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3. DOIS DOMÍNIOS DA SEMÂNTICA

3.3.2. A relação lexical da antonímia

Lyons (1987, p. 241) alerta para o fato de que as “[...] relações [lexicais] devem ser definidas como opera[ções] entre as unidades lexicais e não entre os seus sentidos independentemente determinados”. A perspectiva apresentada pelo autor está no escopo teórico-metodológico desenvolvido no Estruturalismo de base saussuriana, uma vez que assume-se a compreensão de que “[...] todo fato linguístico tem seu ‘lugar’ num sistema e que sua função, ou valor, [deriva] das relações que ele contrai com outras unidade no sistema” (LYONS, 1987, p. 241).

51 Para o autor, tal investigação, refletindo, empiricamente, acerca da estrutura da língua, permite ao linguista “[...] definir o sentido dum elemento lexical não só como dependente do conjunto de relações que ele mantém com outros elementos do mesmo sistema lexical, mas também como idêntico ao conjunto dessas relações” (LYONS, 1987, p. 241).

Uma das relações analisadas por Lyons foi a relação lexical da antonímia. O autor sugere, resumidamente, que esse é um fenômeno de oposição de sentido. Alerta que um dos problemas na pesquisa acerca dos antônimos é o fato de alguns autores tratarem essa relação como uma contraparte da sinonímia. Ao contrário disso, esses dois processos são de natureza bastante diversa. Assim, dentro de uma escala cujo termo mais geral é a relação de oposição de sentido, o autor trata de três processos distintos, sendo a antonímia um dentre esses processos.

A primeira relação de oposição de sentido a que se dedica analisar Lyons é a relação de “complementaridade”. O que caracteriza os termos complementares é o fato de que “[...] a negação de um implica a afirmação do outro e a afirmação de um implica a negação do outro” (LYONS, 1987, p. 489). Vejamos:

(1) José está casado.

Podemos concluir que aquele que está casado, logo, não está solteiro, ou seja, o par casado vs. solteiro apresenta termos opostos complementares. Para Lyons (1987, p. 489), “a complementaridade pode ser encarada como um caso especial de incompatibilidade que se estabelece entre conjuntos de dois termos”. Essa consideração apresentada por Lyons, no entanto, não parece prever que para (1) além do par estar casado versus estar solteiro ainda podem se acrescentar estar viúvo, estar divorciado, isto é, outros arranjos para estado civil, tornando ainda mais difícil essa combinação binária. O autor acrescenta, ainda, que o que ocorre é que “[...] a afirmação de um membro de um conjunto de termos incompatíveis implica a negação de cada um dos outros membros do conjunto” (LYONS, 1987, p. 490). Com essa afirmação, a noção de complementaridade ganha um status descritivo mais elegante, no sentido de ir além da distinção binária, uma vez que, com a noção de conjunto, não se nega um elemento a partir de seu par complementar, mas sim pela negação de todos os demais elementos de um conjunto possíveis de ocupar a mesma posição:

52 (1) José está casado, logo não está nem solteiro, nem divorciado, nem viúvo etc14.

Além disso, enunciados como

(2) Maria nem é casada, nem é solteira.

são inteligíveis e, normalmente, poderíamos encontrar referentes (viúva, divorciada etc.). A discussão que Lyons (1987) levanta (baseada em Moravsc) é que em um contexto restrito, uma pessoa (tal como Maria) poderia não ser legalmente casada, mas comportar-se dentro de um quadro socialmente legítimo no qual convive com outra pessoa e sobre o qual o predicado ser casada se aplique. Apesar de levantar essa tese, o quadro teórico sobre o qual estabelece sua análise não dá conta de exemplos como esses, por se tratar de exemplos que lidam com o mundo possível, com pressuposições e mesmo implicaturas construídas culturalmente.

Em seguida, o autor apresenta a relação de pares antônimos como sendo os elementos de sentido opostos por excelência (cf. LYONS, 1987, p. 491). O que caracteriza, para o autor, os elementos antônimos é “[...] o fato de poderem ser regularmente graduáveis”, ou seja, trata- se de elementos sobre os quais se pode fazer uma operação de comparação. Vejamos:

(3) Mariana é pequena. (4) Gisele é grande.

Para estabelecermos uma comparação, é preciso verificar uma dada referência contextual. Dessa forma, enunciamos (3) porque, de algum modo, seguimos um critério de comparação para definir que Mariana é pequena e não grande. Essa oposição de sentido se dá gradualmente. Em (4), aplica-se a mesma lógica, podendo variar o ponto de comparação de acordo com o contexto. A Gisele aqui tomada como referência trata-se da modelo brasileira famosa. Por se tratar de uma modelo, temos o conhecimento culturalmente compartilhado que nos leva à conclusão (implícita, mas contextual) de que se trata de uma mulher grande (para o padrão médio de altura das mulheres que não são modelos).

