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A relação micropolar e o ponto de centricidade em alteridade com as macropolaridades

HEURÍSTICO-HERMENÊUTICAS

4.1. Sopesando os processos de subjetivação em LFT: análise da primeira hélice

4.1.2. A relação micropolar e o ponto de centricidade em alteridade com as macropolaridades

Nesse eixo horizontal, algo singular se institui na subjetividade da IESM que está a se construir em Lygia. Algo estabelecido pelo atravessar da narrativa VA, representado pelo recorte de Raíza e Patrícia. A primeira, como uma macropolaridade de natureza determinativa, influi pertinentes direcionamentos sobre o ponto de centricidade da hélice sujeitudinal.

É um sujeito diferente de uma jovem comum. Seu comportamento, atitudes e posicionamentos contrariam as regras morais da época, sobretudo da década de 60, quando o romance é publicado. Entrega-se aos prazeres do sexo e do álcool, além de experimentar drogas. Demarca uma posição reacionária, contrária ao posto:

E13

Eu era jovem e tinha o sol e tinha Fernando, ah, era bom viver com a cara afundada na vida, sem perder nada, nada. E amar como os bichos amam, naturalmente, sem complicações. [...] Assim eu deveria amar, com a simplicidade com que me entregava agora ao sol deixando-me levar sem resistência, mergulhada até os cabelos naquelas águas. E se isso era bom, onde estava o mal? [...]

O mal. Sim, eu sabia muito bem onde ele estava, era aquela insegurança, aquela ansiedade, a sensação de areia movediça fugindo debaixo dos pés. Tinha Fernando, mas queria André, ou melhor, nem Fernando eu tinha, que Fernando era casado, pior do que casado, era livre, o homem mais livre do mundo, podia ter vinte mil esposas e vinte mil filhos, como os patriarcas bíblicos. E continuava livre, (VA, p. 18-19).

E14

Deixei pender a cabeça para o peito. Cruzei os braços. E senti-me mais desligada da terra do que um anjo louro e corrompido como o Anjo de Fernando: nem jovem nem velho, nem feio nem bonito, nem bom nem mau, nem fêmea nem macho – um ser neutro, tomando suco de laranja.

Mas eu era um anjo definido. Inútil esconder-me como Caim, detrás das touceiras. ―O que fizestes? O que fizestes?‖ perguntava o Senhor já rouco de tanto gritar. Nem havia no mundo touceiras suficientes para esconder tanta gente em pecado. Melhor apresentar-me com humildade, fiz o que pude, meu Deus. É pouco, mas a gente pode tão pouco, não é mesmo? Pouquíssimo. (VA, p. 19-20)

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Em E13, Raíza, revestindo-se de FSj-Nar, colocando-se no lugar discursivo de narradora e ocupando seu lugar de voz sem mediações de outrem, portanto, agora já portadora de voz própria, relembra a sua juventude e suas relações amorosas desregradas e transgressoras ao posto. Contudo, neste mesmo excerto, é perspícua ainda uma transitoriedade de posicionamento, pois, ao mesmo tempo em que ela acredita ser o amor um sentimento livre, que era bom, existia uma outra face da moeda que seria o mal: a insegurança de se poder amar livremente, diferentemente de Fernando, sujeito protegido pelo patriarcado. Transita entre a liberdade e a coerção, porém de forma já definida, assumindo suas contradições e várias identidades: um anjo- Caim, como em E14. Parece que existe uma liberdade de escolha, uma escolha de pecar, uma escolha de transgredir, como ela ressalta ainda que seja entre uma dualidade e não entre uma pluralidade: ―Deus existe mas existe também a nossa decisão, nós é que decidimos, a escolha nos pertence... Bons ou maus, é só nossa responsabilidade. É por isso que somos capazes de luta!‖ (F17 – VA, p. 115)

Sendo assim, no trânsito das ambiguidades, Raíza oscila entre o tudo e o nada, como ela afirma:

E15

___ Só sei que tenho tentado ser boa, mamãe, mas é difícil. Viciei-

me nas pequeninas perversidades e agora sinto falta delas como há pouco senti falta do cigarro.

