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A categoria Trabalho e Educação são extremamente importantes na compreensão dos meandros do mundo dos trabalhadores e, especificamente, em nosso caso, no entendimento do contexto de vida e trabalho dos operários da construção civil. Uma questão cara aos que querem modificar a realidade social é como conceber o Trabalho e a Educação como instrumentos de catalisação de mudanças. Contudo, para os que estão mergulhados nas contradições do processo produtivo a partir da venda da força de trabalho, para as pessoas desempregadas ou em condição de subemprego é, sem dúvida, muito difícil conceber e compreender o trabalho como princípio educativo cuja sua educabilidade vai para além das demandas exigidas para se manter em um emprego ou se tornar “empregável”.

Freire (2001) e Frigotto (2001)compreendem que a Educação e o Trabalho são partes fundamentais da ontologia do ser social. Porém, a disputa dos rumos da Educação e do Trabalho na sociedade de classes, ditada pelas regras dos de cima, impõe concepções que produzem e reproduzem as opressões e condicionam as possibilidades fundamentais de realização humana.

No caso da classe trabalhadora brasileira, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2014) citam três pontos que dificultam a compreensão do trabalho como princípio educativo por parte dos trabalhadores e das trabalhadoras: os séculos de trabalho escravo, cujas marcas são ainda profundamente visíveis na sociedade; a visão moralizante do trabalho, trazida pela perspectiva de diferentes religiões; e a perspectiva de se reduzir a dimensão educativa do trabalho à sua função instrumental didático-pedagógica do aprender fazendo. Para os autores citados, o trabalho

[...] é a atividade fundamental pela qual o ser humano se humaniza, se cria, se expande em conhecimento, se aperfeiçoa. O trabalho é a base estruturante de um novo tipo de ser, de uma nova concepção de história. E é pela ação vital do trabalho que os seres humanos transformam a natureza em meios de vida. Se essa é uma condição imperativa, socializar o princípio do trabalho como produtor de valores de uso, para manter e reproduzir a vida, é crucial e “educativo”. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2014, p.1). O trabalho aqui não é entendido como emprego ou atividade laboral remunerada. A concepção com a qual nos filiamos vincula o trabalho como a forma de ser dos seres humanos, ou seja, somos parte da natureza e dependemos dela para reproduzir a vida.

“[...], a educação, como formação, como processo de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, se tornou, ao longo da aventura no mundo dos seres humanos uma conotação de sua natureza, gestando-se na história, como a vocação para a humanização, […]”.

Calado (s/d, p.1) considera que o processo de humanização “[...], demanda, entre outros componentes, uma permanente formação omnilateral, da qual a Educação Popular, tal como defendemos, pode ser um espaço decisivo, nessa direção. […]”.

O autor citado assinala que “Educação Popular (EP) serve, por conseguinte, aos mais variados gostos. Dir-se-ia que há EP feita para o Povo, há EP feita com o Povo, há EP feita apesar do Povo, e há até EP feita contra o Povo… […]” (CALADO, s/d, p.2, grifo nosso). Porém, destaca que duas concepções de educação popular se sobressaem no campo educacional: a Educação Popular numa perspectiva assistencialista e outra que é concebida como processo humanizador. A primeira concepção é hegemônica e a segunda se apresenta como alternativa à ideia predominante. No que tange à perspectiva assistencialista, evidencia que:

Com variações de grau, parece ser esse o caráter da grande maioria das experiências vivenciadas em EP, seja no terreno das relações do Estado, seja também no âmbito de outras organizações da sociedade civil. Aqui predomina largamente – ainda que freqüentemente de modo sutil, inclusive sob uma roupagem verbal sedutora – o sentido assistencialista das experiências de EP, nas quais prevalece o sentido da preposição “para”. Quando muito, ornadas por ações que parecem, até certo ponto, dotadas da preposição “com”. Em outras palavras: para essa concepção de EP, o fundamental da experiência é que ela se destine a favorecer as camadas populares. Trata-se de implementar projetos e programas educativos – escolares ou não-formais – destinados às “classes menos favorecidas” ou às “camadas carentes da sociedade”, ainda que não contem com sua participação decisiva nos distintos momentos do processo. Não se trata de duvidar das intenções. O que está em questão é o próprio caráter político- pedagógico do processo, desde sua concepção, passando pelo planejamento, pela implementação, execução, acompanhamento, avaliação, etc. (CALADO, s/d, p.2).