14 Outro exemplo discutido por Lyons (1987) quanto à noção de oposição complementar, aliada à perspectiva conjuntística, diz respeito às cores. Conforme o autor, o que se opõe a cor azul são todas as demais cores. Ainda que, prototipicamente, sejamos tentados a afirmar que o oposto complementar de azul é rosa, entendemos que essa oposição se constrói culturalmente, não havendo qualquer apoio na estrutura linguística para tal.

53 Essa oposição é variável, pois se aplica aos termos vagos. Os adjetivos bom vs. mau, grande vs. pequeno, muito vs. pouco têm essa característica graduável, dependente de um contexto que ameniza a vagueza. Algo é grande sempre em relação a outro elemento que tomamos por pequeno. Logo, os termos vagos não possuem uma oposição absoluta, essa é sempre presumível a partir de dados empíricos e culturais. Assim, justifica-se um exemplo como:

(5) Um elefante pequeno é um animal grande.

A interpretação semântica desse enunciado é possível, pois “a ‘norma de tamanho’ implícita para elefantes não é necessariamente a mesma que a ‘norma implícita’ para o conjunto dos [outros] animais” (LYONS, 1987, p. 495). A mudança de paradigma de comparação evita que o enunciado (5) seja analisado como um enunciado contraditório, já que podemos assumir que dentro do grupo dos elefantes um animal recém-nascido será um animal pequeno, mas ao mesmo tempo um animal grande se comparado a outros mamíferos. O que se faz necessário para a comunicação é apenas que seja tomada a mesma escala de comparação e, assim, os enunciados (3), (4) e (5) podem naturalmente ser compreendidos.

A última relação de oposição de sentido a que se refere Lyons é a relação de reciprocidade tal como a dos pares comprar vs. vender e marido vs. esposa (cf. LYONS, 1987, p. 497). Ocorre que há uma relação de imbricação de sentido. Vejamos:

(6) João comprou um carro de Pedro. (7) Natália é a esposa de José.

Imbrica-se na interpretação semântica do enunciado (6) o fato de que a ação de compra prevê a relação de venda. O mesmo ocorre no enunciado (7), em que está imbricado o sentido de marido (esposo) para José, já que se diz que Natália é a sua esposa. Há, portanto, uma reciprocidade de sentido entre esses elementos que são diametralmente opostos.

Ilari e Geraldi (2006) também observam diferenças entre as relações de sentido que se podem estabelecer entre elementos e orações a partir de sentidos incompatíveis, ou opostos. A primeira observação que os autores fazem é que, diferentemente das definições tradicionais, os termos nascer e morrer não “[...] exprimem exatamente ações contrárias [...] [mas] dois momentos extremos do processo de viver” (ILARI; GERALDI, 2006, p. 54).

54 Seguindo seu comentário, observam que a oposição que fazemos entre abrir e fechar é também de natureza distinta, pois “[...] não se trata, evidentemente, de momentos necessários de um mesmo processo [...] mas de processos diferentes pela direção e pelos resultados que implicam” (ILARI; GERALDI, 2006, p. 55).

Além disso, outro exemplo chama a atenção dos autores: no caso de dar e receber também ocorre um processo distinto dos anteriores, pois “[...] poderiam ser tomados como descrição de uma mesma cena, enxergada de pontos de vista diferentes; a oposição se estabelece [...] entre os papeis correspondentes ao sujeito gramatical” (ILARI; GERALDI, 2006, p. 55).

Uma explicação para isso pode ser encontrada em Ilari (2011). Para o autor, é preciso verificar que há sempre uma propriedade em comum na comparação entre os pares de antônimos: “[...] grande e pequeno indicam tamanho; ir e vir indicam deslocamento; nascer e morrer são os dois extremos do mesmo processo de viver etc.” (ILARI, 2011, p. 25).

De modo resumido, Ilari (2011) verifica que a relação de antonímia é um processo escalar, no qual se pode depreender uma propriedade comum para os termos que se opõem a partir de uma comparação contextualmente estabelecida.

Uma posição bastante interessante pode ser encontrada em Ferrarezi Jr. (2010). Para o autor, “a ideia de antonímia só é coerente como uma operação que parte do nível dos referentes, pois, na verdade, opomos características dos referentes e não dos sentidos das palavras” (FERRAREZI JR., 2010, p. 226).

