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PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA, REPRESENTAÇÃO E

ADVOCACY

O debate em torno do modelo democrático mais adequado na relação entre Estado e sociedade tem se dado ao longo da história e desafia a teoria política. A categoria políticas públicas vem sendo estudada no Brasil especialmente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Foi nessa ocasião que a demanda dos novos movimentos sociais pela participação social nos processos decisórios consolidou-se e a gestão democrática e participativa foi institucionalizada nos diferentes âmbitos do Estado com a criação de conselhos de políticas públicas e mais recentemente com o processo de conferências nacionais.

A categoria política pública entendida como resultado do processo de debate, negociação e articulação entre Estado (compreendido pelos poderes executivo, legislativo e judiciário) e sociedade civil organizada,

num processo de formulação, implementação, monitoramento e avaliação das iniciativas negociadas entre governo e sociedade civil24.

Dessa forma, vamos analisar o papel da sociedade civil para o avanço da democratização do Estado e como a RMM se insere nesse campo para articular suas pautas. A sociedade civil “tende a ser uma sociedade de redes organizacionais, de redes interorganizacionais e de redes de movimentos e de formação de parcerias entre as esferas públicas, privadas e estatais, criando novos espaços de governança com o crescimento da participação cidadã”, como analisa Scherer- Warren (2012, p. 33). Essa sociedade civil interage em espaços de negociação com o Estado e o mercado para a formulação de políticas públicas, especialmente na arena dos conselhos e conferências.

Estes colegiados, criados ou reorganizados durante a década de 1990, são integrados por representantes do Estado e da sociedade, e ocupam um espaço, no interior do aparato estatal, de apresentação e processamento de demandas, expressão e articulação de interesses, concertação e negociação, de acompanhamento e controle da política e, em muitos casos, de decisão (JACCOUD, 2005, p. 376).

Rocha e Gomide (2014, p. 10) consideram que a restauração do Estado democrático de direito no país instituiu uma série de mecanismos que envolveram os atores e atrizes “políticos, econômicos e sociais no processo de formulação e gestão de políticas públicas ao ampliar os instrumentos de controle, participação e transparência nas decisões públicas”. Esse novo cenário de participação criou a necessidade de um novo ambiente institucional.

Esses novos arranjos institucionais são caracterizados pela independência entre os poderes, o advento das instituições participativas e a consolidação dos instrumentos de controle sobre a administração pública (burocrático, parlamentar e judicial) e levam os gestores públicos a relacionar-se com os sistemas institucionais na produção de políticas públicas: o representativo, o participativo e o de controles burocráticos (ROCHA E GOMIDE, 2014).

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É interessante verificar a demanda da RMM por políticas estruturais de regulação (FREY, 1993) dos meios de comunicação em âmbito federal, a partir de uma agenda de gênero, com recorte para as mulheres.

O sistema participativo reúne várias formas de intervenção da sociedade civil nas decisões políticas, como os conselhos gestores nos três níveis de governo, as conferências de políticas públicas, as audiências e consultas públicas, ouvidorias e outras formas de interação entre atores estatais e atores sociais, segundo Rocha e Gomide (2014).

O sistema de controle da burocracia passa a ser composto por mecanismos de accountability25 horizontal (controles internos e

externos), fiscalização parlamentar, judicial, e do Ministério Público, como aponta Rocha e Gomide (2014). Por último está a relação do Executivo com os agentes do sistema político-representativo, como o Congresso Nacional, parlamentares, dirigentes de governos estaduais e municipais, bem como seus partidos políticos.

O ambiente político-institucional da democracia tem um sistema de poder de tendência conservadora quanto à agilidade e ao teor das transformações, pelo fato de envolver interesses entre elites políticas. Entretanto a pluralidade nos processos decisórios contribui para a qualidade e a legitimidade das decisões, como analisa Rocha e Gomide (2014), ainda que a inclusão de novos atores e a ampliação dos interesses envolvidos nos processos decisórios crie um excesso de demandas sobre o sistema político e reduzindo as possibilidades de consenso.

Os arranjos institucionais capacitam o Estado para executar as políticas, e essas por sua vez influenciam a montagem dos próprios arranjos institucionais para implementação de políticas públicas, observando os aspectos técnico-administrativos e políticos:

O primeiro deriva do conceito weberiano de burocracia, contemplando as habilidades do Estado para levar a efeito suas políticas, produzindo ações coordenadas e orientadas para a geração de resultados. O segundo, associado à dimensão política, se refere às habilidades de inclusão de atores diversos (sociais, políticos e econômicos) e de negociação e condução de processos decisórios compartilhados envolvendo o processamento de conflitos, prevenindo a captura por interesses específicos, como percebe Rocha e Gomide (2014).

Para avaliar os resultados Rocha e Gomide (2014) consideram a dimensão da execução das metas e as mudanças durante a implementação dos programas. O grau de execução das metas propostas é observado pelo alcance de metas físicas e a realização de produtos nos

25 Accountability é um termo da língua inglesa, sem tradução exata para o português, que

remete à obrigação de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados. Outro termo usado numa possível versão portuguesa é “responsabilização”.

prazos previstos. Organizações competentes, recursos disponíveis e mecanismos de coordenação, articulação e de monitoramento são indicadores dos resultados dos programas.