A concepção que se apresenta como alternativa é considerada, por Calado (s/d), um processo formativo permanente que tem a classe trabalhadora como protagonista em todas suas fases e instâncias. Nesse sentido, explica que:

[…]. Tendo em vista o caráter sabidamente inconcluso dos Humanos (Freire), seu processo de humanização estende-se ao longo de sua vida, de modo ininterrupto. Todo o seu (con)viver se acha atravessado de práticas

formativas, nos mais variados espaços e ambientes comunitários e sociais: tribal, familiar, lúdico, produtivo, nas relações de espacialidade, de gênero, de etnia, de geração, nas relações com a Natureza, com o Sagrado… Ao que se deve acrescentar que não se trata de mera aquisição de conhecimentos, mas antes de um processo praxístico (Marx) que comporta rumo, caminhos e posturas. Eis por que não se trata apenas de se fazer coisas consideradas significativas, mas sobretudo de que estas apontem para um horizonte de contínua humanização e respeito pelo Planeta, […]. (CALADO, s/d, p.4). O autor destaca alguns elementos que, para ele, são as principais características da visão alternativa ou utópica de Educação Popular. Incompleteza humana, recuperação da memória histórica, permanente curiosidade epistemológica, protagonismo em todas as fases do processo, disposição para ensinar e aprender a partir de e com as pessoas comuns são alguns dos aspectos constituintes, de acordo com Calado (s/d), dessa concepção educativa. Segundo o autor citado a educação deve ser um processo:

[...]

- que seja capaz de despertar em seus protagonistas (individuais e coletivos) o sentido de sua incompleteza, da sua condição inconclusa, o que, em vez de induzi-los a se renderem a um cômodo rótulo ontológico, propicia uma permanente disposição de irem se tornando…

- que tome seriamente em conta a condição humana de seres relacionais, que se educam em comunhão, no mutirão do dia-a-dia;

- que propicie aos seus participantes o permanente aprimoramento de sua capacidade perceptiva, ajudando-os a ver, a ouvir, a sentir, a intuir mais e melhor o que, ou antes não conseguiam, ou só conseguiam de forma muito fragmentária e descontínua;

- que os estimule a recuperarem a memória histórica das experiências humanas, nos mais diferentes tempos e espaços;

- que seja capaz de trazer para dentro de seus espaços os desafios do dia a dia enfrentados pelos seus protagonistas, dispondo-se estes a ensinar e a aprender, a partir de e com as pessoas comuns do campo e da cidade;

- que estimule seus protagonistas a permanente curiosidade epistemológica, mantendo-os em incessante estado de busca;

- que assegure o protagonismo do conjunto de seus participantes, em todos os passos e “fases” do processo educativo;

- que lhes propicie o empenho em criar e assegurar condições favoráveis de uma sociabilidade alternativa, articulando-se adequadamente macro e micro- relações, por meio do incessante esforço (individual e coletivo) de apostar mais em atitudes do que em atos libertários isolados, ainda que estes também sejam bem-vindos;

- que permita aos seus protagonistas a descoberta e o exercício de suas potencialidades e talentos artístico-culturais, sem abdicar de ajudá-los também a identificar e a superar os próprios limites, pelo exercício contínuo da (auto-)crítica;

- que promova o recurso a múltiplas linguagens, de modo a não tornar seus participantes reféns do uso exclusivo da oralidade ou da escrita…

- que crie condições para os seus protagonistas exercitarem, todos, a adequada articulação de suas dimensões discente e docente;

- que favoreça permanentemente o exercício do rodízio ou da alternância de funções e cargos entre os seus protagonistas;

- que aposte no incessante aprendizado, por parte dos seus protagonistas, da coerência entre sentir-pensar-querer-agir;

- que lhes assegure condições de permanente superação da dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual;

- uma Educação Popular cujos protagonistas, longe de se acomodarem e sucumbirem à tendência burocratizante e imobilizadora tão característica dos espaços institucionais, se vejam mais empenhados em ousar ações instituintes, inspirados nas atitudes desinstaladas e desinstaladoras do espírito peregrino, à luz de uma Utopia libertadora.