___ Você saltou de um extremo a outro, foi rápido demais.

___ Mas é que tenho horror ao meio-termo, atalhei-a. As coisas

comigo têm que ser feitas assim, com violência. Essa mediocridade das meias medidas! (VA, p. 154).

É notável que refuta os meios-termos, é ser ou não ser. É necessário agressividade, ―violência‖ no se colocar, exigir, até pensar em um casamento para sair daquele amor aparentemente ―morno‖ que fica no meio-termo entre ela, amante, e a esposa ―legítima‖:

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E16

Fernando, não me abandone! Não me abandone! Não tenho mais ninguém Fernando, não tenho mais ninguém, solucei sentando-me no chão desgrenhada e nua. Ele continuava deitado, fumando, mas mãos entrelaçadas sob a nuca, assim mesmo como estava agora. E começou a falar com brandura, os olhos um pouco apertados, como se os ferisse a luz. Disse que me queria muito, pelo menos naquele instante estava me amando e só o presente é válido. [...] ―Quero que saiba, meu carneirinho, que não posso oferecer nada mais do que te ofereço agora. Posso me separar da minha mulher e dos meus filhos para nos casarmos, quer se casar comigo? Heim?... Mas isso também não significa esse para sempre que você tem o mal gosto de repetir. Já me casei umas quatro ou cinco vezes, esta seria a sexta ou sétima, nem sei!... É o que você quer? Não, não é, eu sei que não. Você quer ser amada como as heroínas dos livros da sua mãe. Quando na realidade o amor é tão simples...‖ (VA, p. 39-40).

E, por assim se posicionar, suas relações com as outricidades são sempre tensas, talvez até de fato agressivas:

E17

Dormia seminua [Marfa], de bruços sobre o travesseiro. Achei-a grande demais. Branca demais naquela meia nudez. Tive ímpetos de jogá-la para fora da cama. (VA, p. 07)

E18

Sentei-me na cama. Agora podia ouvir o ruído da máquina, mamãe estava escrevendo, André ainda não tinha chegado para o chá. André, André. Ele tinha o olhar dourado. Como era possível alguém ter o olhar assim dourado? Era preciso me apressar antes que chegassem a ser amantes, se é que ainda não… Seria concebível uma amizade assim branca? Dentro de alguns anos ela já estaria velha. Teria tido forças para resistir àquele jovem esbraseado e ainda por cima casto?! Casto… Está claro que já se amavam como loucos, os hipócritas. Ela, principalmente, tão distinta, tão correta. E tão devassa. (VA, p. 08)

E19

Vamos nós dois descer também aos infernos, hem, André? Você precisa dela, eu sei, aquela velha história de todo homem querer no fundo dormir com a mãe, não me oponho a Édipo. Mas veja em mim a irmã e serei Electra! (VA, p. 25)

E20

Viver avilta, meu bem [Dionísia]. Sabe o que é aviltar? Pois é, avilta. Quando eu chegar à sua idade, estarei com você, com dentes de ouro e chifres, acrescentei puxando-a pela cintura. (VA, p. 89)

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E21

O tom, o tom é que estava errado. Mas por quê? Por que mesmo quando não era minha intenção ferir eu acabava ferindo? Hábito? (VA, p. 118)

Compete com sua prima Marfa, tanto com relação aos amigos quanto com os companheiros amorosos, a ponto de, como em E17, querer partir para uma agressão física. Disputa com sua mãe o tempo todo, sobretudo no diz respeito a André, quem ela julga ser o namorado de Patrícia, como evidenciado em E18. Alterca, não raras vezes, com André, como em E19. Rivaliza até com Dionísia, a exemplo de E19, por acreditar que a empregada protege o namoro da mãe com André. Talvez fosse o tom de suas palavras, como Raíza expressa em E20, mas o fato era que estava sempre a ferir os outros e a ferir a si também.

