastante elucidativa do assunto: “Nessa linha, a doutrina

administrativista questiona-se hoje sobre a ‘fuga da Administração para o direito privado’. No fundo ou por trás desse movimento, cogita-se de estar a Administraçãobuscando, mais que despir-se das prerrogativas, escapar às sujeições típicas do regime administrativo.

Mas deve-se notar, em paralelo, a existência de um amplo movimento de contratualização da atividade administrativa, que se reveste de múltiplas formas (e no Brasil recente é exemplo disso a recente introdução do §8° do artigo 37 da Constituição Federal, com a figura do contrato de gestão), a indicar realmente a crise da idéia de prerrogativa e do ‘poder de império’ a ela subjacente. Odete Medauar noticia que ‘a prerrogativa de modificar unilateralmente o contrato, como algo absoluto, vem sendo contestada modernamente. No ordenamento italiano, a Corte de Cassação afastou a tese do poder discricionário de modificação unilateral do contratio, como poder geral independente de previsão legal explícita; afirmou que, salvo a rescisão por interesse público, a relação contratual é regida por cânones paritários’.

No plano político, essa idéia corresponderia, no mínimo, à busca de uma legitimação da ação administrativa pelo consenso. Talvez esse movimento não indique exatamente a crise do direito especial em favor do direito comum, mas a crise da noção de ato administrativo, unilateral, em favor da noção de

administrativos) nos parece ser proposta extremada que acaba por desprezar o princípio da indisponibilidade do interesse público.

Da mesma forma que reside interesse público na preservação dos direitos fundamentais, há interesse público também na prorrogação extraordinária, por exemplo, de um contrato de locação de imóvel utilizado como hospital para prestar socorro a vítimas de queimaduras de um acidente de grandes proporções ou no aumento da quantidade de uniformes fornecidos aos funcionários públicos ali lotados, causados por atitude unilateral da Administração Pública contratante165.

Pode-se até se discutir a melhor forma de redigir tais cláusulas, mas jamais eliminar aquilo que elas representam, a sua essência, que é a existência de prerrogativas inerentes à Administração Pública, mas não eliminá-las do mundo jurídico, pois sua base legitimadora é o interesse público, que não é passível de transação166.

Por outro lado, a importância da preservação das cláusulas exorbitantes em razão daquilo que representam não significa que instrumentos de comprovada eficiência que tenham se originado em negócios jurídicos puramente privados não possam ser adotados.

Não nos parece que o legislador, os juristas e/ou a jurisprudência tenham cogitado em algum momento dentro do contexto contemporâneo que as prerrogativas públicas consubstanciadas em cláusulas contratuais ditas exorbitantes do regime comum pudessem ser utilizadas para fazer letra morta da Constituição Federal e subjugar direitos

atividade, à qual subjaz a de procedimento, como destaca Maria João Estorninho, ao referir o caso alemão: ‘Os contratos jurídico-públicos admitidos pela lei não passariam de meros ‘atos administrativos com participação especialmente intensa do destinatário’’. Essa tendência é um exemplo do fardo autoritário subjacente à perspectiva subjetiva das prerrogativas da Administração Pública, concomitantemente à inadequação da fundamentaçãoobjetivista, cujo teor, hoje, está a reclamar maior espaço às figuras da participação popular, da motivação e da transparência administrativa, em lugar de prerrogativas herméticas” (BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 254).

165Esclareça-se que não se está a equiparar direitos fundamentais com intersses de fornecimento, mas sim a

afirmar que há interesse público tanto em um caso como em outro. É claro que numa situação em que a Administração tenha que escolher entre um e outro, deverá se pautar pela preservação dos direitos fundamentais, mesmo que em prejuízo de interesses patrimoniais do Estado (e, em consequência, da coletividade).

166E, neste ponto, não se deve confundir a impossibilidade de transação com a possibilidade de cedência,

apenas na medida do essencial, diante de outro interesse público mais relevante (confronto ou concurso de interesses), muito semelhante à mecânica da cedência recíproca de princípios da seara constitucional (sobre esta cedência, é útil a metodologia proposta em MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de, MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coords.), cit., p. 590).

fundamentais, simplesmente por ser tal atitude totalmente incompatível com o ordenamento jurídico em vigor.

Portanto, tomar as cláusulas exorbitantes como se fossem carta branca para o bel prazer da Administração Pública é desvirtuar sua real função e constitui tentativa de generalizar a casuística ilegal que se pode presenciar vez ou outra, que ocorre em total desconformidade com o direito administrativo. Deve-se combater a tentação de generalizar, pois ela leva justamente a iniciativas extremadas que acabm resultando em que alguns autores defendam o fim do próprio objeto de seu estudo.