O quadro teórico no qual insere sua análise é denominado pelo autor de Semântica de Contexto e Cenários, em que valores culturais devem ser considerados para a delimitação das relações de sentidos. Assim, os pares bonito/feio e grande/pequeno só são compreendidos devido à criação de uma “[...] escala de valores culturais [através da qual é possível estabelecer] polos que possam ser contrapostos” (FERRAREZI JR., pp. 226-7).

Atendo-nos à noção de feio e bonito, a operação que se processa, conforme o autor, não revela uma analogia entre os sentidos e/ou entre suas possibilidades funcionais, mas sim uma análise entre as características dos referentes que podemos considerar feias e não bonitas (e vice-versa). A partir das características dos referentes, aplicamos comparações e avaliações com base em critérios culturalmente estabelecidos, variáveis e sem relação com o aparato linguístico.

Segundo Tamba-Mecz (2006, p. 119), tradicionalmente, “a antonímia designa uma relação de contrário aplicável apenas ao domínio lexical e definida por oposição à relação,

55 mais antiga, de sinonímia”. Dessa forma, quando declaramos que A é antônimo de B, estamos estabelecendo uma relação entre esses dois termos que deve ser identificada como de ordem lexical. No entanto, do mesmo modo que os outros autores já resenhados, Tamba-Mecz também propõe uma diferenciação quanto à definição clássica de antonímia, observando que há muitas formações de relações antonímicas de naturezas diferentes. A autora refere-se à noção de associação que fazemos, por exemplo, entre unidades lexicais sem base morfológica comum, ou com a sua negação, ou através da prefixação:

(8) Este vestido é longo e aquele é curto.

(9) O essencial à vida está em evitar as coisas não-essenciais. (10) Tornamos muitas vezes o possível em impossível.

O acréscimo mais importante relativo à oposição semântica está na relevância morfológica que alguns itens lexicais apresentam e também na oposição decorrente da negação do próprio item. Pode-se estabelecer a oposição antonímica através da inserção de um prefixo ou da negação do item e não apenas na busca por elementos binariamente dicotomizados. Essa, inclusive, é uma ressalva que a autora faz: “os linguistas tenderam a ver na relação de antonímia apenas a manifestação de um principio de dicotomização muito genérico” (TAMBA-MECZ, 2006, p. 123). Ao contrário disso, a autora sugere que é preciso

[...] levar em consideração o conjunto das características formais e funcionais das relações de antonímia, para descobrir as regras específicas que regem a estruturação dessas relações nos diferentes sistemas linguísticos, de um lado, e sua interpretação nos diversos tipos de configurações do discurso, de outro (TAMBA-MECZ, 2006, p. 124).

Assim, dois elementos podem ser considerados antônimos quando os dois valores complementares simultaneamente se pressupõem e se excluem mutuamente (cf. TAMBA- MECZ, 2006, p. 124).

Como foi possível perceber, não é fácil delimitar o escopo da antonímia. O motivo para isso ocorrer se deve ao fato de que a relação de sentidos não se restringe apenas ao domínio lexical (semântico, morfológico), mas também envolve aspectos do domínio discursivo (referencial, pragmático, cultural).

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[...] a relação de antonímia é um tanto complexa, e, para refletirmos sobre como abordar tal complexidade em sala de aula, resumimos três pontos essenciais: a) é necessário desfazer a crença de que só há um tipo de antonímia, apontando para diferentes tipos de oposição; b) é necessário desfazer a crença de que se trata de uma oposição linguística, apontando para o fato de que essa oposição está ligada a aspectos extralinguísticos, como o referente, e a conceitos culturais e c) é necessário, ainda, não perder de vista que a antonímia, assim como outras relações lexicais, é um processo que se efetiva contextualmente, no uso da língua (ESCARPINETE; FERRAZ, 2015, p. 86).

Não se pode, tal como tradicionalmente, intuir que existem antônimos perfeitos, pois há sempre uma relação de comparação de propriedades cujos valores podem ou não ser atualizados pelos interlocutores. Atua nesse processo, ainda, a seleção lexical que se pode fazer a partir da construção de campos lexicais cujos elementos (e seus sentidos) podem ser opostos. Nesse sentido, geram inferências e conclusões que são direcionadas textualmente.

Em síntese, não há oposição absoluta entre antônimos. Palavras diferentes podem ter um mesmo antônimo, desde que tenham ao menos um sentido em comum. A existência de grande número de termos antônimos no vocabulário das línguas naturais parece estar relacionada a uma tendência humana geral de ‘polarizar’ a experiência e o juízo, de categorizar a experiência em termos de contrastes dicotômicos, isto é, de ‘pensar por oposições’ (cf. LYONS, 1987, p. 499).

Na próxima subseção, trataremos da relação da ambiguidade lexical.