Enfim, constitui-se uma instância sujeito em constante rivalidade, em constante embate, que exerce alguns influxos determinativos sobre a IESM na trilogia de LFT: acrescem-se aos seus percursos de subjetivação, os confrontos, a incisividade, a transitoriedade entre a repressão e a transgressão de forma mais determinada, adendos que são descritos e explicados pela outra micropolaridade do eixo horizontal, Patrícia.

Investindo-se de uma FSJ-Per, pois fala mediada por alguém ou pelas aberturas que a narradora concede a ela, é uma escritora. Alguém que também fugiu do posto e contra ele se posicionou:

E22

Patrícia é uma flor... Não se pode negar que teve certas ocasiões um comportamento meio esquisito. Quando se casou, por exemplo, já falei nisso, não? Nem sabíamos de nada quando veio anunciar que marcara o casamento para o próximo mês. Casamento com quem? Perguntou minha mãe no maior susto, sabíamos que ela se encontrava com Giancarlo mas como podíamos adivinhar que as coisas estavam nesse ponto? Papai quase teve um ataque. E mamãe começou a chorar, imagine, tudo assim tão inesperado, não usava uma filha anunciar o noivado desse jeito. Bem que papai quis consertar a situação pedindo a ela que esperasse um pouco até nos acostumarmos com a idéia, o moço é simpático, sem dúvida, Pat, mas é um estrangeiro. Você sabe perfeitamente que na nossa família as coisas são feitas num outro sistema, disse meu pai. Patrícia então examinou-o como

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IESM

Virgínia

Laura

examinou essa cortina e respondeu que já era hora de mudar esse sistema. (VA, p. 33).

Pela voz de outrem, quer seja, Tia Graciana, é evidenciada uma importante quebra de valores tradicionais, ir de encontro ao casamento escolhido/arranjado pelos pais. Ela casa com um estrangeiro e somente anuncia o casamento à família. Repreendida pela irmã, que ressaltou que o sistema era outro, ela retrucou que já era momento de mudar, de alterar tal situação. É alguém determinado, que empreende também um caminho de transgressão. Após casar, trabalha como escritora e sustenta a família. Seu marido não era muito firme, não tinha objetivos definidos e acabou por se refugiar no álcool e chegar à morte.

É a determinação que então passa a caracterizar, delinear também a construção da IESM, construindo a movimentação das micropolaridades no eixo vertical em alteridade com o horizontal:

Figura 11. Eixo horizontal e vertical em movimentação instaurando o todo-singular analítico

Essa relação micropolar incidindo sobre a IESM, de forma a construir um atravessamento singular, em diálogo constitutivo com a exterioridade, evidencia que o todo da construção subjetiva da mulher do espaço

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literário em LFT, no imo do intercâmbio de posições que oscilam entre coerção e independência, é marcado pelo embate, pela luta, pela incisividade, pela determinação de fazer mudar, de fazer alterar o posto.

Já começando a poder falar por si, por ocupar uma FSJ-Nar, uma abertura enunciativa principia a instaurar, o espaço para poder projetar percepções axiológicas se enceta, a quebra do posto começa realmente a acontecer de forma mais definida e determinada: Patrícia casa contra vontade dos pais; Raíza tem amores livres; Patrícia é escritora e trabalha para o sustento da casa; Raíza e Marfa trabalham como tradutoras e revisoras de textos; Raíza, apesar de se considerar frágil, abandonada, necessitando de alguém ao lado (cf. E16), é determinada em seus projetos como lutar por André, em constate disputa com a mãe, e com ele passar uma noite ainda que sofrível de amor e levá-lo ao suicídio.

Enfim, nesse atravessar da ordem singular na ordem conjuntiva acrescem-se aos percursos de subjetivação da IESM, os confrontos, as oposições, as ambiguidades, a determinação que singulariza, que idiossincratiza o ato de subjetivar da mulher. E esse todo-singular dos processos de subjetivação da IESM constroem acontecimentos, instaura devires, representados pelo recorte das traspolaridades.

4.1.3. A relação traspolar e o ponto de centricidade em alteridade