Nesse contexto, um dos principais argumentos que parece embasar a opinião dos autores que sugerem mitigar as cláusulas exorbitantes é o fato de partirem do pressuposto de que toda prerrogativa atribuída à Administração Pública decorre da assimetria entre Administração e administrados, que por sua vez adviria da imperatividade do Poder Público, com raízes imperialistas. Assim, adotando este pressuposto – que nos parece incompleto, eis que referida assimetria, na realidade, é fruto (como, ademais, já afirmamos anteriormente nesse trabalho) também da própria natureza jurídica peculiar da Administração Pública e do mandato que lhe é outorgado pela população –, alguns autores sugerem mitigar tais cláusulas para, com isto, conferir um caráter mais igualitário aos contratos da Administração Pública.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto167, por exemplo, defende existir atualmente um único regime jurídico aplicável a todos os contratos celebrados pela Administração Pública, com diferentes modulações e intensidades de direito público e de direito privado, não sendo mais correto se colocar uma barreira diferenciadora entre duas modalidades distintas de contratos da Administração Pública. Coloca, neste contexto, que uma aproximação das formas de contratação puramente privadas poderia conferir um maior nível de eficiência ao agir administrativo.

Muito embora com seu mérito, não concordamos com tal opinião, pois reconhecemos que o exercício de prerrogativas sempre será uma possibilidade concretizável, nos limites da razoabilidade e proporcionalidade, quando da demonstração da existência de interesse público previsto genericamente em lei, de maneira que nos

167MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos.

parece ser mais correto e justo com o particular evidenciar tal possibilidade – na legislação ou no próprio contrato – para evitar surpresas e questionamentos futuros. Além disso, a eficiência (introduzida no caput do art. 37 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional n.º 19/1998 como parte da chamada “Reforma Administrativa”168) como um princípio administrativo apresenta conceito diferente do econômico169, largamente difundido na doutrina.

Também não se pode deixar de ressaltar que pregar uma aproximação do direito comum apenas a título de busca de maior atratividade para o setor privado e de melhor acompanhamento das evoluções do mercado não nos parece ser motivo por si só suficiente para relegar a plano secundário o que, a nosso ver, é o motivo legitimador de toda ação administrativa, qual seja, o interesse da coletividade.170

É necessário sempre se ater à real função das cláusulas ditas exorbitantes, importantes ao exercício motivado de prerrogativas benéficas ao interesse público. Contrario sensu, o emprego da utilização deturpada (e, portanto, anulável) das cláusulas exorbitantes não pode servir de argumento ao combate das prerrogativas que representam sob a injustificada bandeira de defesa da democracia e da igualdade entre partes (ente privado e Administração Pública) que, por natureza, são distintas.

Assim, portanto, desde já fica consignado nosso entendimento de que as cláusulas exorbitantes desempenham, ainda hoje, papel fundamental nos contratos administrativos e que, ademais, as prerrogativas que elas representam podem, em tese e potencialmente, ser acionadas mesmo naqueles contratos em que referidas cláusulas não se encontrem

168Sobre o assunto, ver MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Apontamentos Sobre a reforma

administrativa. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

169Sobre o assunto, já tivemos a oportunidade de ressaltar que “a noção constitucional de eficiência foge ao

conceito puramente econômico (atividade sustentável), residindo numa esfera de regulação permeada de caráter social, fora da lógica privada do lucro e agregando a si aspectos como atuação ampla e efetiva, ainda que contabilmente injustificável. Isso significa dizer, por exemplo, que uma ação do Estado brasileiro (ou de quem lhe faça as vezes, ainda que o responsável, em última instância, seja sempre o Estado) reputada como essencial, que seja altamente superavitária mas que não abranja todos os cidadãos de maneira isonômica não será eficiente. Por outro lado, uma utilidade pública notadamente onerosa ao Tesouro e que não siga uma lógica econômica, mas que indiscutivelmente proveja os cidadãos brasileiros da garantia de qualquer direito fundamental não só será totalmente justificável, como perfeitamente eficiente.” (CARVALHAES NETO, Eduardo Hayden. Regulação da universalização de serviços públicos concedidos: o caso brasileiro dos Serviços de Telecomunicações. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 40).

170Ademais, instrumentos que se tornaram usuais nos negócios jurídicos privados, como, por exemplo, o uso

de meios alternativos de solução de disputas e apresentação de garantias também pelo setor público podem ser aplicados em contratos em que o Poder Público seja parte, desde que mediante o correto procedimento e com as devidas adaptações devidas pela incidência – ainda que parcial – do direito público.

(devendo, neste caso, haver cautela redobrada na sua motivação e demonstração objetiva da presença de elementos extraordinários justificadores de seu acionamento).