Outro aspecto é a importância de mecanismos de interação entre atores sociais e políticos que proporcione emergir as tensões ou conflitos, caracterizado pelo que Mouffe (2005) chama de modelo

agonístico de democracia. É nesse cenário que Alvarez (2000) e Ávila

(2006) percebem o protagonismo do feminismo e do movimento de mulheres na democratização do Estado. Ele se estende à negociação de políticas públicas que contribuíram para o avanço dos direitos humanos das mulheres e para um campo de investigação que nas últimas décadas ganhou espaço e importância dentro das ciências políticas e administrativas.

Jaccoud et al. (2005) avaliam que a demanda de democratização implicou a reafirmação da ideia da democracia participativa, de representação social junto às instâncias do Poder Executivo e também a ampliação desses espaços decisórios26. O reconhecimento da necessidade de representação da pluralidade de atores junto a uma determinada política pública reduziu a distância entre aqueles que atuam em diversos níveis de decisão e seus beneficiários. Esse espaço que Mouffe (2005) considera fundamental para o antagonismo e a diferença dialoga com as pautas e forma de organização da RMM e a atuação das ativistas nos diferentes espaços de construção de políticas públicas.

No processo de constituição de uma esfera pública democrática para o debate e a deliberação, os conselhos incorporaram, além dos movimentos sociais, vários outros grupos e interesses presentes no debate público setorial. Assim, a perspectiva de representação refere-se aos beneficiários e ao conjunto de outros atores envolvidos na execução dessas políticas. Podem-se citar grupos profissionais, setores privados e especialistas, abrindo espaço para um leque amplo e diferenciado de interesses. Estes transformarão o conselho em ator no campo das políticas públicas e em arena onde atuam diversas forças e interesses, tornando-se um exemplo claro para a intersecção dos modelos teóricos preconizado por Mouffe (2005) e Urbinati (2010).

26 O texto constitucional é um marco na democratização brasileira, devido ao contexto do

Brasil pós-ditadura. A criação de Conselhos de Políticas Públicas alargou o projeto de democracia, compatibilizando princípios da democracia representativa e da democracia participativa, reconhecendo a participação social como um dos elementos na organização das políticas públicas (JACCOUD et al, 2005), embora ainda permaneça um déficit democrático de gênero.

A contestação e a alteridade são, para Urbinati (2010), traços inerentes à prática democrática, pois a política encampa e permite o diálogo entre atores sociais diferentes e suas respectivas opiniões, valores e cosmologia. O exercício da alteridade – do respeito às diferenças – favorece ao mundo da deliberação, de modo a que as pessoas mudem de ideia e transforme a disposição das pessoas em relação ao objeto da deliberação e às ideias de outros.

Para o pensamento agonístico, formulado por Mouffe (2005), governos, governantes, políticos e instituições pautam-se em discursos frágeis que levam às desigualdades sociais, resultando em pesos diferentes a valores, vozes e expressões. Assim, discutir as interfaces da prática democrática implica em refletir sobre a participação, o sistema eleitoral e o conceito de liberdade.

Uma das chaves para a tese do pluralismo agonístico é que, longe de pôr em risco a democracia, a confrontação agonística é, de fato, sua condição de existência. A especificidade da democracia moderna reside no reconhecimento e na legitimação do conflito e na recusa de suprimi- lo pela imposição de uma ordem autoritária. Rompendo com a representação simbólica da sociedade como um corpo orgânico - que era característica do modo holístico de organização social -, uma sociedade democrática reconhece o pluralismo de valores (MOUFFE, 2005, p. 21). A teoria de Mouffe (2005) ajuda a compreender a natureza hegemônica das relações sociais e identidades, de modo a subverter a tentação que existe nas sociedades democráticas de naturalizar suas fronteiras e essencializar as suas identidades. O modelo agonístico se firma como o mais aberto às complexas estruturas de poder e à multiplicidade de vozes presentes nas sociedades pluralistas contemporâneas, favorecendo a compreensão sobre a forma de articulação dos movimentos de mulheres e feministas na RMM.

Já Urbinati (2010.) considera que a representação proporcional é um “modo especial” de resistência dos cidadãos ao desequilíbrio de poder político, que ela considera uma forma de dominação. A proporcionalidade expressa diferentes visões e possibilidades de como plasmar a sociedade democrática e este entendimento leva ao reconhecimento de que a deliberação democrática é uma forma de advocacy democrática.

Assim, a teoria da representação como advocacy implica uma noção de cidadania que a princípio é igualitária, mas que mesmo assim levam em conta as correlações de força. Como seu princípio normativo é a igualdade política, visa a dar voz também a posições de subordinação. (...) Poderia dizer-se que, graças à igualdade de voz, a

diferença dá substância à igualdade (URBINATI, 2010, p. 88).

A concepção de cidadania unifica as duas igualdades básicas que caracterizam a democracia desde a época clássica, que implica conceito de igualdade e demanda diversos dispositivos, como a chance igual de falar que dá a todos os cidadãos a oportunidade pública de falar e ser ouvido. Sendo assim, a advocacy atesta a tensão estrutural da deliberação democrática no espaço político, com a intenção de chegar a uma decisão que não deve estar a serviço de interesses partidários nem encerrar a deliberação, que Urbinati (2010) considera conjugar interesses diversos (e por vezes rivais), diferentes visões subjetivas e diferentes aspirações.