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3.6 Liberdade de expressão, regulação e controle social

3.6.1 O tipo ideal do caso de regulação da mídia inglesa

Para debater o tema e constituir alguns parâmetros nos utilizaremos da pesquisa de Leal Filho (1997), que traz uma análise sobre a BBC de Londres e o modelo europeu de regulação da mídia, com o objetivo de prestar um “serviço público” à população. Ainda que no momento da pesquisa não se calculasse os efeitos da internet, vamos

por analogia verificar como se relacionam a questão do controle social e da regulação sobre o sistema público de comunicação, incluído nesse caso televisão e rádio, num país que prima pela liberdade de expressão.

Ao verificar uma tipologia voltada para o controle e o financiamento dos serviços, Leal Filho (1997) acredita que é possível classificar as diferentes formas de controle impostas pelas forças políticas e de mercado em treze países. Segundo essas análises, até a onda liberal de 1980, existiam seis formas de relacionamento na regulação do sistema de comunicação: forte controle governamental; serviço público “puro”; serviço público com limitado apoio comercial; sistema misto com forte regulamentação pública (tanto no setor público como no comercial); sistema misto com fraca regulamentação sobre o setor comercial e livre mercado, com um sistema público marginal, praticamente inexistente. Este último adotado nos Estados Unidos, com o qual se identifica o modelo brasileiro.

Ainda que tenha recebidos pressões liberalizantes, prevaleceu no modelo inglês o ideal de serviço público, levando à implantação do modelo público, beneficiado pela inovação tecnológica, pela vinculação a projetos culturais e um contexto político de pós-guerra (Ibid.). Esse modelo é uma referência, mesmo quando atropelado por práticas estatais ou comerciais.

Para ajudar a compreender o sistema público europeu, Leal Filho (1997) cita um conjunto de características. A começar pela ética da

abrangência, que tem o propósito de atender às expectativas dos

diferentes tipos de público no seu raio de atuação, financiada pelo sistema de broadcasting29, caracterizado pela sustentação coletiva de um serviço público que tem usuários com diferentes demandas. Outro aspecto é a importância da generalidade do ordenamento jurídico como balizadores dos objetivos das emissoras, com concessões de funcionamento dadas pelos governos para atingir objetivos de importância educacional, cultural, democrática e de igualdade para a sociedade.

A pluralidade faz parte do conjunto de características que pode ser expressa na multiplicidade de audiências, na composição dos conselhos diretores e na compreensão de que a sociedade é multifacetada, com diferentes interesses e valores. Isso beneficia o cumprimento do papel cultural das emissoras, dando oportunidade aos

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A BBC é um serviço público de broadcasting, que obtém seus fundos através do pagamento igualitário de considerável número de membros do público, com o qual o serviço se inter- relaciona num processo dinâmico e permanente de crítica e revisão.

artistas e à sociedade de acessar esses talentos, despertando para ideias e gostos culturais fora do senso comum. Soma-se a este aspecto a alta politização a qual estão submetidos os serviços públicos de rádio e televisão, que gera “formas de controle e contracontrole que resultam na elaboração de programas balanceados, responsáveis pela elevação do grau de participação dos cidadãos nos destinos políticos da sociedade” (LEAL FILHO, 1997, p. 25).

O sistema público é caracterizado pela complementaridade (sistemas público, privado e estatal) e foi constituído com a clareza de estar numa zona de tensões entre a cultura e o comércio. Seu desafio é manter distância das forças do mercado para que não interfiram na programação. Assim, a propaganda recebe um rígido controle de qualidade e quantidade, com a criação de órgãos controladores da forma e do conteúdo dos anúncios, a regulamentação do tempo de publicidade e sua relação com a programação, como aponta Leal Filho (1997).

As formas de controle variam de país para país e maioria dos governos europeus possui mecanismos independentes do “governo do dia”. Alguns exemplos de controle, segundo Leal Filho (1987), são sobre cenas de violência, sexo e temas relacionados ao “bom gosto e decência”, assim como o uso correta da língua, a dignidade das pessoas nos casos de cobertura de “desastres naturais ou tragédias humanas”. Os órgãos recebem e analisam as queixas de telespectadores e tem o poder de obrigar as empresas a transmitirem suas recomendações.

Existem experiências tripartites nas instituições, indicadas pelos poderes da república, defensorias públicas nomeadas pelo Parlamento, organizações estaduais em países federados, onde tem um órgão responsável pelo cumprimento da lei e que tem o poder de sancionar as empresas que não a cumpre.

Ao enfocar a análise do modelo britânico e seu mercado de mídia Leal Filho (1997) verifica os princípios legais e as formas de pressão de diferentes setores da sociedade. No país não é permitida a propriedade cruzada30 dos meios de comunicação e em 1990 foram propostas medidas para equilibrar a garantia de liberdade de imprensa e a privacidade dos cidadãos nos jornais, levando a criação de um órgão de autorregulamentação, encarregado de receber queixas e encaminhar soluções.

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Propriedade cruzada significa a concentração de mídia, na qual um empresário (ou uma família) é proprietário, controla ou detém a concessão de diferentes mídias: jornal, TV e rádio. Essa prática é bastante comum no Brasil, embora seja proibida.