- uma Educação Popular que, a partir do local, se abra para o mundo, propiciando aos seus protagonistas sentirem-se e agirem como cidadãos do mundo e parceiros do mesmo Planeta;

- que se mostre ciosa de apostar num processo educativo permanentemente temperado pelo exercício da contemplação estética, alimentado pelo ininterrupto recurso às diferentes artes e à multimilenar sabedoria acumulada pela Humanidade, longe de se restringir à Ocidentalidade…

- Uma Educação Popular que estimule a capacidade de sonhar (o sonho desperto, de que fala Ernst Bloch), numa perspectiva de Utopia libertadora; - que aposte numa formação omnilateral que favoreça o desenvolvimento de todas as potencialidades e dimensões de Ser Humano (subjetivas, biopsico-sociais, de Trabalhador/Trabalhadora, etária ou geracional, ecológica, de gênero, de etnia, ética, de espacialidade, de sua relação com o Sagrado…) (CALADO, s/d, p.5-6, grifo do autor)

A perspectiva alternativa, apresentada por Calado (s/d), é o conceito de Educação Popular adotado por este trabalho. Porém, evidenciamos que ambas as concepções estão presentes na Escola Zé Peão.

Na realidade brasileira, a perspectiva assistencialista ou de integração diz respeito ao processo de universalização da escolarização básica. Isso porque os índices de analfabetismo e de baixa escolaridade em países periféricos como o Brasil, ainda são alarmantes. É uma educação destinada a contingentes populacionais que estão excluídos da escola. Portanto, uma educação “para” o povo, como destaca Calado (s/d).

A perspectiva alternativa é utópica, radicalmente democrática e pautada na construção de uma nova hegemonia do ponto de vista educacional e societário. A partir dessa visão, as trabalhadoras e trabalhadores não aprendem apenas os saberes necessários para o exercício do trabalho sob a ótica do capitalismo, mas, principalmente, a como se humanizarem e se libertarem e, dessa forma, transformarem a realidade através do vínculo comunitário e do trabalho coletivo.

Na Escola Zé Peão, verificamos a coexistência dessas duas visões, ora de maneira complementar, ora de forma conflituosa. A primeira concepção se expressa através da necessidade de ensinar e de se aprender a ler e escrever para possibilitar o acesso dos

operários ao emprego, ao consumo e aos bens culturais da nossa sociedade. A segunda se apresenta como uma alternativa de superação das limitações e dificuldades impostas ao desenvolvimento do ser humano nas suas mais variadas dimensões e à transformação da realidade.

A primeira concepção diz respeito a uma educação que pretende ajudar as pessoas a melhorarem de vida diante de circunstâncias difíceis e oportunidades escassas. A segunda visão tem por finalidade contribuir na luta coletiva para que a vida seja menos difícil e as oportunidades se ampliem para todas as pessoas. A primeira está no âmbito individual e não nega a ordem e a segunda, por ser utópica, está no plano da coletividade e confronta o projeto hegemônico de sociedade.

A Educação Popular nasce negando/criticando os processos formais de escolarização porque esses representavam o modelo de educação bancária das classes dominantes. Hoje, o desafio que está posto, é tornar a escola uma escola popular, ou seja, uma escola que se constitui “com” o povo e “para” o povo.

No capítulo que segue centraremos o nosso olhar nos relatos dos trabalhadores partícipes da pesquisa para tentar perceber o que consideram importante aprender para o trabalho e para a vida.

3 AS COMPREENSÕES DOS TRABALHADORES-EDUCANDOS DA ESCOLA ZÉ