Para o rádio e a televisão o Estado tem mecanismo de atuação desde a concessão de canais até o controle de qualidade dos programas, estruturado a partir do Parlamento e organizando o sistema com três órgãos centrais de direção, administrados por conselhos diretores, indicados pelo governo e nomeados pela rainha: o serviço público sob a responsabilidade da British Broadcasting Corporation (BBC); o setor privado de televisão terrestre, por cabo e satélite, sob a coordenação da Independent Television Commission (ITC); e o controle da rádio comercial, pela Radio Authority, como verifica Leal Filho (1997).

Esses órgãos independentes das emissoras e do governo exercem a fiscalização e são responsáveis pelo acompanhamento das programações e pelo encaminhamento das reclamações do público. Embora essas comissões não tenham poder de censura, exercem pressão pública, que influencia a qualidade das programações, ao analisar os casos e torna público o veredito, que conforme Leal Filho (1997) é veiculado por vezes no próprio canal denunciado.

O mecanismo para atender às pressões sociais sobre o sistema é a criação de comissão de investigação, formada por representações da sociedade civil, parlamentares e presidida por uma personalidade do país. Os pareceres são transformados em um documento inicial de debate, aberto às pessoas e grupos, onde se colocam poderes de pressão31 e lobbies, como manifestações públicas, manifestos e ação junto a parlamentares. Alguns grupos exigem “imparcialidade e equilíbrio”, outros exigem a criação de uma comissão “para receber queixas, exigir direitos de resposta, defender padrões básicos de imparcialidade e facilitar o acesso do público aos meios de comunicação” (LEAL FILHO, 1997, p. 42).

Essa arena de debate é caracterizada por um processo lento e gradual, que prima pela construção do consenso. Um tema que entrou em discussão foi a TV digital, colocando em disputa sobre o controle do sistema os setores conservadores e trabalhistas, para o qual se espera um desfecho ainda atual: a prioridade de compromisso com o público, em detrimento dos proprietários e governo, na busca de garantir a diversidade cultural do povo britânico e a pluralidade das fontes de informação.

A pesquisa de Leal Filho (1997) revela que a televisão independente da Grã-Bretanha possui um sistema comercial

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Os grupos organizados lutam por maior liberdade e independência editorial das emissoras em relação ao governo, a melhoria dos níveis dos programas, o acesso de minorias étnicas e dos deficientes físicos (LEAL FILHO, 1997).

diferenciado, embora atue sob o controle público e a com a reserva dos mercados regionais, que levou a uma comercialização controlada no setor. A Independent Television Comission (ITC) é o órgão público que controla a rede física e a programação das empresas, que detém o monopólio comercial sobre a região que operam, mas pagam aluguel das concessões e tem sua programação controlada de modo a manter os padrões de qualidade.

Já o sistema público de rádio e televisão da Grã Bretanha foi implantado em 1927, com a Carta Real que criou, norteou e estabeleceu a relação da BBC com o Estado. A “Licença e Contrato” entre emissora e o Ministério do Patrimônio Nacional, que trata das questões legais, que proíbe a BBC de dar opinião sobre política e questões sociais e impede que receba recursos de publicidade ou apoios comerciais. Esse documento dá ao governo poderes para exercer censura em alguns momentos (Ibid.).

A BBC passou por várias fases, sem perder o enfoque de ser um serviço público32, regida por normas de interesse público, sobrevivendo ao governo conservador de Margareth Thatcher, que pretendia fazer mudanças no modelo de financiamento da empresa.

A emissora trabalha sempre em situação de precário equilíbrio, podendo ser, em determinados momentos, puxada para um lado ou para outro. O que é importante ressaltar, a partir desses fatos, é que quando desvios são percebidos, as manifestações públicas ocorrem rápida e vigorosamente, impondo respostas ou mesmo reformulações de conduta da BBC (LEAL FILHO, 1997, p. 79).

A forma de organização e financiamento da BBC é um caso único, pelo fato de depender exclusivamente da licença paga pelos telespectadores. Leal Filho (1997) avalia que quanto mais um serviço depender de verbas públicas governamentais ou de recursos de propaganda, mais se distancia do “tipo ideal”. Para ele a opção da BBC pelo sistema público em detrimento do comercial mostrou-se acertada, resultando numa marca de qualidade da programação e de defesa da democracia.

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Caracteriza-se pela universalidade geográfica, apelo universal, universalidade de pagamento, independência, identidade nacional e comunidade, minorias, competição e liberdade de criação (LEAL FILHO, 1997).

Os mecanismos de controle e regulação não afetam a liberdade de expressão, pelo contrário a favorecem, pois dão voz aos diferentes setores e interesses da sociedade civil e do Estado. A análise feita nos permite perceber que a reflexão sobre liberdade de expressão em contextos de países latino-americanos, em especial o Brasil, ainda é alvo de críticas devido à permanência da visão ideológica neoliberal, que nem mesmo no mais liberal dos países – a Inglaterra – não se consolidou. O Brasil carece da emergência de tensões na arena pública que favoreçam o debate e o avanço sobre a legislação mais adequada à realidade brasileira no campo da comunicação, a partir do interesse público e dos interesses dos diferentes atores da sociedade.